domingo, 23 de novembro de 2025

EGOCENTRISMO

Criação: IA Gemini


EGOCENTRISMO


Elmar Carvalho

 

Eu sou um homem,

diante do qual,

curvo como um

servo capacho,

eu tiro meu chapéu,

que nem sequer tenho.

Eu vendo minha

imagem refletida

no espelho não mágico

de meu quarto,

curvo-me a mim mesmo,

como um eunuco do harém

perante o sultão.

E aquela imagem,

curva ante mim,

é minha maior homenagem

que me presto.

Eu me aproximo

do espelho,

até que minha imagem egocêntrica

seja projetada no infinito. 

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Crônica à guisa de prefácio


Professor Lima Couto visto por Fernando di Casro


Crônica à guisa de prefácio


Elmar Carvalho


Conheci Paulo Couto em março de 1977, quando iniciávamos o curso de Administração de Empresas no Campus Ministro Reis Velloso (UFPI – Parnaíba). Esse campus, então, era pequeno e bonito, situado no final da Avenida São Sebastião, que hoje se prolonga para muito além.

No início do curso, como eu ainda não tivesse transporte próprio, peguei carona algumas vezes com o Paulo Couto, que usava o fusca branco de seu pai, o ilustre e erudito professor Lima Couto. Desse modo, fui várias vezes a sua casa, um sobrado que ficava no Bairro Nova Parnaíba, perto da Avenida Capitão Claro, em local próximo ao vetusto Cemitério da Igualdade. Várias vezes conversei com o velho mestre Lima Couto, sobre diversos assuntos, mas sobretudo sobre educação, literatura e poesia.

Fiquei sabendo que ele admirava Abgar Renault e o poeta norte-americano Longfellow, do qual fizera tradução. Também era admirador do poeta e místico indiano Tagore. O mestre falava de modo cadenciado, rítmico e tinha boa dicção, com gestos que pareciam reger a musicalidade de sua fala, e às vezes se expandia em seus entusiasmos, quando recitava algum poema. 

Para meu gáudio gostava do que eu publicava nessa época, mormente no jornal Folha do Litoral, cujos arquivos infelizmente se perderam, e com isso se perdendo muito da memória política, administrativa e literária de Parnaíba, o que muito lamento. Às vezes a nossa conversa se dava no belo jardim da casa, debaixo do caramanchão, em que eu sentia o agradável cheiro de rosas, lírios e outras flores. Guardo boas e emocionadas lembranças desse competente e benemérito educador. 

Na sala de aula, o culto magistrado Walter Miranda de Carvalho, barrense como meu pai, fazia, algumas vezes, referência a esses poemas que eu publicava no Folha do Litoral, e dessa forma o Paulo e os demais colegas tomaram conhecimento dessa minha vertente literária. Neste ponto, é interessante que eu transcreva o que disse o próprio Paulo Couto, em seu livro Poesias e Crônicas (2020):

“Nos anos 70, quando iniciei o Curso de Administração de Empresas na UFPI, Campus Reis Veloso, tive um colega de turma chamado Elmar Carvalho. Tenho boas lembranças de todos os colegas, mas com Elmar foi diferente. Ele era poeta e numa das muitas conversas que tivemos, ele ficou sabendo que eu tinha escrito algumas poesias. O Elmar me levou na gráfica do Jornal Norte do Piauí e lá eu conheci o proprietário Mário Meireles. Minha primeira poesia publicada foi nesse jornal.”

A partir dessa época, o Paulo passou a publicar suas crônicas e poemas no jornal Norte do Piauí, e, um pouco depois, no Folha do Litoral, onde passou a ter coluna própria, denominada Cosmo, em que publicava seus textos em prosa e versos. O jornal era semanal ou hebdomadário, como alguns gostavam de dizer, com alguma pose e certa afetação.

No final dos anos 1970, eu e o Paulo participamos de alguns eventos e publicações literárias. Marcamos presença nas coletâneas Poesias do Campus, Salada Seleta, Galopando e Em Três Tempos, juntamente com outros poetas, entre os quais posso citar Alcenor Candeira Filho, V. de Araújo, Kenard Kruel, Adrião José Neto, José Luiz de Carvalho, Ednólia Fontenele, Josemar Neres, Rubervam Du Nascimento e Paulo Machado. 

Contudo, no começo dos anos 1980, o Paulo e eu fomos aprovados em concursos públicos, ele para o Banco do Brasil e eu para fiscal da Sunab, razão pela qual ele foi residir em Elesbão Veloso e eu em Teresina. Por esses motivos, nos perdemos de vista, e só nos encontramos muito esporadicamente, cada um a enfrentar os seus percalços, que a vida nos vai ofertando, sem que os procuremos, e lutando pela criação e educação de nossos filhos.

Algumas anos depois, já aposentados, e tendo o Paulo voltado a residir em Parnaíba, voltamos a nos encontrar pessoalmente ou através das facilidades (virtuais) da internet, mormente proporcionadas pelo WhatsApp.

Ele voltou a se interessar por literatura e empreendeu alguns projetos literários e culturais, sobre os quais falarei de forma resumida: criou o Clube dos Poetas Mortais, que mantém um festejado grupo de WhatsApp, promove eventos culturais e de congraçamento, realiza saraus e lives etc.; e publicou os livros Poesias e Crônicas (2020) e Textos em Fatos e Fotos (2022), em que também coligiu textos de Vitor de Athayde Couto e José de Lima Couto. 

E agora nos surpreende com este novo livro, titulado Anos 70 na Folha do Litoral. Nele reúne crônicas, artigos, entrevistas e poemas, alguns publicados no Norte do Piauí e, a maioria, no Folha do Litoral, em que manteve a coluna Cosmo.

Suas crônicas e artigos são curtos, concisos, claros e objetivos, como recomendam os melhores manuais de redação, e sem torcicolos, pulutricas e firulas literárias. Refletem os questionamentos impostos pela condição humana, referem os fatos da época, relatam acontecimentos ou histórias interessantes, comentam filmes, livros parnaibanos, certos costumes e brincadeiras da época, bem como as principais notícias e fatos da cidade, do Piauí e do mundo. 

Também relatam a movimentação cultural de jovens intelectuais e tecem comentários sobre os jornais alternativos da cidade, entre os quais o Inovação (fundado por Reginaldo Costa e Franzé Ribeiro) e o Querela (editado pelo Fernando Ferraz). Algumas de suas crônicas têm um viés memorialístico, e abordam episódios de sua infância e adolescência. A obra enfeixa ainda algumas importantes entrevistas, umas das quais com o poeta e escritor Alcenor Candeira Filho. Enfim, os textos tratam de múltiplos e importantes assuntos.

Seus poemas têm a beleza da simplicidade, e destilam sentimentos e emoções, todavia sem nunca descambar para a pieguice. Alguns criticam o que deve ser criticado e louvam o que deve ser louvado, como no dizer de Torquato Neto, uma de suas admirações literárias. Neles sentimos o pulsar da vida, sobretudo o amor que tudo permeia e que tudo deve nortear. Mas também se referem às frustrações, às injustiças, que sempre nos atingem, ainda que indiretamente. Outros são poemas que nos instigam a pensar. E outros nos comovem, pelo que têm de pungente, humano e lírico.

Todos os textos foram publicados nos anos de 1977, 1978 e 1979 nos jornais Norte do Piauí e, sobretudo, Folha do Litoral, em sua coluna Cosmo. O livro trata de tudo, versa (quase) todos os temas.   

Quem compulsar com atenção suas páginas vai conhecer muito da Parnaíba dos anos 1970, mormente nos aspectos de sua história social, administrativa, cultural e literária, quando Parnaíba se reinventava e se preparava para superar os estertores do extrativismo.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

AS “BRAVURAS” OU BRAVATAS DE TEIXEIRA SANTOS





AS “BRAVURAS” OU BRAVATAS DE TEIXEIRA SANTOS

 

Elmar Carvalho

 

Três ou mais anos atrás, José Silva Teixeira Filho, gerente de Operações da ECT no Estado do Piauí, ofereceu-me, gentilmente, o livro Os Correios, sua Gente e Eu, de autoria de Guttemberg de Oliveira Sousa Filho, que por muitos anos trabalhou no antigo Departamento de Correios e Telégrafos – Diretoria Regional do Piauí –, depois transformado em Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Com dedicação, esforço e estudo, alcançou o cargo de técnico postal, após ter sido carteiro e chefe dessa operosa categoria. Tendo trabalhado na empresa, em Teresina, de setembro de 1975 a março de 1977, conheci muitas das pessoas que ele cita na obra; de muitas outras, ouvi falar.

Em linguagem fluente, clara, objetiva e sem firulas estilísticas, relata episódios interessantes de que participou, presenciou ou ouviu falar ao longo das várias décadas em que mourejou nessa repartição postal e telegráfica. Alguns de seus relatos têm caráter autobiográfico ou memorialístico; outros são narrativas de fatos engraçados ou anedóticos, dos quais foi testemunha ou mesmo protagonista. Contudo, teve o cuidado de evitar acontecimentos que pudessem magoar a suscetibilidade ou a honra de alguém.

Em suas histórias, revela talento para criar suspense e, dessa forma, prender a atenção do leitor até o desfecho, quase sempre surpreendente e humorístico. Nota-se também sua verve e habilidade em provocar o riso, pela maneira como urde a narrativa.

Os capítulos de sua obra, porém, não tratam apenas de “causos” jocosos ou anedóticos. Alguns são permeados pelos percalços e vicissitudes da vida; outros versam fatos notáveis da história do Piauí, sempre com certo sabor de crônica, como o que abordarei neste texto e como aquele em que discorre sobre a fazenda dos jesuítas em Santo Inácio do Piauí. Narra também um episódio anedótico em que foi protagonista a figura importante e um tanto imponente de Lucílio Dantas Avelino, sempre vestido à moda antiga.

Entre os fatos de que foi protagonista ou participante, houve um em que ele teria permitido que o advogado Alarico da Cunha Júnior, diretor da SUDENE no Piauí, adentrasse uma área destinada exclusivamente a funcionários. Guttemberg explicou ao responsável por resolver o problema que não autorizara a entrada do Dr. Alarico e que sequer o vira penetrar na área em questão.

O caso foi dado como solucionado. Contudo, no expediente da tarde, ele foi abordado por Antônio Teixeira Santos, chefe do Tráfego Postal (CHP), que lhe disse que, em outra oportunidade, mandasse sair quem quer que entrasse em área proibida. Guttemberg perguntou se deveria fazer sair até mesmo o governador do Estado, ao que Teixeira, de forma peremptória, respondeu:

“Até o Presidente da República. Aqui, no seu trabalho, a autoridade dele é menor que a sua.”

O nosso autor pediu desculpa pela sinceridade, mas afirmou não acreditar na “conversa bonita”, nem mesmo para lhe ser agradável. Confessou que não teria coragem de “cutucar o cão com vara curta”, como diz o ditado popular. Aproveitou para lhe contar a fábula dos ratos e do gato, em que um dos ratos teria de colocar um chocalho no felino para alertar os demais. Um velho e experiente rato, então, pergunta: “Mas quem põe o guiso no gato?”

Teixeira Santos, com muita ênfase e voz potente, retrucou:

“Eu cutuco o Cão com vara curta, eu ponho o chocalho no gato!”

Guttemberg retrucou que, se o Presidente da República, o governador do Estado, o presidente do Tribunal de Justiça, um ministro de Estado ou outra autoridade desse quilate entrasse em sua seção, chamaria Teixeira para que ele convidasse a autoridade a retirar-se. Teixeira não “amarelou” e afirmou que ficava à sua disposição.

Para deixar tudo às claras, o autor narrou um fato acontecido em 1937, na época da instauração do Estado Novo, quando Getúlio Vargas passou a governar com poderes ditatoriais. O interventor federal Leônidas Melo solicitou ao diretor regional dos Correios e Telégrafos que seus telegramas lhe fossem entregues pessoalmente. O diretor recomendou aos estafetas que somente o governador os recebesse, mediante assinatura legível.

Recorri à regional da ECT no Piauí para saber o nome desse diretor (*), mas seu nome não foi descoberto. Em Trechos do Meu Caminho (2ª edição, p. 275.), seu excelente livro de memórias, Leônidas lhe faz referência elogiosa, mas sem lhe mencionar o nome: “Eu mantinha íntimas relações com o Diretor dos Telégrafos. Era homem de compostura e responsabilidade, pessoa merecedora de inteira confiança.”

Algum tempo depois, numa tarde de sábado, achando-se no Palácio de Karnak o interventor federal, várias autoridades e o diretor dos Correios e Telégrafos, um estafeta foi entregar um telegrama destinado a Leônidas. O chefe da Casa Militar disse que poderia recebê-lo, mas o mensageiro replicou que só o entregaria ao destinatário em pessoa.

O coronel Torquato Pereira de Araújo conduziu o estafeta até Leônidas, que rubricou o recibo. O mensageiro, porém, não lhe entregou o telegrama, alegando que ele não “assinara direito”, apenas rubricara. O governante sorriu e assinou por extenso, de forma legível.

O diretor pediu desculpas ao interventor, dizendo que o carteiro era ignorante e grosseiro, e que seria severamente punido. Leônidas, porém, disse gostar de sua atitude, pois cumprira fielmente sua missão.

Teixeira Santos, que ouvira atentamente a história, exclamou:

“Gostei do mensageiro. Cabra macho! Não sou diretor e não vou pedir desculpas a nenhuma autoridade em caso semelhante. Se o senhor João Belchior Marques Goulart, atual Presidente da República, penetrar nesta seção sem a devida autorização, ponha-o fora ou me chame, que eu o porei.”

Pelo visto, ou ouvido, Antônio Teixeira Santos era também um cabra macho — tanto quanto, ou mais do que, o carteiro — ou seria apenas um grande falastrão e fanfarrão.

Cursava a Faculdade de Direito e cultivava amizade com advogados e outros operadores do Direito, inclusive magistrados.

Por essa época, início dos anos 1960, era figura proeminente de Teresina o desembargador Robert Wall de Carvalho, filho do Des. Cromwell Barbosa de Carvalho e de Virgínia Wall de Carvalho, professor da Faculdade de Direito, membro da Academia Piauiense de Letras, presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, e que, na década seguinte, viria a ser o primeiro reitor da Universidade Federal do Piauí.

Um carteiro comunicou ao chefe Guttemberg que essa alta autoridade adentrara a Seção de Carteiros à procura de uma carta registrada que já deveria ter chegado. O nosso bravo autor disse ao carteiro para informar ao desembargador que iria encontrá-lo em breve para resolver o problema. Em seguida, foi procurar Teixeira Santos, chefe do Tráfego Postal, e lhe disse:

“O presidente João Belchior Marques Goulart invadiu a Seção dos Carteiros e está sentado à minha mesa. Vim chamá-lo para que o senhor o ponha fora.”

Deixemos que ele mesmo conte o que se passou:

“Levantou-se a queima-roupa e foi dizendo: ‘Sai agora mesmo!’ Seguimos, e, ao avistar o invasor no fundo da sala, acenou os dois braços como um gavião quando quer pegar a sua vítima. Eu, pasmado ao ver aquela cena nunca pensada, disse comigo mesmo: ‘Valha-me Deus, o homem enlouqueceu! Vai partir para a violência, parece que vai arrastá-lo porta afora.’”

Parecia uma cena dantesca, como diria o condoreiro Antônio Frederico de Castro Alves. Guttemberg chegou a esperar que Teixeira Santos trucidasse o desembargador Robert Wall de Carvalho. Criou-se enorme suspense. Deixemos que ele próprio finalize o que, então, de forma surpreendente, se passou:

“Abriu os braços para fazer uma saudação calorosa e foi dizendo: ‘Que honra tê-lo aqui em nosso meio! Em que lhe posso ser útil?’ E me apresentou: ‘Guttemberg, chefe de turma, incumbido da entrega da correspondência’. Após os cumprimentos, o desembargador voltou-se para mim com aquela voz grossa e austera: ‘Seu descobridor da imprensa, descubra o meu registrado nº (...), pois preciso tê-lo em mãos com urgência.’”

Feitas as devidas buscas, o autor descobriu que o registrado fora entregue à Academia Piauiense de Letras, da qual o magistrado era membro.

O nosso “Robespierre postal” acompanhou o desembargador Robert Wall de Carvalho, entre mesuras e reverências, até o automóvel oficial. Quando retornou, sacudindo a cabeça e sorrindo, ainda transmitiu esta lição a Guttemberg:

“Ninguém bota um bichão desses para fora; ninguém o convida a retirar-se. Aquele caso do diretor da SUDENE foi frescura da filha do Ferreira. Não precisava aquela guerra por um caso tão fútil. Criticar é muito fácil; realizar é que é o problema.”

Dada a lição, tocou mansamente o ombro de Guttemberg de Oliveira Sousa Filho e se retirou.

Quanto ao livro Os Correios, sua Gente e Eu, ele está a reclamar uma nova e boa edição, após 27 anos da primeira — seja patrocinada pelos descendentes do autor, seja pela ECT/Piauí. 

(*) Segundo pesquisa realizada hoje (19/11/2025), com o auxílio do ChatGPT, o nome mais provável para o cargo de diretor (ou administrador) dos Correios e Telégrafos no Piauí, no período mencionado, é Antônio Vieira de Carvalho.

domingo, 16 de novembro de 2025

TRAGICOMÉDIA

Criação: IA Gemini

 

TRAGICOMÉDIA


Elmar Carvalho

 

Preso no

ventre estreito

do Universo,

tenho um acesso

de claustrofobia.

Fruto mau

de árvores boas,

sou estéril

(para não ter maus frutos).

Nasci prematuramente

e morrerei depois

da hora.

(Sou teimoso como

um joão-teimoso.)

Guiado por cego

e conversando com

surdo-mudo,

fui tachado de

débil mental.

Mas isto é um

eufemismo:

eu sou mesmo é

um doido varrido,

por força da necessidade.

Sou triste.

Mas eu vejo a tristeza

como lágrimas

nos olhos do diabo. 

           Pba. 09.77

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

DA BARRA DO LONGÁ AO CÉU




DA BARRA DO LONGÁ AO CÉU


Elmar Carvalho

 

Fui a Buriti dos Lopes em companhia da Fátima, do Dico e do Natim, onde eles pretendiam resolver problema de interesse deles, o que terminou não dando certo, porquanto a pessoa que seria contactada havia viajado para o Ceará. Por essa razão, resolvemos visitar a localidade Barra do Longá, que há mais de duas décadas não víamos. Apenas parte da estrada foi asfaltada, o que nos remete à velha cultura das obras eleitoreiras inacabadas. O povoado estava bastante mudado.

 

Quando o conheci, trinta anos atrás, era uma povoação simples, com poucas casas de taipa e cobertura de palha. Hoje, possui muitas casas, quase todas de tijolos e cobertas de telhas. As casas de palha já quase não existem. Seu nome se deve ao fato de ser o local onde o rio Longá deságua no Parnaíba, depois de banhar municípios como Alto Longá, onde nasce, Campo Maior, Barras e Buriti dos Lopes. Em Esperantina e Batalha, ele forma a bela e turística cachoeira do Urubu, que só se precipita na época das chuvas, quando dá um magnífico espetáculo de águas revoltas e espumantes, cujo som atroa de forma quase assustadora.

 

Lamentavelmente, é um rio que vem sendo agredido de forma devastadora, a partir das nascentes, que se encontram bastante degradadas. Quando o “inverno” é fraco, suas águas já não correm em toda extensão de seu leito. Poucas pessoas se preocupam com sua degradação; entre esses poucos homens de boa-vontade se destaca o médico humanitário, boa-praça e intelectual Itamar Abreu Costa, cujo nome declino como justa homenagem a ele.

 

Logo se nota, sem nenhuma dificuldade, já que os monturos são ostensivos, que o crescimento do povoado trouxe as indesejáveis mazelas do chamado “progresso”. Ao longo da margem direita, na parte urbanizada, o lixo se acumula de forma feia e repulsiva, com amontoados de sacos plásticos, garrafas pete, vidros, latas de alumínio, etc. Também a poluição sonora, tanto pelo volume do som como pela qualidade da “música”, começa a incomodar.

 

Um cantor, com voz gritada, esganiçada e estridente falava no rio Araguaia, e não no Longá ou no Parnaíba. Na faixa seguinte, em evidente exagero e ufanismo, dizia que ia acabar com a cachaça. Comentei para o Dico e o Natim, que sua missão seria inglória; que era mais fácil ele se acabar, do que vencer a gigantesca produção alcoólica existente.

 

Preferimos terminar o passeio no Céu. Não no céu onde os anjos entoam belos cânticos ao Senhor, mas na localidade Céu, na Ilha Grande de Santa Isabel, no restaurante do Zé Nilson, a degustar uma saborosa galinha caipira.

5 de janeiro de 2011

domingo, 9 de novembro de 2025

LÍRICA 2.222

Criação: IA Gemini


LÍRICA 2.222


Elmar Carvalho

 

Eu vi teus olhos

de pedras verdes musgosas,

dissolvendo-se em líquido

no verde móvel do mar.

Teu corpo vi tomando

a forma da praia

e a tua voz assumindo

a cadência da música

das ondas.

 

De você me veio

uns longes veios de saudades

e maresias

invadindo meu ser.

 

Os teus cabelos

eram loiras algas,

encrespadas em ondas do mar.

 

As curvas

da terra e do mar

são apenas projeções

da poesia selvagem de teu corpo.

 

Sim, sinto ainda te amar

a leste, oeste, ao vento e ao mar,

com a mesma paixão incontida

de um gesto feito de raiva,

do tempo em que eu tinha

a inocência e o pecado

de um deus feito de pedra.

            Pba, 19.03.78 

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Teresina - Tempo e Memória projetado no Liceu Piauiense

 



Lançamento do documentário Teresina – Tempo e Memória

 

Ontem, 03 de novembro de 2025, às 10h30, foi exibido, no auditório do Liceu Piauiense (CETI Zacarias de Gois), o documentário Teresina – Tempo e Memória, produzido e realizado por Elmar Carvalho e Claucio Ciarlini. O vídeo teve roteiro e narração de Elmar Carvalho, com edição de Claucio Ciarlini. Nele são relatadas as memórias fragmentadas do roteirista, de meados da década de 1960 aos dias atuais, de forma breve e intensa. Aparecem na narrativa e nas imagens circunstâncias e episódios memorialísticos, bem como paisagens arquitetônicas, urbanísticas e naturais de Teresina.

 

O auditório estava lotado de alunos do velho Liceu e de alguns professores — inclusive de História e Literatura —, além dos seguintes membros da Academia Piauiense de Letras: Fides Angélica Ommati (presidente), Carlos Evandro Martins Eulálio e Marcelino Leal Barroso de Carvalho, que tomará posse de sua cadeira ainda neste mês. O diretor do colégio, professor Jair Pinheiro, fez a apresentação do documentário e de seu roteirista e narrador.

 

Após a exibição, Elmar Carvalho teceu algumas explicações sobre o documentário e disse que o vídeo foi feito apenas “com algumas ideias na cabeça” e uma câmera de celular, além da utilização de imagens criadas por inteligências artificiais, resultando, contudo, em um excelente trabalho de edição, realizado pelo poeta e escritor Claucio Ciarlini. Alguns alunos fizeram perguntas, que foram respondidas por Elmar Carvalho.

 

Também fizeram uso da palavra a presidente da APL, Fides Angélica, o professor Carlos Evandro e a professora Teresa, do Liceu Piauiense.

 

O documentário foi muito aplaudido pelos alunos do velho educandário, que aparece de forma privilegiada no vídeo, em virtude de nele ter estudado o roteirista aos 17 anos de idade, quando se deslumbrou com o belo auditório e suas sedutoras cariátides, que lhe parecem sustentar o teto.   




domingo, 2 de novembro de 2025

NA NOITE

Criação: AI Gemini

NA NOITE


Elmar Carvalho

 

Na noite

um sapo coaxa.

Uma puta triste

acha graça. Acha graça.

Um galo

às desoras desfere um canto

fora de hora. E chora.

Um cão ladra por nada:

nenhuma cadela no cio.

O silêncio

grita como louco

na concha acústica

dos labirintos dos ouvidos moucos

por onde um Teseu lasso caminha

em busca do Minotauro – perdido

sem o fio de Ariadne –

conduzido por outro fio

que parte / se parte e

se reparte entre o ser

e o não ser.

E os gritos de Teseu

arrancam ecos

que já ecos de si mesmos

se repetem se repetem

até a mais completa

absoluta exaustão. 

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

DISCURSO DE LANÇAMENTO DE DIÁRIO INCONTÍNUO




DISCURSO DE LANÇAMENTO DE DIÁRIO INCONTÍNUO                              

Elmar Carvalho


Fui inoculado pelo vício da leitura aos nove ou dez anos de idade, quando, por um curto período, fomos morar numa zona rural de Campo Maior. Acostumado à movimentação e às diversões da cidade, fui acometido de forte tristeza. Voltei-me, então, para os livros da pequena biblioteca de meu pai, que depois, em suas viagens semanais ou quinzenais à cidade, me trazia outros volumes — tanto da biblioteca do Grupo Escolar Valdivino Tito quanto da de minha madrinha Mirozinha, prima legítima de minha mãe, que lecionava nesse colégio.

Em face dessas leituras, contraí a “vocação” de um dia ser escritor. Logo comecei a escrever pequenos textos em verso e em prosa, sobretudo crônicas e contos. Aos dezesseis anos, a pedido de meu pai, que mantinha boas relações com os diretores do jornal A Luta, de Campo Maior, tive algumas crônicas e contos publicados nesse periódico.

Entre as minhas leituras favoritas estavam obras de poesia e de ficção, inicialmente os textos que se encontravam nas antologias escolares de meu pai. Na pequena biblioteca paterna havia romances, contos e até mesmo um livro sobre a história da literatura brasileira. E havia o então célebre romance O Mártir do Gólgota, de Pérez Escrich, que narrava a vida de Jesus, baseada nos Evangelhos e na tradição — e, creio, também em evangelhos apócrifos.

Quando bem criança, consta que rasguei algumas páginas desse romance, de modo que, na época em que o li, parcialmente, ficava ansioso e triste por perder a sequência das histórias narradas. Papai tentou consegui-lo novamente, para que eu o lesse na íntegra, mas sem sucesso. Somente em plena maturidade consegui comprar um exemplar usado.

Embora tivesse interesse por vários temas, como história e ciência, ainda jovem senti que algum dia escreveria textos memorialísticos. Assim, para me adestrar nessa seara, passei a ler obras como diários, memórias, autobiografias e até mesmo autoficções — memórias fictícias e “quase memórias”.

Dessa forma, li, entre outros: Humberto de Campos, Pablo Neruda, Josué Montello, Pedro Nava, Gilberto Freyre, Sebastião Nery, Saulo Ramos, José Sarney, Jorge Amado e Gabriel García Márquez. Entre os piauienses, li Leônidas de Castro Melo, Carlos Augusto Monteiro e Higino Cunha.

Degustei Memórias, que considero um dos melhores livros no gênero, na segunda metade da década de 1970, por empréstimo de Alcenor Candeira Filho. No final dessa década, ou início da seguinte, visitei o professor, jornalista e escritor Antonio Gallas Pimentel e lhe disse que desejava reler o livro, mas não o encontrava à venda. Ele me mostrou uma coleção das obras quase completas de Humberto de Campos — bem impressa, em capa dura — e, generosamente, quis me ofertá-la. Relutei, alegando que era um presente de considerável valor, mas ele respondeu que, se eu não aceitasse, daria a outro. Não tive mais como recusar. Essa amizade me fora recomendada pelo professor Joaquim Furtado de Carvalho, primo de meu pai.

Três décadas depois, perto da Banca do Louro, encontrei o engenheiro e auditor-fiscal do Trabalho Paulo César Lima com um belo exemplar de Memórias e Memórias Inacabadas, de Humberto de Campos, autografado pelo desembargador maranhense Lourival Serejo. Pedi-lhe para folhear; ao devolvê-lo, ele insistiu que eu ficasse com o exemplar, dizendo que me seria mais útil. Um ano depois, em 15/10/2011, o Fonseca Neto me presenteou com os dois volumes do Diário Secreto, do mesmo autor, publicado pelo Instituto Geia em 2010.

Nos gêneros da autoficção, das memórias fictícias e das “quase memórias”, tive o prazer de ler Fontes Ibiapina, Condessa de Ségur, Carlos Heitor Cony, Alberto da Costa e Silva, Machado de Assis, Syrie James (Os Diários Secretos de Charlotte Brontë) e Manuel Antônio de Almeida. Entre as obras de ficção de alguns desses autores estão Memórias de um Sargento de Milícias, Memórias de um Burro, Memórias de um Canário e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Com essas e outras leituras, além do estudo de teoria e crítica literárias, julguei-me preparado para escrever o meu Diário Incontínuo e o romance Histórias de Évora. Este último é uma obra de ficção, embora muitos leitores me perguntem se não existem passagens autobiográficas. É claro que sim — afinal, ninguém cria do nada. Acredito que nem mesmo Deus cria do nada, já que Ele é tudo, e tudo cria a partir apenas de Sua vontade.

O escritor, crítico literário e professor Cunha e Silva Filho, com sua reconhecida argúcia e faro quase detetivesco, ainda no início da publicação sequenciada e virtual do livro, percebeu e aplaudiu a diversidade temática e de interesses do Diário, inclusive quanto às artes plásticas. Postou, em 13/02/2010, o seguinte comentário:

“Por isso, gostei do seu comentário, revelador de um amplo interesse pelas artes em geral e, no caso específico, pela escultura e suas implicações com movimentos de vanguarda que deixaram marcas indeléveis nas múltiplas formas de criação artística. Sei também quanto aprecia a pintura — um Dalí, por exemplo. Não é verdade, amigo? Explore bem esse lado de crítica das artes; lhe cabe bem. Boa surpresa do seu intelecto.”

O Diário Incontínuo, apesar do título, é uma sequência de crônicas memorialísticas que escrevi de 17/01/2010 a 25/02/2016. Portanto, em grande esforço de disciplina e constância, produzi esses textos durante pouco mais de seis anos. Nos primeiros meses, escrevia três por semana; depois, reduzi para duas e, mais adiante, apenas uma.

Vejamos o que disse Carlos Evandro Martins Eulálio sobre o livro, em seu “luxuoso” e pertinente prefácio:

“As crônicas do Diário Incontínuo, marcadas pelo profundo exercício da memória, ocuparão um lugar de destaque na produção literária de Elmar Carvalho. Autor de uma obra em construção, como ele próprio insiste em afirmar, agora, como cronista de refinada sensibilidade de poeta, desvenda o texto como espaço de reflexão com discreto toque de ironia e acentuado requinte de bom humor, a partir de suas vivências e percepções acumuladas ao longo do tempo.”

Não quis, em meu livro, misturar verdade e invenção, realidade e ficção. Porfiei em dizer a verdade — ou, pelo menos, a verdade possível, porquanto, algumas vezes, incorporamos como memórias próprias fatos de que apenas ouvimos falar. São as chamadas falsas memórias. Entretanto, certas omissões são inevitáveis, tanto para não ferir os outros quanto a nós mesmos. A memória é seletiva — e um diário não comporta tudo.

O estopim para esses textos podia ser uma simples conversa, uma leitura, um sonho, uma lembrança insólita e imprevista ou um insight.

Para não me repetir, transcrevo o que escrevi em minha apresentação:

“Dessa forma, ao longo de seis anos (2010–2016), transpus para estas páginas muito da vida cultural, artística, literária e social do Piauí, motivado, como disse acima, por diferentes fatores. Narrei eventos artísticos e culturais, mormente os literários; comentei alguns livros lançados nesse período; referi-me a personalidades literárias e históricas, algumas ainda vivas, outras pertencentes a um passado mais remoto. Sem dúvida, alguns desses registros são quase resenhas de obras literárias e breves perfis biográficos, embora recheados de outros ingredientes e condimentos.

(...)

Em resumo, embora mantendo, assim espero, o formato de um diário, na realidade o que fiz mesmo foi uma sequência de crônicas, escritas durante esses seis anos, de diferentes tamanhos e conteúdos, referindo-se a tempos atuais e a tempos remotos, idos e vividos.

Algumas poderiam ser consideradas memorialísticas, confessionais, narrativas, contos, “causos”, críticas, breves ensaios, comentários, depoimentos, sonhos, devaneios ou simples relatos de fatos recentes ou antigos, alguns históricos.

Contudo, nenhuma poderia ser rotulada de ficção.” 

(*) Reconstituição de meu discurso, pronunciado a partir de roteiro mnemônico, no auditório da Academia Piauiense de Letras, em 25 de outubro de 2025.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

APRESENTAÇÃO DE O NÁUFRAGO, de Edilson Sousa Jr.

José Luiz de Carvalho, Edilson Sousa Jr., Elmar Carvalho, Claucio Ciarlini e Antonio Gallas


APRESENTAÇÃO DE O NÁUFRAGO, de Edilson Sousa Jr.


Elmar Carvalho

 

“Venho de longe a contornar a esmo, / O cabo das Tormentas de mim mesmo.” (Paulo Bomfim)

 

Sim, senhores, com esses versos de Paulo Bomfim quero lhes dizer que venho dos confins do início da segunda metade do século passado e já estou a contornar o cabo Bojador do primeiro quartel deste século XXI.

Conheci o autor, Edilson Sousa Júnior — médico, professor e educador exemplar —, graças à mediação do jornalista e escritor Zózimo Tavares. Edilson é médico do corpo, mas também da alma, por ser um ser humano acolhedor, bondoso e cordato. É um cidadão cordial, no sentido etimológico da palavra: age com o coração. Como professor universitário (UFPI), procura seguir o adágio mens sana in corpore sano, tanto em relação a seus pacientes quanto a seus alunos.

Recordo aqui uma anedota contada por meu amigo e poeta Alcenor Candeira Filho. Um jovem professor lhe disse, com exultação e certo orgulho, que nos seus primeiros meses de magistério nunca precisara fazer anotações ou esquemas mnemônicos para dar aula. Mestre Alcenor, com sua proverbial franqueza, respondeu que, em suas três décadas de docência, nunca deixará de preparar um roteiro para suas aulas.

Esse episódio me fez lembrar outro fato, presenciado pelo professor e escritor Carlos Evandro Martins Eulálio, que ouviu de uma antiga mestra de Didática Pedagógica o seguinte conselho: “Difícil não é preparar aula, mas dar aula sem preparar.”

Cito essas duas histórias verídicas para dizer que Edilson Sousa Júnior prepara suas aulas, embora seja um professor naturalmente preparado por sua experiência de médico e por seus altos estudos — doutorado e pós-doutorado.

Não quero fazer spoiler, e tampouco há necessidade disso, pois basta ler seu romance. Ele é um narrador competente, que elaborou a trama e as narrativas com clareza, sem ciladas, sem armadilhas e sem complicações sibilinas ou enigmáticas.

Também não desejo repetir o que já disse em meu prefácio. Todavia, julgo importante transcrever os dois trechos seguintes:

“De certo modo, vejo em sua envolvente narrativa — tanto no enredo principal como em muitos de seus entrechos — algumas pitadas do que se costuma rotular como romance histórico e romance-reportagem, porém sobressaindo-se sempre, e com muita ênfase, a imaginação e a criatividade do autor; vale dizer, sua inventividade de ficcionista. Todavia, que fique bem claro: este romance é uma comovente reflexão sobre os naufrágios que se manifestam em diferentes etapas da existência — sejam eles perda material, desilusão de sonhos ou o esmaecimento de uma era.”

“Faz uma verdadeira imersão na história e no cenário da Segunda Guerra Mundial. O naufrágio real do navio é, na verdade, uma metáfora do fator humano — com suas misérias, virtudes e vicissitudes — e da decadência da opulenta cidade de Parnaíba no apogeu do extrativismo econômico, quando essa urbe ergueu imponentes prédios empresariais e magníficos casarões solarengos e majestosos sobrados ou palacetes, que ainda hoje nos encantam, conquanto muitos se encontrem em estado de (quase) ruína.”

O romance tem como pano de fundo o início da decadência do extrativismo econômico, num recorte cronológico que se estende de 1942 a 1952, período em que o protagonista viveu em Parnaíba. Desejo traçar um paralelo entre ficção e realidade, evocando as lembranças que sua leitura me despertou — de leituras, fotografias e do que ainda pude testemunhar. O naufrágio do navio pode também ser lido como metáfora da decadência econômica da velha urbe, que mais tarde ressurgiria, de outro modo, como uma nova fênix nada mitológica.

Na obra há uma bela descrição da velha Amarração, atual Luís Correia, nos anos 1940. Renato Castelo Branco, em Tomei um Ita no Norte, descreve a Parnaíba dessa época, mas não menciona Amarração. Já Humberto de Campos, no capítulo “De novo em Parnaíba”, de Memórias Inacabadas, traça uma linda aquarela dessa povoação marítima, quando retornou de São Luís a Parnaíba por curto período.

Por falar nessa obra memorialística, li Memórias na segunda metade da década de 1970, por empréstimo de Alcenor Candeira Filho. No final dessa década, ou início da seguinte, visitei o professor, jornalista e escritor Antonio Gallas Pimentel e lhe disse que desejava reler o livro, mas não o encontrava à venda. Ele me mostrou uma coleção das obras quase completas de Humberto de Campos — bem impressa, em capa dura — e, generosamente, quis me ofertá-la. Relutei, alegando que era um presente de considerável valor, mas ele respondeu que, se eu não aceitasse, daria a outro. Não tive mais como recusar. Essa amizade me fora recomendada pelo professor Joaquim Furtado de Carvalho, primo de meu pai.

Três décadas depois, perto da Banca do Louro, encontrei o engenheiro e auditor-fiscal do Trabalho Paulo César Lima com um belo exemplar de Memórias e Memórias Inacabadas, de Humberto de Campos, autografado pelo desembargador maranhense Lourival Serejo. Pedi-lhe para folhear; ao devolvê-lo, ele insistiu que eu ficasse com o exemplar, dizendo que me seria mais útil. Um ano depois, em 15/10/2011, o Fonseca Neto me presenteou com os dois volumes do Diário Secreto, do mesmo autor, publicado pelo Instituto Geia em 2010.

Quando fui morar em Parnaíba, em 1975, muitas das antigas empresas parnaibanas ainda funcionavam, embora algumas já estertorassem. Pertenciam a tradicionais famílias locais — Pedro Machado, Moraes S.A., Moraes Souza, Marc Jacob, Franklin Veras, Poncion Rodrigues e Palácio dos Móveis. A altíssima chaminé da Moraes já não soltava seu penacho de fumaça, e as demais também se extinguiram.

A Casa Inglesa, que pertencera a Paul Robert Singlehurst (o “Paulo Inglês”, de longa e frondosa barba profética), falira, creio, no final da década de 1960. No final do século XIX, passou a ser propriedade de James Frederick Clark, que a expandiu e fez dela a mais importante empresa do Piauí. Com sua morte, filhos e netos assumiram a direção. Em meados da década de 1970, um amigo — sobrinho de uma senhora com acesso à antiga sede — possibilitou-me visitá-la. Pude, então, vislumbrar o que era realmente luxo e opulência.

O “náufrago” do romance chega a Parnaíba em 1942 e hospeda-se na Casa Inglesa, cujos proprietários estavam em viagem. Dali podia observar o movimento de embarcações, vareiros, estivadores, porcos-d’água, embarcadiços, comerciários, comerciantes e aguadeiros. Perto dali, na Quarenta e na Munguba, ficavam os cabarés do chamado baixo meretrício — personagens que Assis Brasil retratou em Beira Rio Beira Vida e Souza Lima em Vareiros do Parnaíba e Outras Histórias. Sobre esta última obra escrevi:

“Em seus relatos e episódios, extraídos da memória — como ele próprio o diz —, o autor se reporta a essa época de intensa movimentação comercial no Porto Salgado e no entorno do Porto das Barcas, com o trabalho e o burburinho de embarcadiços, carregadores, comerciários, comerciantes e compradores. Nas imediações ficavam os prostíbulos da Munguba e da Quarenta.”

Descrevi essa movimentação no Postal III de meu poema 3 Postais de Parnaíba, que recito em homenagem ao amigo Edilson Sousa Júnior:

 

POSTAL III

Hoje o Porto Salgado

 sal’do nominal

 do naufrágio

de uma barcaça de sal

é salamargo na lembrança

dos vareiros e embarcadiços.

E a água do Igaraçu

é uma lágrima de saudade

 (ou sal’dade?)

do fastígio de outrora.

Os parcos barcos são

poemas de chegadas e partidas

e símbolos da decadência.

 

Em 1834, segundo a historiadora Júnia Motta Antonaccio Napoleão do Rego, havia dois estaleiros em Parnaíba para construção de embarcações — sumacas, escunas e brigues — que navegaram o Igaraçu em épocas distintas. Depois vieram rebocadores, alvarengas, canoas, vapores, barcos do tipo gaiola e balsas, que só faziam a viagem de vinda; após o descarregamento, eram desmanchadas para a venda dos talos de buriti.

Na segunda década do século passado começou a luta pela construção da Estrada de Ferro Central do Piauí (EFCP). Poucos quilômetros foram concluídos nos anos de 1915 e 1916. Em 1923 a maria-fumaça chegou a Piracuruca; em 1933, a Piripiri. Embora a estação de Campo Maior date de 1952, o trem só chegou efetivamente em 1966. Em Teresina, apenas no fim da década de 1960 — quando as rodovias já se consolidavam. Nosso trem, pode-se dizer, perdeu o bonde da história; mas isso já é outra história.

O protagonista trabalhou na estação ferroviária, onde conheceu Nestablo Ramos — aviador, pintor, desenhista e empresário, autor de ilustrações para o Almanaque da Parnaíba, fundado em 1924 por Bembém e ainda hoje publicado pela Academia Parnaibana de Letras. Nestablo era amigo de R. Petit, colaborador do anuário desde o primeiro número.

É plausível supor que, em seus deslocamentos, Anton — o protagonista, travestido de Pablo — tenha conhecido intelectuais como Antônio Otávio de Melo, R. Petit, Lívio Pacheco, Francisco Aires, Armando Madeira, Roberto Lopes, Jesus Martins, Benu Cunha, Edison Cunha, José Euclides de Miranda, Alarico da Cunha e Francisca Montenegro. Certamente teria ouvido as estórias do mitômano e mistificador professor Amstein, cujas narrativas lembravam as de Trancoso e do Barão de Münchhausen.

Nestablo, amigo do náufrago, tornou-se uma das grandes admirações de Edilson Sousa Júnior, que planeja escrever-lhe a biografia. Era um verdadeiro polímata, ativo nas artes visuais e musicais, no empreendedorismo e na aviação.

Membro do Aeroclube de Parnaíba, certamente conheceu o aviador Paulo — malabarista do espaço, que realizava loopings, “folhas secas” e voos rasantes, chegando ao cúmulo de passar entre as torres da Catedral de Nossa Senhora das Graças, na Praça da Graça. Por essas ousadias, segundo Tonga (Antônio da Cunha Miranda), ganhou a alcunha de Paulo Doido.

Nestablo nasceu em 27 de março de 1887, em Alcântara (MA), e encantou-se em 30 de julho de 1948, nos céus de Parnaíba, ao desferir seu último voo — vítima de infarto fulminante.

R. Petit (Raimundo de Araújo Chagas), desde o número inaugural, foi o poeta mais emblemático do Almanaque. Recentemente, o escritor e advogado Filadelfo Barreto, seu neto, produziu uma primorosa obra biográfica e crítica — de leitura agradável e atraente, quase um romance.

Aconselhado pelo prefeito de então, também médico, o poeta foi orientado a deixar Parnaíba, por haver contraído lepra (ou hanseníase, como se diz hoje). Caso contrário, seria internado compulsoriamente — à época, uma espécie de prisão perpétua.

Acredita-se que o vate, esgueirando-se pelas sombras e frestas de certa madrugada fria de 1944, tenha deixado sua muito amada Parnaíba para nunca mais retornar.

Em R. Petit: Vida e Poesia, Filadelfo Barreto cita Berilo Neves:

“Parnaíba jamais cometeu o erro de fazer do ouro a razão do seu destino e o fim de sua existência. R. Petit versejava entre dois embarques de cera de carnaúba e, por entre pilhas de fardos de algodão, explorava seu próprio talento.”

Assim, poetas e escritores inspiravam-se e transpiravam; cortejavam as musas e laboravam com afinco.

Tendo o protagonista chegado a Parnaíba em 1942, deve ter tomado conhecimento da construção do Canal de São José — uma arrojada obra do empresariado parnaibano, recentemente concluída. Era um sonho antigo, que visava encurtar a distância para Tutóia e tornar o Igaraçu mais caudaloso, melhorando, assim, a navegabilidade e permitindo o tráfego de embarcações de maior calado.

Consultei o confrade e amigo Felipe Mendes sobre quando o canal teria sido finalizado. O grande economista e professor, de forma diligente e rápida, enviou-me a seguinte transcrição da página 183 da primeira edição do livro Geografia Física do Piauí, de João Gabriel Baptista:

“Para encurtar a distância entre as cidades de Tutóia (MA) e Parnaíba (PI), o governo construiu, entre 1930 e 1940, o Canal de São José, cortando a Ilha Grande de Santa Isabel — canal este que Dodt e Iglesias haviam previsto como necessário. O antigo leito do Igaraçu, a montante do encontro com o São José, está se obstruindo e, em breve, esta parte da ilha estará incorporada ao continente, com uma pequena lagoa ribeirinha.”

Além do esforço dos comerciantes de Parnaíba, consta que o senador Joaquim Pires Ferreira, barrense, conseguiu repassar verbas federais para que essa notável e importante obra pudesse ser concluída.

Não fosse o Canal de São José, creio poder dizer que, hoje, o Igaraçu praticamente já não existiria — como já não existe em muitos trechos a montante de seu encontro com esse canal —, o qual deu perenidade, força e beleza ao velho Igaraçu, no trecho em que ele corta o bairro São José, a Quarenta, a Munguba, o Porto das Barcas e a glamourosa Beira Rio, em demanda do Atlântico e da lírica e bucólica Amarração.

Desse modo, eu poderia dizer que, se o Egito é uma dádiva do rio Nilo, o Igaraçu, tal como o conhecemos hoje, é uma dádiva do Canal de São José, que continua a lhe injetar água, vida, vigor e encanto.

Finalizando minhas palavras, posso afirmar que este romance foi feito com esmero e muita dedicação, posto que seu autor lhe concedeu muitos anos de pesquisa, de labor e de lavor em seu escrito. Sua linguagem é clara e direta, sem preciosismos estilísticos ou gramaticais. As frases são elegantes, fluentes, claras e objetivas, de modo que sua interpretação é quase sempre instantânea.

Médico respeitado, seguiu, na sintaxe e na urdidura da trama e dos entrechos, as melhores lições da precisão cirúrgica: seus períodos são precisos e concisos, com cortes e arremates aplicados no local exato, com suturas perfeitas, que terminam por lhe dar elegância e beleza.

(*) Reconstituição de meu discurso, pronunciado a partir de roteiro mnemônico, no auditório Testa Branca da Academia Parnaibana de Letras, em 17 de outubro de 2025.   

domingo, 26 de outubro de 2025

INSÔNIA

Criação: GPT


INSÔNIA


Elmar Carvalho

 

No silêncio abissal

da noite estagnada

a engrenagem pesada

do tempo se desenrola

e desaba sobre mim.

 

As botas cadenciadas

das horas marcham

– lentas lesmas –

marcham infinitamente

na noite sem fim...