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A morte e eu
Elmar Carvalho
Dias atrás, fui a uma missa memorativa de um ano da morte de
um amigo. Ao chegar, vi sobre uma mesa, logo à entrada do templo, uma lista de nomes
de pessoas. Dirigi-me ao funcionário para apor nela a minha assinatura. Porém,
qual não foi a minha surpresa, quando uma assistente do padre, ao ler o nome
das pessoas falecidas, em cuja intenção de suas almas a missa seria celebrada,
pronunciou o meu nome completo.
Ao final do culto, umas pessoas amigas me abordaram a
respeito da menção indevida a meu nome. A uma delas, respondi que, quando eu
efetivamente morresse, já tinha o crédito de uma missa. Para outra, afirmei que
era sinal de que viveria ainda muito tempo, segundo a crendice popular. Terminei
achando que eu não seria eu, mas o fantasma de mim mesmo.
Por fim, disse que passaria a escrever as minhas memórias póstumas,
a exemplo do machadiano Brás Cubas. O professor Carlos Evandro falou que seria
uma missa de corpo presente sem cadáver; ou com o “defunto” vivo, acrescento
eu. Seja como for, aquele não era o meu
primeiro encontro com a “indesejada das gentes”. Já fora dado como morto e como
desenganado pelo médico em ocasiões anteriores, e já tivera alguns encontros
com a morte, e ela me desdenhara, conforme passarei a relatar.
No apogeu de minha juventude, nos meus primeiros anos
parnaibanos, mais precisamente em 1977, fui à praia de Atalaia num automóvel,
com mais quatro colegas do curso de Administração de Empresas (UFPI – Campus
Ministro Reis Velloso). Eu estava no primeiro ano e meus colegas já estavam em
períodos mais adiantados.
No retorno, o colega que dirigia o carro tentou fazer uma
ultrapassagem. A pista estava um tanto escorregadia, pois havia chovido. Parece
que o motorista pisou no freio; não sei ao certo, pois o tempo parecia passar
em velocidade vertiginosa. Sei que percebi que o carro se dirigia para fora do
asfalto. Quando voltei a mim o carro já estava parado, fora da estrada. O impacto
deve ter sido muito forte, uma vez que os pneus do carro foram sacados.
Felizmente, todos estávamos bem, sem nenhum ferimento ou contusão, pelo menos,
não de natureza grave.
Recordo que, após sair do carro, fui abordado pelo jornalista
Carlos Lobo, que passava pelo local e viera tentar nos ajudar. Algumas décadas depois,
em Teresina, quando fizera amizade com ele, puxei esse caso. Ele imediatamente
disse que se lembrava. E acrescentou, sorrindo, que eu lhe dissera: “Quando notei
que o carro ia sair da estrada, procurei tomar a posição fetal”, para melhor me
proteger. Ele achara engraçada e algo inusitada a minha expressão, e por isso a
guardara.
O jornalista e radialista Airton Alves também veio falar
comigo nessa ocasião, lamentando o acontecimento. Eu, jovem e um tanto
irreverente na época, lhe retruquei que ia comemorar, que ia “tomar meu próprio
mijo, pois havia acabado de nascer novamente”. Dias depois, eu participaria do
lançamento da obra poética coletiva Galopando. Alguns amigos disseram que o
livrinho deveria se chamar Capotando, em alusão galhofeira a esse acidente automobilístico
do qual saí ileso.
Em 1983 ou 1984, fui esperar a Fátima, na parada do Morro do
Uruguai. Ela vinha em ônibus da velha empresa Marimbá, na qual viajei muitas
vezes, que chegaria perto da meia-noite. Como o ônibus tenha se atrasado um
pouco, resolvi dar uma volta no entorno, descendo a ladeira, e depois retornando
ao ponto da parada. Minha moto era uma Honda CG-125, vermelha. No retorno, vi ao
longe as duas luzes de um carro.
Não sei por que, talvez movido por minha intuição, resolvi
olhar para trás. Vi então que o automóvel estava prestes a atingir a traseira
de minha motocicleta. Ainda jovem, decidido e hábil, sem vacilar uma fração de
segundo, virei o guidão para a direita, quando o carro, em alucinante carreira,
passou a poucos centímetros de minha moto, entre esta e o meio-fio do passeio.
Passou tão perto do canteiro central, que levantou muita poeira.
Tive a nítida impressão de que escapara de morrer, por
frações de segundos e por escassos centímetros. Ao ler um romance policial, vi
a descrição de que o protagonista escapara de morrer, quando um objeto pesado
caiu sobre o local, que ele mal acabara de deixar, ao caminhar por uma calçada.
O narrador disse que a personagem ficara com a sensação de que lhe escancararam a
caixa da vida, e lhe mostraram suas delicadas engrenagens.
Também eu, ao longo dessas décadas, fiquei com a impressão de
que, no meu quase acidente fatal, alguém me mostrara as finas e frágeis engrenagens
da vida, ou me mostrara os fios que Átropos tece, e que a qualquer instante
podem ser cortados, por capricho ou arbítrio dessa moira inflexível em seu
mister, mistério e ministério.
Fico, às vezes, pensando nas coisas, nos bens, nos cargos e
encargos e nas experiências, que adquiri ou conquistei após esse fato. Nos
poemas e outros textos, que escrevi depois; nos fatos, que não teria vivido,
nos amigos, que não teria conhecido. Fico pensando nessas coisas, nesses
mistérios insondáveis, e talvez seja melhor não pensar; pelo menos, não pensar
muito. Teria morrido moço. Talvez já estivesse quase ou completamente
esquecido, mesmo como poeta, como literato. E não teria a bagagem de experiência,
que só a velhice nos pode proporcionar. Lembro, aqui, o que dizia um amigo meu,
que já partiu para a Eternidade: quem não quiser ser velho, que morra novo. E as
coisas mais relevantes que consegui se deram após esse fato.
Em 2004, quando eu exercia a magistratura na longínqua comarca
de Ribeiro Gonçalves, foi descoberto que eu tinha um câncer no cólon do
intestino grosso. O Dr. Gil Carlos me advertiu que não existia tratamento,
exceto cirurgia. Fui operado por ele de forma exitosa, e fui submetido a
tratamento quimioterápico.
Algum tempo depois, minha saudosa amiga Clea Rezende Neves de
Melo, escritora, historiadora e professora universitária, me contou que uma
pessoa, por telefone, lhe dissera que o médico só fizera abrir meu abdômen e o
fechara imediatamente, pois nada podia ser feito, uma vez que eu estaria com metástase.
Ela acrescentou que já se preparava para comprar uma passagem
área para Teresina (THE/BSB/THE), para me rever pela vez derradeira, mas
resolveu ligar para um amigo comum, tendo ele dito que a notícia era inverídica,
porquanto eu estava fora de perigo e em franca recuperação. Tempos depois contei
essa história ao desembargador Nildomar da Silveira Soares, também já falecido,
tendo ele me dito, que chegaram a lhe dizer que eu havia falecido. Creio que me
confundiram com um outro juiz de Direito, que morrera nessa época.
Dessa forma, talvez com algum exagero, posso dizer que já
tenho alguma experiência com a velha ceifadora. Contudo, desejo que a morte,
com relação a mim, requiescat in pace.
Sempre espirituoso. Parabéns pelo delicioso texto. 👏
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