sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Quando religião vira desgraça

Torre de Babel. Fonte: Google

Quando religião vira desgraça

José Maria Vasconcelos 
Cronista, josemaria001@hotmail.com

          Topei convite para ministrar palestra a grupo de jovens de uma igreja. Coloquei-os em círculo. Cada membro passaria adiante a mensagem que eu ditara ao ouvido do primeiro da fila: “O Senhor manda dizer que você pode melhorar o mundo”. Quando a mensagem chegou ao último ouvido do grupo, pedi-lhe que a repetisse em voz alta. A mensagem não condizia com a que eu enviara pela primeira pessoa do círculo. A experiência provava quanto a comunicação vira babel, quando a linguagem é mal interpretada, provoca litígios e desgraças coletivas.

         Religiões, muitas vezes, pregam o oposto do que diziam seus fundadores. Jesus nunca falou em gays, apenas que “uns são naturalmente; outros se fazem pelo reino de Deus”. Nem obrigou celibato a seus discípulos. Ele se concentrava nos pobres, doentes e pecadores. Não aprovou escravidão de negros e índios, na piedosa intenção de os batizarem. Jesus não demonizava gays e pagãos, mas a elite religiosa da época, que sufocava os fiéis com pesados tributos e exigências: “Guias cegos, que coais mosquitos, mas engolis camelos!” (Mateus, 23-24). Não ensinou a demonizar bruxos e apóstatas, torturando-os em fogueira, repetindo carnificina do império romano.

                Maomé elevou o status das mulheres, em sua época; alguns islâmicos clérigos, entretanto, mutilam as genitais das mocinhas e impõem a burka. O carismático Maomé nunca aprovaria o desmanche de monumentos sagrados nem asssinatos em massa, em nome de Alá, como pratica o Estado Islâmico. Buda, provavelmente, ficaria em choque com apartheid imposto à minoria Rohingya pelos budistas de Mianmar.

         No Antigo Testamento, judeus consideravam-se a raça nobre de seus patriarcas, de um Deus, único, invisível. A raça desprezava pagãos, não os permitia no Templo de Jerusalém nem os saudavam nem comiam com eles, ao contrário de Jesus. Hoje, judeus cultivam mais tolerância: muçulmanos guardm a sexta-feira sagrada; cristãos, o sábado ou domingo.

         Fundadores de religião comportam-se como visionários ousados e carismáticos, cuja inspiração moral se transforma em ensinamentos voltados para seus próprios interesses. Até montam teatro de ataque assassino que aplica golpe na garganta; a peça ensanguentada vira leilão de 8 milhões de reais. Não é o Jesus dos evangelhos.

         O Ocidente transforma-se, cada vez mais, secular, mundano, “sem religião”, talvez pelo avanço do materialismo exacerbado, a cultura do bem-estar, egolatria e desmonte das virtudes. O despojado e virtuoso Mahatma Gandhi confessava admiração a Jesus Cristo, porém se escandaliza com o mau exemplo dos cristãos. Durante séculos, leis eclesiásticas não permitiam casamento entre cristãos e judeus. Hitler fora educado nessa apartheid.


         Convido os mais afastados de religião a se permitirem um círculo de leitura dos evangelhos e Atos dos Apóstolos. Ao menos isto. Ali se encontram as bases do espírito de Jesus. As mensagens podem perturbar o entendimento, mas, só de se darem as mãos e ouvidos, vale a pena buscar o sentido da vida.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

HISTÓRIAS DE ÉVORA E/OU A TRANSFIGURAÇÃO DE UM POETA EM PROSADOR


HISTÓRIAS DE ÉVORA E/OU A TRANSFIGURAÇÃO DE UM POETA EM PROSADOR

Ivanildo di Deus 
Professor e escritor

Elmar Carvalho, com a publicação de “Histórias de Évora”, transfigura-se como polivalente literato piauiense, pois, além de poeta, contista, cronista e ensaísta histórico, agora envereda pela feitura do “romance”, um bildungsroman (romance de formação ou desenvolvimento), auto-afirmando-se como prosador.

Sem dúvida, creio, este foi o maior desafio da carreira literária deste insaciável e incansável benfeitor das letras piauienses, um verdadeiro “Andarilho da Palavra”, no dizer do mestre e saudoso poeta Hardi Filho. “Andarilho da Palavra” porque Elmar faz (in)contínuas andanças e perambulanças na seara da literatura e ainda, desde sua juventude, percorre o território piauiense divulgando a sua e nossa medonha produção intelectual.

Tal desafio é sugerido nas entrelinhas pelo próprio autor quando em “Advertências”, tratativa inicial da obra, afirma: “Considero este livro como sendo meu (quase ou possível) testamento literário...”.

Superar-se, ir além das possibilidades, probabilidades e nuances literárias sem perder o foco de aprimorar a qualidade da produção textual.... É sim o grande desafio que o autor se propôs neste bildungsroman.

Abordo alguns aspectos quanto à construção e qualidade literárias deste trabalho, pioneiro do gênero no mundo literário piauiense.

1º) A estrutura do tecido literário é escrita numa linguagem simples, lapidada e cristalina que faz o leitor imergir-se/submergir-se e deleitar-se/ludibriar-se com a leitura do texto.

O escritor e contista piauiense João Pinto, radicado em Manaus (AM), ao escrever seu primeiro romance intitulado “As pedras Doentes da Rua do Fio”, obra não publicada e que tive o privilégio de ser um dos seus primeiros apreciadores, utiliza-se, também, de uma linguagem simples, lapidada e cristalina como o fez Elmar. João Pinto abandonou a linguagem rebuscada e considerada de “difícil entendimento e decodificação pelo leitor comum” construída na sua produção literária anterior, como em “Luzes Esvaídas” e “O Ditador da Terra do Sol”, aprimorando sua estilística literária.

Parece-me ser uma tendência da construção da tessitura literária de vários autores prosadores lapidarem seus textos com a simplicidade da linguagem, objetivando torná-los mais atraentes e convincentes ao leitor.

2º) O emaranhado construtivo dos enredos traz requintes de elevada inventividade literária. Nenhuma narrativa desfecha-se simploriamente, nem segue o mesmo padrão epilológico. Antes de tudo, carregam em seu esqueleto estrutural aspectos envolventes de criatividade que prendem o leitor ao texto e explicitam o desejo de mais querer, de mais prosseguir, de mais saborear a leitura. Além disso, certos desfechos de episódios vividos por Marcos Mendes Azevedo, narrador e protagonista, acontecem em capítulos diferentes, anos ou décadas depois, consoante necessidade estrutural do enredo ou da tessitura do texto. É o caso da “tola e presunçosa” “linda garota loura, muito alva, de olhos azuis, de pele muito fina e sedosa...” “... neta do alto comerciante James Cavalcante Taylor...” (O Dono do Céu. Capítulo II)  “... que tanto encantara Marcos em sua adolescência...” e que se transformara “...na moça loura, um tanto gorda, de olhos azuis, meio enevoados pelo que poderia ser o prenúncio de alguma doença ocular; (que) apresentava sinais de espinhas, sarda e varíola no rosto.” (E Assim se Passaram os Anos. Capítulo XXXVI).

3º) Os enredos também traduzem um leve tom de tragicidade, casos: 1) da morte de Suzana, aos 17 anos, “vítima de fulminante aneurisma”, a garota doente mental que desafiou Marcos ao sexo. (“O apelo do sexo. Capítulo III); 2) do suicídio de Marlene, a rapariga desiludida com o amante, que embebeu as vestes e lençóis com querosene e ateou fogo no corpo. (“Prostituição e tragédia familiar”. Capítulo XVII); 3) da morte por afogamento de Zé Lolô, o lobisomem eborense, enganchado na própria tarrafa. (“O lendário Zé Lolô. Capítulo XVIII); a suposta morte de Eugênio Dantas, o inventivo Pardal, quando tentou alçar voo com sua asa delta artesanal de um ponto do Boqueirão dos Ventos, na Serra do Cachimbo. (O voo do Pardal. Capítulo XXVII).

4º) A narração-descritiva das aventuras amoroso-erótico-sexuais de Marcos Azevedo revelam, em seu traçado, uma espécie de “minitratado sociológico dos cabarés eborenses, em especial os da “Zona Planetária”. Senti-me no personagem em dados momentos, pois, a retratação da vida, dos costumes, das relações daqueles lupanares reflete e traduz fielmente o quadro sócio-comportamental-cultural dos existentes em outras Évoras. Ilustra bem isso “Prostituição e tragédia familiar”, capítulo XVII.

5º) Também revelam as narrativas da vida social estratificada de cidades de pequeno e médio porte como Évora, com suas difíceis e discriminadoras relações sociais.

6º) Com a licença do autor, considero haver uma lacuna gritante em relação ao contexto sócio-político, especialmente político, dos anos de 1970 e 1980, vivido por Marcos Azevedo e seus companheiros de trama. Naqueles idos, travou-se uma consistente e tremenda luta de resistência democrática ao regime ditatorial militar instalado no país em 1964 e que perduraria até 1985. Elmar Carvalho, por ser um conservador moderado, propositadamente deve ter deixado de abordar isso. Contudo, seria um pertinente e interessante “pano de fundo” ao romance ter-se partido por esta vertente histórica como suporte e incremento literários.

7º) Considero um grande recurso estilístico a ideia de dois narradores em tempo e faixa etária distintos, incorporando o mesmo personagem. O narrador dois, Marcos Azevedo adulto e experiente, “descambando para a velhice”, complementa o narrador um, o Marcos Azevedo adolescente, aprendiz e embuchado de sonhos. Registre-se que o narrador dois faz um discurso narrativo-dissertativo, demonstrando suas qualidades de escritor e homem de virtudes concretas.

No Mais, Histórias de Évora é um romance gostoso e recomendável de ler. E se este bildungsroman é o “testamento literário” de Elmar Carvalho, de quão grande espólio se beneficia nossa literatura.   

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

O CANTAR DA FOGO - APAGOU

Fonte: Google

O CANTAR DA FOGO - APAGOU

Antonio Gallas

Ao ler crônica do confrade Pádua Marques (Academia Parnaibana de Letras) com o título "A morte suspeita do bem-te-vi", lembrei-me de uma crônica que consta em meu livro FRAGMENTOS  sobre quando criança, juntamente com outros meninos da época saíamos à caça de pequenos pássaros que cantarolavam nos galhos das frondosas árvores dos nossos quintais.  Transcrevo  a seguir a referida crônica por mim escrita no ano de 2008.

Acordei ouvindo o canto de uma rola fogo – apagou. Veio-me à memória o tempo em que quando criança ia passar as férias no lugar Itaperinha ou Taperinha onde meu pai possuía uma pequena fazenda de gado. Hoje essa propriedade me foi deixada por herança.

Mal os primeiros raios de sol iluminavam a manhã, pulávamos da rede, pegávamos armas e munição – baladeira (estilingue), araçá verde, pitombas  e ganhávamos às matas para a matança de rolinhas, pipiras, bem-te-vis, colibris e outros pequeninos seres da natureza que nenhum mal faz ao homem. Até mesmo os inofensivos calangos que encontrávamos pelo caminho eram sacrificados com os tiros de nossas baladeiras.

Em nossa mentalidade de criança e no afã de mostrarmos quem matava mais pássaros ou quem era melhor na pontaria, esses inofensivos pássaros eram sacrificados sem qualquer sentimento de culpa de nossa parte.

  Longe estávamos de imaginar que de certa forma contribuíamos para a devastação da nossa natureza.

Eu nunca fui bom de pontaria, pelo menos com baladeira, mas tinha um negro, o Sebastião do Badí, filho de um agregado[1] de meu pai que era um verdadeiro “demônio”. Atirava com as duas mãos e não errava um tiro. Disse-me para eu ter uma mão certeira eu teria que comer cru, o coração de um beija-flor.

Matei um indefeso colibri, arranquei-lhe o coração e o engoli de uma só vez, sem mastigá-lo. Meu estômago “embrulhou” tal qual quando tomávamos óleo de rícino para expulsar as lombrigas, coisa que todo menino no interior tem pra dar e vender.

De nada adiantou. Continuo não tendo boa pontaria com estilingues.

 Depois da experiência de comer cru, um coração de beija-flor, o primeiro tiro que dei errou o alvo e acertou bem no olho esquerdo da minha irmã Izabel, a Belinha. Quase fica cega, a pobrezinha! Ainda hoje ela tem problemas na visão por causa desse tiro.

Ao rememorar essas lembranças de infância fico pensando quão rude o homem é, quando desenfreadamente procura destruir o que é de mais útil para sua existência - a natureza.

Por que isso? Que razões levam o homem a poluir o meio ambiente, devastar as floresta e matar desenfreadamente milhões de animais todos os anos?

É preciso parar para pensar, caso contrário, em pouco tempo, animais, pássaros, peixes e insetos estarão extintos.

 E o que será então do próprio homem?


[1] Morador da fazenda

terça-feira, 26 de setembro de 2017

POETAS PARNAIBANOS DOS ANOS 2000


POETAS PARNAIBANOS DOS ANOS 2000

Alcenor Candeira Filho

     A média de idade dos poetas de que me ocuparei neste artigo é de vinte a trinta anos. Eles integram  a coletânea  poética VERSANIA, organizada por  Claucio Ciarlini e lançada recentemente em Parnaíba, reunindo vinte e dois poetas.
     Uma antologia tão abrangente não poderia deixar de ser heterogênea e provavelmente ela ganharia em expressividade se se houvesse feito uma seleção mais rigorosa dos poemas que a compõem. Com certeza o tempo separará o joio do trigo e indicará quem são os verdadeiros artistas da palavra presentes na seleta.
     Acho que a cada geração de poetas deve corresponder uma obra coletiva capaz de mostrar as formas de expressão e identidade de cada um, de apontar traços definidores da biodiversidade da poesia praticada por seus representantes.
     Os poetas parnaibanos nascidos a partir de 1990 têm sido divulgados esparsamente em jornal, de modo que era difícil para o leitor formar opinião crítica sobre cada um deles. Agora, com o surgimento de VERSANIA, em que cada poeta ocupa com poemas cerca de seis páginas, é possível a formação de algum juízo crítico de suas composições.
     Estranhei na coletânea a ausência de poemas de Diego Mendes Sousa e Ítalo Furtado, dois jovens poetas com livros publicados e reconhecidos como bons representantes da poesia parnaibana do século XXI.
     Os poetas de VERSANIA que me causaram melhor impressão, sem nenhum desmerecimento aos demais, foram Alexandre César, Carvalho Filho, Filipe Cavalcante e Rosal Benvindo. Coincidentemente os quatro são cultores do soneto. Criado na Itália no século XII, os primeiros grandes sonetistas foram Dante (1265-1321) e Petrarca (1304-1374), que emprestaram  ao soneto forma e fundo que se tornaram modelares para as gerações seguintes, tanto na Itália como no resto do mundo.
     Esse tipo de composição, o mais nobre dos poemas de forma fixa, vem se renovando através de séculos, tendo sido muito explorado no classicismo, barroquismo, arcadismo, romantismo, realismo, parnasianismo, simbolismo, modernismo. Até hoje cresce o número de sonetistas.
     Alexandre César é um poeta que  se apresenta como “inscrito na objetividade/ da dúvida (...)/ buscando amadurecer,/ talvez como você agora./  Buscando!/ Talvez como você agora./ Buscando talvez você/ agora./ Buscando.”
     Se  a intenção não fosse a de transcrever neste artigo um soneto de cada poeta, optaria pela citação do belo poema elegíaco “A Era dos Ícaros Vivos”.
     Eis o soneto de Alexandre César

                  O CÉTICO ILUSÓRIO

     Em peito aberto a chaga do amor surtido
     Sutil solene sensato e desprovido
     Na obscena imagem que em mente se anuncia
     Outrora plena e límpida quando não poente e tardia.

     Em obsoleta sina o doce engano
     Na ternura do fidalgo em porto brando
     Em sinuosa nova forma derradeira criatura
     Agora torna em canto ébrio.

     Que desdenha rancorosa a consumada em adultério
     No vão continue despedace ao elo em desmazelo
     Promessas de um novo leigo em desespero.

     Ao idolatrar o mar contraditório
     Se vê desprovido em tom salubre
     Está a contemplar o Cético Ilusório.

     Carvalho Filho (Francisco das Chagas Souza Carvalho Filho) escreve poemas, contos, crônicas, novelas e romances e se declara fâ de Renato Russo, Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos e Allan Poe. Daí o caráter lúgubre de parte de sua obra.
     O soneto “Os Macbeths”, abaixo transcrito, faz  obviamente alusão ao personagem central da famosa tragédia MACBETH, de William Shakespeare. Macbeth foi um valente general do exército escocês,  que matou o rei Duncan, a quem sucedeu no trono.
     Eis o soneto:

                OS  MACBETHS

     O céu finge domar aquele peito.
     É desejo das Fúrias vê-lo aberto.
     Uma vez tendo o corpo descoberto
     Por Feras, seja de carne desfeito.

     Sucumbe o soberano por direito,
     Ergue-se Macbeth recoberto
     De atroz ganância; seu crime encoberto
     No convincente e pérfido respeito.

     Punhal rubro do rei desata a vida,
     Abutre colossal pousa no trono.
     Pinta-se a face toda comovida.

     Mas vingança não tarda ao tolo sonho.
     Eis que levanta da própria ferida
     Cavaleiro de espírito tristonho.

Confessando-se  “exaltador do trivial e um tanto nostálgico”, Filipe Cavalcante comparece em VERSANIA com dez poemas, nove dos quais sonetos, como o que segue:

        À BÁRBARA CAVALCANTE

     Unidos desde a nossa boa infância
     Por laço bem estranho e bem comum
     - inseparáveis como apenas um;
     de ser maior do que o outro sempre na ânsia..

     Somos feitos de igual, mesma substância,
     que é algo de genética e de algum
     fluido imaterial que existe num
     fraternal coração em abundância –

     afeto fraternal que nunca muda.
     Se um dia precisares de uma ajuda,
     Que alguém te estenda a mão lá no amanhã,

     e amigos não puderem dar um fim
     ao mal, tu tens um Deus e tens a mim.
     Pra sempre eu hei de amar-te, minha irmã.

     Rosal Benvindo (Gustavo Muniz Barros Rosal Benvindo) é poeta que tem escolhido o amor como tema principal: “Meu primeiro poema foi sobre amor, tema que me acompanhará ao túmulo”.
     Dos quatro sonetos inseridos na coletânea, transcrevo este:

          SONETO BRANCO DE UM CÃO VAGABUNDO

     Cão vagabundo, aborto dos becos.
     Refém sob o sol dos homens, sem destino,
     Que perambula silencioso entre circos
     De absurdos, de existências em desatino.

     Cão semimorto de sangue latino,
     Cruzando, torto, mundos de olhos vis.
     Cão mudo, ferido e sujo, clandestino
     De uma vida sórdida dentre incivis.

     De investidas e migalhas se fez malogro,
     Acometido em vírus, pena e insulto.
     Cão sem dentes que tomba em desgosto.

     É o mesmo que eu: desconforto.
     Os olhos pálidos e absortos
     De  quem não tem um amor, um porto.

     Concluo parabenizando os vinte e dois poetas integrantes do livro VERSANIA, o diagramador Fábio Bezerra Brito e o organizador Claucio Ciarlini.          

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Alda, a noiva do vestido tinto de sangue

Memorial da finada Alda, no local em que ela morreu

Alda, a noiva do vestido tinto de sangue

Chico Acoram Araújo*

A jovem Alda levantou-se muito cedo do dia nove de julho de 1961. O pai e a mãe, também. Alguns instantes depois, todos os moradores da casa estavam de pé. As lamparinas foram acesas. Um murmurinho na casa não demorou.  As vozes dos pais e de seus irmãos confundiam-se no recinto. A barra do sol começava a alumiar no horizonte distante. Assim como as demais noites do mês de julho, a madrugada estava friorenta, em contradição com os dias de temperaturas elevadas do período, clima característico dos munícipios da região Norte do Piauí. Toda a família estava feliz. A alegria era geral. O domingo prometia ser esplêndido.

A moça dirigiu-se para um rústico banheiro localizado nos fundos do quintal da casa da família, próximo ao poço d’água. O líquido que acabara de retirar do poço mantinha-se ainda um pouco morno apesar do frio da noite. Caprichou no asseio pessoal com esmero, ensaboando-se com um perfumado sabonete presenteado pelo seu amado noivo no dia de seu aniversário de dezenove anos de idade que acontecera quatro dias antes. Nesse dia não houve comemoração. A festa, na verdade, seria no próximo Domingo; o dia mais esperado de sua vida: seu matrimônio.

Com ajuda da mãe e amigas vizinhas, Alda vestiu o cobiçado vestido branco de noiva. Este, porém, confeccionado em tecido modesto e sem muitos detalhes. Perfumou-se. Enfim, a moça paramentou-se para a grande cerimônia de casamento a ser realizado logo mais, às oito horas, na igreja de Nossa Senhora da Conceição.

O noivo chamava-se Francisco Gomes, mais conhecido como Chico Gomes. Um moço muito trabalhador e bem-conceituado na comunidade em que ambos moravam. No alpendre da modesta casa de alvenaria, nos finais de semana, o casal de noivos planejava formar um lar, ter filhos e viver dignamente nas graças do Senhor.

Segundo um excelente documentário, em forma vídeo, produzido por alunos do 2º Ano do Ensino Médio do Educandário Santo Antônio, em Barras-PI, nos revela que Alda Rodrigues da Silva, filha de humildes lavradores, nasceu no município de Sobral no Estado do Ceará. O citado documentário relata, dentre outros fatos, que ainda pequena, Alda mudou-se para Barras, no povoado conhecido como Luís de Sousa, localizado na zona rural Leste, não muito distante do perímetro urbano da cidade de Barras do Marataoan. Os pais, Manoel Rodrigues e Maria Francisca Rodrigues Jorge, e todos seus irmãos vieram para o Piauí em decorrência das dificuldades que enfrentavam no vizinho Estado para suprir a família com mantimentos, provavelmente por conta das condições climáticas que atravessava a maioria dos municípios do Ceará. Nessa época, muitos de seus contemporâneos também vieram para terras piauienses em busca de melhores condições de vida.

Antes das seis da manhã, os familiares e amigos já se encontravam montados em seus cavalos em frente da casa de Seu Manoel Cearense, como era conhecido o pai de Alda. Os jovens noivos também estavam a postos, no meio da animada caravana capitaneada pelo Seu Manoel.  Em clima de alegria, vinte e dois cavaleiros e amazonas partiram em pequenos grupos de quatro a seis pessoas, com destino ao centro da cidade que distava do povoado cerca de uma légua e meia.

Enquanto isso, a mãe de Alda e algumas amigas vizinhas ficaram em casa cuidando do grande banquete que seria oferecido aos amigos e convidados. Na noite anterior, o pai da noiva já havia abatido alguns animais da sua criação, bodes, galinhas e porcos para compor o almoço a ser oferecido aos convidados da festa de casamento. Carne de gado, cozidos, assados, baião-de-dois, farofas, café com bolos de goma e outras iguarias faziam parte do cardápio da festa.

 Quarenta minutos depois, o festivo préstito já se encontrava atravessando a velha ponte de madeira sobre rio Marataoan (construída em 1935) em direção a uma residência que ficava a alguns quarteirões da igreja de Nossa da Conceição. Esta casa, ou rancho como era chamada, servia de ponto de apoio ou hospedaria para pessoas do interior que vinham para a cidade. Os animais ficaram alojados em um cercado por trás da referida pousada. Após os retoques finais no vestuário da noiva e das moças acompanhantes, todos se dirigiram para a igreja da Matriz.

Do alto da igreja da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, demolida em 1963 (antiga capela construída pelo fundador de Barras, Cel. Miguel de Carvalho e Aguiar, em meados do século XVIII), entre as duas torres, o Cristo Redentor com os braços abertos saudava os parentes e convidados dos noivos para a celebração do sagrado enlace matrimonial. Os noivos, silentes, em frente ao grande altar-mor da Matriz, ouviam solenemente o ritual do padre que ministrava o casamento. A cerimônia ocorreu de forma célere. Declaro-os marido e mulher, disse por fim, o religioso.

Segundo meu ilustre conterrâneo Dílson Lages, notório professor, poeta, cronista e escritor, em seu livro “O morro da casa-grande” descreve com perfeição o majestoso altar onde foi realizado o sacramento matrimonial de Alda e Francisco: “O altar-mor de Nossa Senhora da Conceição de Barras era um dos lugares mais exaltados pelos fiéis, principalmente em dezembro. ... No retábulo, os nichos eram ocupados com Nossa Senhora ao centro, sobre o sacrário, ladeada nos demais nichos por Jesus ressuscitado, à direita, e São José, à esquerda. Jarros de porcelana, cobertos de flores, sobre o mármore, contrastavam com numerosos castiçais de prata, nos pés dos quais estava a face de cristo. No topo de retábulo, a imagem do coração de Jesus, acima do qual se assentava em decoração a própria face do Messias, embriagava de fé quem orava. O altar-mor, ao fundo, era a luz do templo; uma luz que se enfraquecia e, dali a poucos dias, apagar-se-ia para sempre. ” De fato, em 1963 houve a demolição desse templo religioso de estilo colonial, lamentavelmente. Creio que a decisão mais sensata da autoridade religiosa da época fosse a restauração desse belíssimo templo católico.

 Após a cerimônia de casamento, todos retornaram para o rancho em busca das suas montarias. Em seguida, Seu Manoel Cearense e os recém-casados, acompanhados dos parentes e amigos, seguiram de volta para sua casa onde seria servido um almoço aos convidados. Em grupos, todos pegaram a estrada de piçarra em direção à ponte de madeira sobre o rio Marataoan para, em seguida, pegar o caminho de volta para a comunidade Luiz de Sousa. Alda era a última do seu grupo de cavaleiros, dentre os quais faziam parte o marido e sua cunhada e mais três pessoas.

A poucos metros do acesso à ponte de madeira, um ônibus (chamado na época como misto ou horário) que trafegava com destino a Teresina colidiu com o cavalo em que Alda montava, arremessando-a violentamente no chão de piçarra. A moça caiu inerte; apenas um suspiro de dor, e o vestido de noiva tinto de sangue.  O marido em desespero tentou em vão reanimá-la.  A moça veio a óbito ali mesmo no local em decorrência das graves lesões que sofrera. O clamor tomou conta do local. O causador do trágico acidente nunca foi preso, apesar de se entregar à polícia no mesmo dia do acidente.

A comunidade de Luiz de Sousa toda chorou com o infausto acontecimento. O banquete foi recolhido. O caixão com a jovem morta estava ali no meio da sala da casa sob olhares pesarosos dos familiares e amigos. Apenas tristeza e dor. A família providenciou o enterro em um cemitério da localidade, deixando saudades a todos os entes queridos e amigos.

Quem viaja a Barras ou passa por essa cidade, procedente de cidades do centro e sul do Estado, poderá observar do lado direito da pista, tão logo atravesse a ponte de concreto sobre o rio Marataoan, um memorial em homenagem à falecida Alda Rodrigues da Silva, mais conhecida como Finada Alda. Nesse exato lugar foi que aconteceu o trágico acidente que vitimou a jovem recém-casada, e que comoveu todo o povo do município de Barras. Depois da morte da jovem Alda, surgiram as primeiras notícias sobre possíveis milagres atribuídos a sua alma. O Memorial da Finada Alda é um local muito visitado pelos religiosos não só de Barras como também de outras cidades da região. Hoje, a Finada Alda é considerada um ícone para os praticantes da fé católica na cidade de Barras.


* Chico Acoram Araújo é contador, funcionário público federal e cronista

Angústia

Fonte: Google

ANGÚSTIA

Édison Rogério

Graciliano Ramos, em "Angústia", traduz magistralmente o sentimento homônimo: repetição de atos e pensamentos em rotina desesperadora,  vida triste sem perspectiva presa em obsessivo desgosto, à espera de um amanhecer que não virá.

O personagem do amor perdido não escreveu uma obra literária, nada; mas vive, dia após dia, a angústia da afeição que não quer esquecer e que é por si, toda a sua vida!

Recuperá-la cessaria a agonia, devolver-lhe-ia os campos de lírios e girassóis em que habitava nos tempos do plácido amor.

Mas não lhe é permitido sequer lutar por essa afeição. Não convém ao Grande Amor.

Silêncio tumular lhe foi imposto. Foi-lhe decretado que o “amor enlevo d'alma” lhe é proibido!

Ele não pode afirmar que embora improvável, é a melhor opção, a paz, a tranquilidade do lago sereno, a segurança do amor correspondido, a fidelidade do amor infinito que pulsa além da vida a ser vivida, a alegria de tantas possibilidades.

Foi-lhe negado dizer que o grande amor, o amor verdadeiro, aquele que acaba jamais, não é gratuito, simples ou fácil. Himalaias se interpõem.

Sem a luta dos dois corações, não há esperança, ventura, contentamento, felicidade.


Resta a angústia de eterno compasso de noturno!   

A morte suspeita do bem-te-vi

Fonte: Google

A morte suspeita do bem-te-vi

Antônio de Pádua Marques

Nesta manhã silenciosa de sábado minha irmã Rosário ao regar as plantas do jardim me chamou pra dizer que um bem-te-vi estava morto na calçada em frente de nossa casa. Pra mim sempre vai ser motivo de imensa tristeza a morte de um passarinho, quanto mais de um bem-te-vi. E mais ainda neste inicio de primavera, estação da qual os passarinhos são os grandes anunciantes.

E ali mesmo depois de correr pra dentro de casa e apanhar a máquina fotográfica, registrei aquele momento triste, igual quando as pessoas fazem com qualquer coisa ou ocorrido hoje em dia e depois jogam nas ditas redes sociais, fiquei a imaginar se aquela morte poderia ser um acidente na rede elétrica. Mas também me ocorreu imaginar que poderia ter sido um infarto do miocárdio. Passarinhos também têm coração. 

Ou um acidente vascular cerebral, que nós chamamos de avecê. Passarinhos têm também cérebro, talvez até mais inteligente que o cérebro dos homens. Sei lá. Pode ser tudo hoje em dia. Até uma bala perdida. Uma pedrada certeira desferida por um menino malvado. Se bem que hoje em dia não existem mais meninos que caçam passarinhos. Ou até mesmo uma bala perdida, igual no Rio de Janeiro e onde todo santo dia morre mulher, velho e menino.  Porque o Brasil está sem controle. O Brasil perdeu o rumo de casa. O Brasil está sem governo.

Nos últimos anos, voltando ao assunto dos passarinhos, esses amigos têm sido motivo de minha observação, digamos científica. Pela manhã bem cedo ao deixarem os galhos das mangueiras do quintal de minha vizinha e que lhes serviram à noite de cama e abrigo, estes passarinhos de penas amarelas e pretas, barulhentos e caçadores extraordinários ficam cantando e chamando os companheiros que vão sair pelo mundo à cata de alimentos ou galhos secos para os ninhos.

E eu fico de meu sossego aqui em casa ainda por um bom tempo debaixo das cobertas a acompanhar com o ouvido, eles saindo pra mais um dia de trabalho. Bem-te-vis mais se parecem com aquela diarista que sai de manhã bem cedo pra fazer faxina nas casas dos ricos e remediados e acaba acordando a rua inteira com toda aquela zoada dos infernos. Passam o dia inteiro andando á procura de alimentos pra si e de quebra levam pros filhotes que ficaram de bico aberto no ninho escondido em alguma mangueira ou sapotizeiro.

Agora a tristeza de ver morto na calçada perto de meu portão aquele passarinho. Vejo aquele bem-te-vi de olhos sem vida com a mesma tristeza que fico sabendo pela televisão, pelos blogs e portais, deste ou daquele acidente de trânsito que deixou sem vida no meio do asfalto o pedreiro ou a diarista que iria começar mais um dia de trabalho. Como a vida está ficando sem valor. No final da tarde eu vou voltar a olhar pra rua e pra o poste da rede elétrica. Alguns estarão lá e cantando. Olham eles o vazio do céu à espera o companheiro.

Os bem-te-vis costumam ficar na minha antena de internet no final da tarde. E dali eles ficam olhando e cantando, um canto de chamada uns pros outros. Igual fazem os mestres de turnos das grandes fábricas ou faziam os capatazes nas fazendas de café ou de laranja no interior de São Paulo. Os bem-te-vis, igual aos operários, trabalham muito e pouco são reconhecidos. Qual o direito deles? Simplesmente voltarem num final de tarde pra casa. Porque falta segurança pra os passarinhos, calcule pra os trabalhadores.

E depois de terem certeza de que todos estão no bando os bem-te-vis procuram finalmente o rumo de casa pra mais uma noite de descanso. Amanhã será outro dia. Mais um dia, se o deus dos bichos deixar. Se foi um choque da rede elétrica, um surto,  um infarto do miocárdio ou um acidente vascular cerebral nunca vai se saber depois de uma perícia do SAMU. Bem que deveria existir um SAMU de passarinhos.  Mas aquele pobre bem-te-vi será apenas mais um morto entre a rua e a calçada.    

domingo, 24 de setembro de 2017

Seleta Piauiense - Jonas Fontenele da Silva


Barro Amarelo

Jonas Fontenele da Silva (1880 – 1947)

Do cemitério o chão, aqui, a cova,
Parece de oiro: é lindo este amarelo. 
Aqui vieram fazer o seu castelo
Os que passaram pela Grande Prova.

Os que têm fome de oiro, os que uma trova
À auricídia cantaram com desvelo,
Aqui o têm sob a folha do cutelo
Da Morte, curvo como a Lua Nova.

As raízes das árvores tenazes
Não penetram no solo socalcado;
No entanto viçam rosas e lilases.

— Vais em visita a alguém que tua alma chora?
Liga-te a argila os pés ao chão... Cuidado!
Este barro amarelo te devora! ...  

Zé Luiz de Carvalho é eleito presidente da Academia Parnaibana de Letras.



Zé Luiz de Carvalho é eleito presidente da Academia Parnaibana de Letras.

Em assembleia realizada na tarde do sábado dia 23 foi eleito para a presidência da Academia Parnaibana de Letras para um mandato de dois anos o jornalista e escritor José Luiz de Carvalho, segundo ocupante da cadeira número 21 que tem como patrono Raimundo Souza Lima. Ele substitui o acadêmico Antonio de Pádua Ribeiro dos Santos.

José Luiz de Carvalho, poeta, contista e romancista, concorreu em chapa única tendo como secretário-geral Antonio Gallas Pimentel; primeiro-secretária Maria Christina de Moraes Souza Oliveira; segunda-secretária Maria do Rosário Pessoa Nascimento; primeiro-tesoureiro José Wilton de Magalhães Porto; segunda-tesoureira Ligia Ferraz e bibliotecário Antonio de Pádua Marques Silva.


Logo após ser anunciado como novo presidente e tomar posse, Zé Luiz de Carvalho pediu o apoio de todos os acadêmicos e prometeu muito trabalho em parceria com outras entidades. A Academia Parnaibana de Letras foi fundada em 23 de julho de 1983 e atualmente é composta de trinta e cinco membros. 

Fonte: APAL. Fotos: APM Notícias. Edição: APM Notícias.

sábado, 23 de setembro de 2017

A fundação de Campo Maior

Fonte: blog Bitorocara

A fundação de Campo Maior

Reginaldo Miranda
Da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Piauiense

Tem causado certa celeuma a fixação da data de fundação da aprazível cidade de Campo Maior, plantada em meio aos vastos carnaubais e campinas verdejantes do centro-norte do Estado do Piauí.

Foi o padre Cláudio Melo, filho ilustre daquela terra, o primeiro historiador que percebeu ser a fazenda Bitorocara, do mestre-de-campo Bernardo de Carvalho e Aguiar, o núcleo inicial daquela comunidade. No entanto, apesar do tirocínio e das provas levantadas por aquele notável historiador, sempre houve contestações porque, de fato, existia um hiato, um ponto obscuro entre Bitorocara e Campo Maior. Mais recentemente, outro campomaiorense ilustre, o magistrado e acadêmico Elmar Carvalho vinha fazendo eco, como discípulo, às descobertas do padre Cláudio Melo. Em linha oposta surgiram alguns novos historiadores contestando essa tese e, consequentemente, a primazia de Bernardo de Carvalho e Aguiar na fundação de Campo Maior.

No entanto, o melhor achado foi feito nos últimos dias pelo incansável pesquisador Valdemir Miranda de Castro, de Esperantina, que localizou num livro de registro de mercês, arquivado na Torre do Tombo, a descrição da sesmaria concedida em 1718, a Bernardo de Carvalho e Aguiar, que dirime qualquer dúvida sobre o assunto. Sabedor de que estamos reconstituindo a vida de Bernardo de Carvalho e Aguiar, com base em fonte primária, para uma coletânea em homenagem ao centenário de nossa Academia, enviou-nos a referência do documento, o que também foi feito pelo confrade Elmar Carvalho, pedindo que o apreciássemos.

Nessa altura já vínhamos analisando, entre outros documentos, uma certidão de serviços prestados por aquele militar. Chegou agora ao nosso conhecimento uma segunda certidão ainda mais detalhada, com informações geográficas sobre os sertões das Cajazeiras e o dos Alongazes. Então, interpretando esses documentos em conjunto nos achamos habilitados para entrar nesse debate e indicar uma data para a fundação da fazenda que deu origem à pacata e hospitaleira cidade de Campo Maior. Bitorocara, o nome indígena solto na história (do tupi ibi: terra + toro: jorro de água, nascente + cará: ervas trepadeiras da família dioscoreaceae; significando lugar de nascente, terreno embrejado), é a primitiva fazenda depois rebatizada Santo Antônio. Esse fato está agora tão claro quanto a luz do sol ao pino do meio dia. Dela tinha o mestre-de-campo a posse desde que a desbravou, porém, só requereu e conseguiu a sesmaria em 1718, talvez depois de livrar-se de pretensões da Casa da Torre, então em franco declínio, que se achava dona de quase tudo no Piauí. Foi no governo de Christóvão da Costa Freire, governador e capitão general do Estado do Maranhão(1707 – 1718), que lhe foi dada a sesmaria “no sertão dos Alongazes por evocação de Santo Antônio, em um riacho cujas vertentes desaguavam no rio Jenipapo, em o qual tinha todas as fábricas de criados, escravos, cavalos e o mais necessário, e nele necessitava de três léguas de terra de comprido com uma de largo em todo o comprimento, para criação dos ditos gados e suas multiplicações, começando o dito comprimento da casa para Leste duas léguas e da mesma casa para Oeste uma légua, fazendo a largura de Norte a Sul ficando o dito riacho em meio da largura, reservando ele as voltas e pontas e da terra toda a inútil de criar gados, pelo haver povoado estando deserta” (PT/TT/RGM/C/0008. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 8, fl. 509v).

Então, seria impossível uma localização mais precisa, ficando a mesma no sertão do Longá, em um riacho que entra no Jenipapo (o mesmo da Batalha da Independência). E fora erguida sob a invocação de Santo Antônio, em cuja sede foi pelo proprietário iniciada a construção da capela, à sua custa, em 1711, para servir de matriz à freguesia de Santo Antônio dos Alongazes ou Santo Antônio do Surubim, a segunda mais antiga do Piauí, que fora criada naquele ano, pelo padre Tomé de Carvalho e Silva, sob ordens do Bispado de Pernambuco. Essa antiga construção somente foi concluída em 1828, conforme alguns registros.

Dirimida a dúvida sobre a localização resta discutirmos a data de fundação da fazenda. Segundo o referido documento de concessão da sesmaria era “Bernardo de Carvalho e Aguiar, um dos primeiros conquistadores e povoadores da Capitania do Piauhy, aonde era morador havia mais de 26 anos” (PT/TT/RGM/C/0008. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 8, fl. 509v). Essa data reporta ao ano de 1692 ou antes, em que ele fixara residência no Piauí, não necessariamente nos Alongazes.

No entanto, segundo uma certidão expedida em 20 de janeiro de 1719, que dá conta dos serviços prestados por Bernardo de Carvalho e Aguiar, no ano de 1690, estava ele combatendo os índios Paracatis, no sertão de Parnaguá, sob o comando do capitão-mor José Garcia Paz, onde demorou mais de seis meses, inclusive permaneceu governando os índios prisioneiros no arraial militar; em 1691, nenhum ato relevante praticou, pois nada consta na certidão, sendo provável que tenha continuado administrando os índios do arraial e suas fazendas naqueles sertões, que ainda não pertenciam ao Piauí e sim a Pernambuco; no entanto, “no ano de 1692, fez à sua custa uma entrada com muita gente de cavalo e de pé, ao sertão das Cajazeiras, onde descobriu umas terras novas no Riacho da Cabeça do Tapuio, Sambito e Puty, em que pôs gados seus e fez casas fortes com homens, armas e munições para a sua defensa em que gastou muito de sua fazenda (PT/TT/RGM/C/0008. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 8, fl. 520/520v).”.

Portanto, foi no ano de 1692 que Bernardo de Carvalho e Aguiar fixou residência no Piauí, fundando a fazenda Cabeça do Tapuia, que deu origem à atual cidade de São Miguel do Tapuia. Nessa fazenda residiu por três anos, quando muda para a terra dos Alongazes.

Foi no verão de 1695, que fez ele nova entrada “e descobriu outras terras novas que chamam os Alongazes, junto da Serra da Guapava, levando também muita gente armada à sua custa, povoando-as de gados e negros escravos seus, fazendo casas fortes para a defensa dos novos moradores, dando-lhes todo o sustento, armas e munições e o mais necessário para as habitarem e defenderem, resultando desta sua diligência grande utilidade para os Estado da Bahia e Pernambuco pela grande abundância de gados com que logo se povoaram aquelas terras, seguindo o seu exemplo outros muitos moradores que logo situaram naqueles sertões mais de 40 fazendas, que sem dúvida aumentaram muito os dízimos reais” (PT/TT/RGM/C/0008. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 8, fl. 520/520v).

Então, conforme esse importante documento ele descobriu terras novas no lugar dos Alongazes no ano de 1695, depois de três anos residindo no Piauí (Fazenda Cabeça do Tapuio). Antes, nós havíamos analisado uma certidão que nada dizia sobre a localização geográfica de Cajazeiras e Ibiapaba, também não fazendo referência ao lugar dos Alongazes. No entanto, o último documento bem esclarece essa situação, dando razão ao padre Cláudio Melo, de que o conquistador viera pela fronteira cearense. No referido documento, também havia dúvida sobre o algarismo 5 que parecia 3, agora tudo se esclarecendo(1695).

Por outro lado, as campanhas militares sempre iniciavam no final do inverno, entre os últimos dias do mês de abril e o princípio do mês de maio, sendo nesse tempo que Bernardo de Carvalho iniciou sua jornada à Terra dos Alongazes, onde chegou em meados do mês de maio. Descobriu novas terras, como diz a certidão de seus feitos, e como qualquer pessoa sensata foi buscar o melhor local para abrir a clareira das primeiras rancharias e chantar a caiçara do curral, concluindo isso no final da primeira quinzena de junho. Podemos perfeitamente presumir que ele deu por fundada a fazenda no Dia de Santo Antônio, popular santo português, também homenageando o nome de seu pai, Antônio Silvestre de Aguiar.

Portanto, com base na documentação até agora estudada, ousamos afirmar que a fazenda Santo Antônio, antiga Bitorocara, que deu origem à cidade de Campo Maior, foi fundada pelo mestre-de-campo Bernardo de Carvalho e Aguiar, em 13 de junho de 1695.  Passou a freguesia em 1711 e vila por carta régia de 19 de junho de 1761, sendo oficialmente instalada no ano seguinte. A localização geográfica e o ano da fundação estão baseados em documentos irrefutáveis, sendo o dia e o mês uma boa presunção que a ninguém ofende, mas vem prestigiar uma velha tradição portuguesa.

** Nova versão, com revisão do autor.

* REGINALDO MIRANDA, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico Piauiense e conselheiro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

UM INSTANTÂNEO DA APL



UM INSTANTÂNEO DA APL

Elmar Carvalho

Fui à APL, para desempenhar minhas funções de 1º secretário. Aproveitei para tirar uma fotografia do belo e sóbrio sobrado da Miguel Rosa, perto do cruzamento com a avenida Frei Serafim, onde funciona o sodalício. Lá encontrei o presidente Reginaldo Miranda, entusiasmado com os seus planos e projetos, e no firme propósito de executá-los fielmente.

Um pouco depois, chegou o professor Paulo Nunes, ex-presidente da entidade e membro da atual diretoria, que certamente contribuirá com o seu dinamismo e esforço para que o presidente atinja o seu desiderato. Reginaldo já está concluindo a arte final do Notícias Acadêmicas e promete manter a sua periodicidade mensal.

Também já está adotando providências para retomar a regularidade da publicação da Revista da Academia, bem como publicar as edições atrasadas. Tem uma obra literária considerável, sobretudo no campo da historiografia, tendo escrito a monumental História do município de Regeneração.


É um cidadão de gestos mansos, um legítimo diplomata, bem-sucedido em suas atividades, especialmente advocatícias e culturais, de sorte que lhe antevejo uma profícua gestão à frente da Casa de Lucídio Freitas (*).

3 de fevereiro de 2010

(*) E de fato Reginaldo Miranda realizou uma excelente administração. Entre outros feitos, promoveu vários eventos, como palestras e lançamentos de livros, atualizou as edições em atraso da Revista da Academia, publicou vários livros, e idealizou a Coleção Centenário, dentro da qual publicou várias obras notáveis da literatura e da historiografia piauienses.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

FRAGMENTOS DO BRASIL ATUAL


FRAGMENTOS DO BRASIL ATUAL

 Cunha  e Silva Filho
   
         O país vive  o inferno de Dante (1265-1321). Pode-se olhar para os quatro cantos   dessa terra e dificilmente se poderia declarar que ali reina a paz. Quase tudo é escuridão.  Surge uma paisagem lúgubre lembrando contos terríveis  de Edgar Allan  Poe ( 1809-1849) e de outroa autores do gênero e de tempos diferentes: caldeirões  em ebulição, espetos,  caveiras,  fantasmas,  vampiros,   zumbis, vodus,  névoas, sombras andantes, ossadas,  tumbas, carruagens em disparada  sem cocheiros. Epitáfios,  nos quais  reconhecemos  figuras  tenebrosas  que, no futuro,  viverão   em eterno   sofrimento. Gritos estridentes, capas escuras,  gravatas,   carros de luxo, homens com armas,  aviões federais, prisões provisórias, flashes, notícias escabrosas  na televisão,  trocas de informações e de  insultos nas redes  socais, sobretudo  Facebook, perdas de antigos, amigos por  mera ideologia   oposta a uma outra, prisões preventivas,  prisões mesmo.
       Homens de preto vigiando as noites infindas, ao lado ou atrás de homens querendo esconder os rostos  de vergonha provocadas por inúmeras malversações. Lulismo, dilmismo,  temerismo, o diabo solto da devassidão  da politicalha. O Inferno dantesco ressurreto. Mistura de verdade,  mentira e pós-verdade, contrainformações,  recurso  judiciais.  Réus, réus  réus! A política Brasiliae  em  adiantado estado de putrefação. O Planalto fede. O Legislativo   fede.  Congresso,   idem. Até o  Judiciário  é salpicado  de  suspeitas.  O pais – imenso  lençol  esfarrapado de crimes  financeiros e assemelhados.  
      De todos os lados se  ouvem  gemidos. Num canto aqui e ali, caixas  entupidas  de dinheiro. São milhões  surrupiados  do povo  analfabeto e pobre. Cisões entre pobre e miseráveis. A classe mérdea - este termo não é meu -, é do contista João Antônio (1937-1996), também cindida, meio a meio,  half and half. A classe média alta, continua  pensando nos velhos e novos  tempos, mas  o dólar ainda é forte e exuberante  no Leblon, na Barra,  em New York, em Paris,  em Londres, mesmo  em Brasília, a land dos  homens honestos, probos, plantados, desde os antepassados numa linha cronológica e hereditária manchada de  rapinagem e sem-vergonhice no país tão bem  cantado pelo endiabrado Boca do Inferno.  
      Roubo, Roubo, Roubo, teu limite é a impunidade. Prisão domiciliar, tornozeleira  eletrônica, ah, ah, ah!  Me engana que eu gosto. Que diabo foi  a Lei  inventar  essas formas  de fingir que alguém está preso, quando está  mesmo  é em sua casa. Comendo do bem e do melhor?  Um estado da Federação é  assaltado por um governador  crápula. Povo  engabelado pela insânia  e cupidez  do vil metal: o deus de barro  que povoa a imaginação do capitalismo mundial,  comunismo, socialismo  globalizado cheirando a Wall Street e às Stock  Exchanges dos wheel dealers de todos os tempos, dos  Shylocks  sedentos do sangue, ou melhor,  dos cifrões bilionários   ganhos facilmente mediante falcatruas  mancomunadas entre ladrões capitalistas e  políticos  delinquentes.  
      Procuro, como um Diógenes (412 a. C.- 323 a. C.),  naquela  escuridão, algum Al Capone da sempiterna atualidade  dos bruzundanguenses, cujo ápice mais  acentuado prevaricaçõoes decorreu  nos anos de 2005   a 2018. No passado, na Colônia, no Vice-Reinado, nos dois Impérios,  na República Velha,  na Nova República e  na Novíssima República já existiam muitos  males  político-financeiros, porém não tão  poderosos como  um tsunami de malversações, desídias,  peculatos,  perfídias e  deslavado cinismo. O ladrão chora  e nega que o é, mesmo diante de evidências flagrantes,  investigadas e comprovadas. Chorar é preciso diante de um  quarto  cheio de milhões   em poder de um  conhecido ex-ministro  fortemente ligado a um partido  muito conhecido pelos seus  malfeitos, inclusive com um vice-presidente  que virou  presidente  da República. No entanto, sempre que  tento  acender a lanterna,  esta se apaga, porque naquele Hades só há lugar para  a escuridão e o sofrimento  universal-brasílico.
       Não há remissão para essa gente que habita  esse reino  eterno da escuridão. Quem ali  permanece, consciente  do que  fez contra  o povo cordial, o povo  ordeiro (ah, como eles apostam  nesse povo ordeiro!),  ficará para sempre presa ao mal que  tanto  praticaram   para a desgraça  de um Brasil varonil. Ali não há diálogo, muito menos  dialética. Não existe  ali diálogo porque essa gente perdeu a capacidade de se expressar na sua própria língua.  Não falam  em linguagem,  em vernáculo, falam em pecúnia, e quanta pecúnia direcionada para tantos às expensas do dinheiro  público!
       Sob a égide de uma suposta democracia,  o país  se habituou às arbitrariedades  de reformas  aprovadas  por político  que não mais têm   o respeito do eleitorado, et pour cause,  não têm mais representatividade   quanto às promessas  descumpridas em eleições ganhas  por força  do poder econômico, cujo defeito  maior foi se transmudar  em  mercadores de propinas entre corruptos e corruptores ou vice-versa,  pois não vejo qual diferença  de maior ou menor grau   de ética e de honradez  entre  um e outro.  São dois lados  em perfeita sintonia e  sentido de reciprocidade.
      A má governança  discricionária temeriana  chega a um  ponto em que o ministro da fazenda congela  os salários dos funcionários federais  por dois anos e, em contrapartida, por ação  pusilânime  e malvada,   permite  que a maior parte dos   produtos da alimentação aos planos de saúde,  aumente  os seus preços, gerando alto custo de vida dosgêneros de maior necessidades: alimentos, remédios,  e outros  produtos.

   Isso é uma ignomínia contra o bolso  já  vazio dos   funcionalismo. No entanto,  como somos um povo  cordial,  bonzinho,  ordeiro,   individualista e salve-se quem  puder,  ninguém  grita,  ninguém clama e nem   os sindicatos   fazem nada por ninguém, mas apenas arrecadam a nossa contribuição para, no caso dos planos de saúde,  em assembleias conchavadas, terminarem  por aceitar  o que a ANS  determina juntamente com  as empresas dos planos de saúde. E, assim,  ficamos  sempre  sujeitos ao domínio dos  conchavos entre o público e o privado sob a chancela  meio constrangida  e malandra  dos sindicatos. Ah, como somos ordeiros para regalo  da política  brasileira!⁢    

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

A morte do preso do cambo d' água



A morte do preso do cambo d' água

Chico Acoram Araújo*

O jornal “O Dia” denuncia o estado de abandono em que se encontram os detentos da Penitenciária de Teresina. Sobre a fome porque passam os presos, fala-se que o “Estado está ensaiando, embora sem consciência formada [aplicar] a pena de Talião”. (10 de fevereiro de 1957).

                 A antiga penitenciária de Teresina, demolida em 1978, ficava situada em um quarteirão fronteiro ao Estádio Lindolfo Monteiro, onde hoje é o Ginásio Verdão. Em uma tarde calorenta de verão, um preso carregando um cambo de duas latas vazias de querosene sobre os ombros descia a Rua Jônatas Batista, em direção ao rio Parnaíba, acompanhado por um policial armado com um Fuzil Mauser fabricado no começo do século vinte. O soldado, vestido com sua surrada farda cáqui, um pouco atrás, caminhava com passos lentos e cadenciados, mas mantinha olhar vigilante. Abastecer o presídio com as águas do Velho Monge era a missão cotidiana dos presos. Nesse mister, outras duplas se sucediam, diariamente, até o sol se por. O nome do preso não consta de minha memória. Só sei que não era o temido pistoleiro Joaquim Leandro Marciel, conhecido no mundo do crime, nas décadas de 50 e 60, como Catanã, morador da Penitenciária Campo de Marte há muito tempo por conta de vários assassinatos que cometera no Piauí. Ele era natural da Paraíba, da região de Cajazeiras. Feroz e temido, aterrorizou, além do Piauí, os Estados da Paraíba e Ceará. Catanã tornou-se famoso pelas suas façanhas de exímio matador. “Já estou com raiva”, dizia quando era contratado para matar alguém. Este não carregava água do rio Parnaíba; tinha certas regalias, protegido que era pelos poderosos. Na época, falava-se que, nos finais de semana, o famoso pistoleiro saía da cadeia, na calada da noite, para fazer uns “servicinhos extras” até mesmo fora do Estado do Piauí. Será que isso é lenda?
Esse fatídico itinerário diário dessa estranha dupla consistia no seguinte:  saiam da prisão pública (construída em 1866, depois denominada de Penitenciária Campo Marte), dobravam à esquerda, entrando na Rua Jônatas Batista, passavam pela antiga Santa Casa de Misericórdia (primeiro hospital de Teresina, edificado em 1860; hoje funciona uma entidade voltada para assistência aos surdos e mudos). Em seguida, descendo a mesma rua, passavam em frente ao Grupo Escolar João Costa (atualmente funciona uma escola estadual de teatro, música e dança) e pelo Asilo de Alienados, fundado em 1907 (hoje funciona a Escola Benjamin Batista), ambos localizados ao lado Norte do Estádio Lindolfo Monteiro; depois, ultrapassavam o desativado Posto Fiscal, situado no final da Rua Jônatas Batista, até chegar ao rio Parnaíba, sob a ponte metálica “João Luís Ferreira” (a primeira ponte construída sobre o Rio Parnaíba, no estado do Piauí, inaugurada em 2 de dezembro de 1939), onde as latas eram abastecidas com o precioso líquido.
Na época, as famílias que moravam fora do limite urbano de Teresina, e que não possuíam poços d’água em suas moradias, costumavam se abastecerem com água do velho monge, transportada em ancoretas no lombo de animais, ou em cambo d’água nos ombros dos moleques, ou em vasilhas postas sobre rodilhas de tecido acomodadas nas cabeças das mulheres. Cenário comum de Teresina do século XX.
Naqueles tempos, era comum observar prisioneiros da velha cadeia carregando água que coletavam do rio Grande dos Tapuias, nas proximidades da ponte metálica, pois a penitenciária não possuía água encanada.
Mas, a Capital do Piauí, no seu perímetro central, já possuía sistema de abastecimento d’água, iluminação pública, coletivos, bondes motorizados e outras modernidades vistos em outras cidades do Sul do Brasil e também da Europa. A cidade estava em franco desenvolvimento. A população chegava em torno de 100 mil habitantes. Imigrantes vinham de todos os lugares, principalmente dos vizinhos Estados do Maranhão e Ceará, e do interior Piauí.
Certo dia do início dos anos 60, ouvi, da minha sala de aula do então Grupo Escolar João Costa, o som de um tiro seco e forte no cruzamento da Rua Rui Barbosa com a Jônatas Batista. O prisioneiro escalado para pegar água no rio Parnaíba empreendeu fuga e tentou embarcar em um ônibus que passava, no momento, em direção à Timon, do outro lado do rio. O soldado, atento, não vacilou e desferiu um tiro certeiro que acertou a nuca do pobre homem, abatendo-o incontinente. O sangue escorreu pela calçada do centro social, a antiga Santa Casa de Misericórdia.
                No livro “Teresina 160 Anos do Jornal “O Dia”, 2. Ed., pág. 33 e 34 (org. por Antônio Fonseca Santos Neto) observa que a Santa Casa de Misericórdia foi  o primeiro hospital da nova Capital do Piauí, e que representa uma das tentativas de criar em Teresina um sistema de saúde pública. Essa instituição foi concebida com a intenção de ajudar aos pobres e indigentes de Teresina que precisavam de cuidados médicos e laboratoriais. Os ricos de Teresina não eram internados nesse hospital, mas atendidos em suas próprias residências por médicos particulares. A Santa Casa de Misericórdia, e outros estabelecimentos do tipo, tais como o Cemitérios São José, o Asilo dos Alienados, a Cadeia Pública, foram todos construídos fora do limite da zona urbana da cidade.
                Hoje quando passo nesse local, recordo-me do corpo ensanguentado do infeliz preso estendido no chão. E por algum tempo após a morte do detento, uma caridosa senhora que morava nas imediações acendia, ao anoitecer, uma vela no peitoril de uma das janelas daquele vetusto prédio. Triste memória; tinha eu, apenas 10 ou 11 anos de idade.
              

(*) Chico Acoram, formado em contabilidade, é funcionário público federal e cronista