Fonte: Portal Costa Norte |
ARCA DE NOÉ II
Vitor de Athayde Couto
Cronista e ensaísta
Percebendo que não tinha mais o
que fazer ali, o mico depositou um envelope lacrado nas mãos de Ching e se
despediu dos bichos, com estas palavras:
– Dimêrma, só me resta desejar
muito axé. Como a inspiração já transpira em mim, preciso voltar. Millôr Fernandes
já dizia: baiano é quem nasce na Bahia, vai embora, e depois fica dizendo que
está com saudade, querendo voltar. E é o que vou fazer agora. Fui, bandamel.
Avisalá!
E assim, o mico-leão abriu suas
asas de anjo e deixou a Amazônia. Sabendo que todos os biomas brasileiros estão
ameaçados de extinção, pediu proteção a Ya-cy e seguiu sua missão: ajudar os
bichos da Mata Atlântica, dos Cerrados, do Pantanal, dos Tabuleiros, das
Restingas, das Matas de Cocais… Na Caatinga já não há mais o que queimar, mas o
seu instinto primitivamente animal insiste em repetir: “faz a tua parte e
confia”.
Com sete dias, um gavião-pinhém
trouxe da Bahia um livro e notícias de Mãe Divina. Noticiou que o mico chegou
bem, com saúde, sob a proteção de Ya-cy. Naquele mesmo dia, Ching leu “A
revolução dos bichos”. Logo em seguida assumiu assumir o comando, dando início
à sua missão, pois os “raios de abril” não avisam quando chegam. Ao perceber
que muitos bichos tinham acreditado na fake baré e fugiram, determinou que apenas
um casal de cada espécie ali presente se inscrevesse e participasse da
construção da arca, com direito a embarcar. Naquele momento, viu-se um raio
muito brilhante em pleno meio-dia. Seguiu-se um estrondo. Todos correram; uns,
para a esquerda, outros, para a direita da trilha, cada um conforme a sua
ideologia. Assim ficou provado que no incêndio da floresta todos os bichos se
unem… menos no Brasil.
Acalmados os ânimos, Ching
conseguiu estabelecer uma divisão animal dos trabalhos, separando sub-grupos
por espécie, aptidão e força física.
Do alto do telhado do hospício,
ops, do Arsenal da Marinha, agora transformado em oficina, Ching dava as
ordens:
– Atenção, pica-paus-anões!
Marquem as madeiras adequadas para a construção naval, entendido? Procurem as
Copaíbas. Elas são oleosas e resistentes, inclusive ao bicho turu, o terrível
cupim-do-mar. Bacuri também é boa madeira. Suas tábuas curvam-se ao fogo. Vi
muitas dessas árvores perto dos rios Acará e Caraparu, o que já facilita o
transporte dos troncos até aqui. Os castores cortarão…
– Olha! – disse a coruja Edwiges.
– O quê? – perguntaram todos.
– Um gnomio! – a assembleia riu
litros.
– Como eu estava dizendo, os
castores…
– Castores? Já não bastava
mico-leão, chimpanzé e ratão do banhado? – interveio uma araracanga, indignada
com a invasão de tantos estrangeiros na Amazônia. E tem mais: o que essa coruja
australiana tá fazendo aqui? E o gnomio? Fazem parte dessa invasão de ONG
nórdicas, com seus serezinhos metidos a protetores da floresta? Olha! Olha lá!
Acabou de passar um leprenchau correndo atrás de um lutin. Não duvido se
aparecer um duende falando espanhol, querendo mandar em todo mundo. E sempre
zangado!
Enquanto a araracanga estava uma
arara, Ching, sem perder a calma, retomou a palavra:
– Sim, são todos bem-vindos. Por
que não os castores? – e prosseguiu, sem hesitação, com voz muito firme – Eu
sou manauara, com muito orgulho! Pertenço à quarta geração de um casal de
chimpanzés que embarcaram na Guiné-Bissau. Meus ancestrais foram vendidos para
um circo…
(Continua)
Nenhum comentário:
Postar um comentário