sábado, 31 de outubro de 2015

Comentário à crônica Coração Partido


Comentário à crônica Coração Partido

Estimado amigo Elmar Carvalho:

Li há pouco sua crônica "Coração partido, plena de alusões pertinentes a autores exponenciais da literatura universal, com Pessoa, Wilde, Shelley...

Vejo que o amigo anda mais ainda afiado na composição de suas crônicas, anotações, lembranças, casos, histórias, enfim, tudo desaguando limpidamente em linguagem cada vez mais bem trabalhada."

O que é mais curioso, à medida que está mais experiente, a meu ver, está também adquirindo aquele domínio tão sonhado pelos escritores, que é o de escrever com mais fluência, com maior capacidade de "domar" a linguagem. Isso, para mim, é amadurecimento da função da escrita de um prosador ou poeta, ou cronista, ou ensaísta, enfim, em qualquer gênero onde possa projetar o talento.

Isso é bom para V. e para a literatura que faz e regozijo dos seus leitores.

Li seu discurso de recepção ao novo membro da APL, o amigo comum Dílson Lages.

Com estilos diferentes, tanto na poesia de ambos quanto na visão da vida, saí da leitura do seu discurso imaginando o encontro de dois poetas que, no íntimo do labor do mais sublime dos gêneros literários - a poesia - talvez se sintam mais à vontade de falar de poesia, ainda que em ocasião solene de discurso acadêmico, no qual a tônica é exaltar, sem exageros, o valor da obra do empossado e do panegírico dos ocupantes anteriores da mesma cadeira. Foi o que V. fez, e o fez de maneira ajustada ao momento de necessário brilho.

Após a leitura e a audição no site do Dílson, fiz, no espaço reservado da página de destaque, um breve comentário que, até agora, não foi liberado, a menos que eu tenha cometido alguma imperícia técnica no manuseio digital.

Porém, aquele comentário foi feito sob o impulso de emoção da leitura, quer dizer, foi escrito com a naturalidade com a qual desejava externar a minha alegria da peça oratória. E me recordo de que muitas vezes, por falha minha no manuseio do computador, se perderam várias observações que já expendi a textos seus e de outros autores piauienses.

Espero, por conseguinte, que o comentário seja liberado a fim de que lhe chegue ao conhecimento.

Algo bom está acontecendo com a literatura que produz em prosa: em considerável quantidade de textos que V. tem postado no seu blog.

Sinto que há uma vontade febril de criar textos, de dedicar grande parte de sua vida atual à literatura. Vejo isso com muita prazer.

Acredito que seja essa fase sua a da concentração na prosa.

V. é um intelectual que sabe respeitar a si mesmo na condição de artista, assim como sabe ser um escritor cavalheiro em convívio harmonioso com seus pares, neles encontrando o que seja mais específico e mais grandioso, sem os sentimentos subalternos da inveja e daquilo que chamaria traição literária.Esta enfermidade a encontramos em alguns escritores, no passado e no presente, em qualquer parte, seja no estados mais pobres, seja nas metrópoles. Penso que longe disso se posiciona a sua decência e compostura de autor.

O que mais deploro na vida literária é aquela traição acima referida, e amiúde praticada até por bons escritores.Para mim, atitude dessa natureza só diminui o valor de um escritor, de um artista,em qualquer plano da Arte.

Sonegar reconhecimento de outrem, o qual lavra o mesmo terreno, o literário, tem característica de perfídia, de papel de capadócio, de apagamento de valores por meios de ações ilícitas no campo da literatura.

Quem pratica tais baixezas d'alma jamais será um escritor genuíno, uma verdadeira vocação de escritor. E o tempo, só o tempo, cuidará de silenciá-los devidamente.

Um forte abraço do


Cunha e Silva Filho

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

CORAÇÃO PARTIDO



29 de outubro   Diário Incontínuo

CORAÇÃO PARTIDO

Elmar Carvalho

Estava eu posto em sossego, no salão de entrada da APL, no sábado passado, a conversar com o confrade Reginaldo Miranda sobre os seus projetos historiográficos, entre os quais se encontram a reedição de seus livros e o término da redação de suas novas pesquisas, que darão origem a novas obras sobre a nossa história e sobre nossos vultos ilustres, quando chegou o escritor e cardiologista José Itamar Abreu Costa.

Itamar nos contou um fato anedótico de dois ferrenhos adversários políticos, que o bispo Dom Abel Alonso Nunez, com a sua intermediação, terminou por apaziguar e conciliar. No fecho da narrativa do episódio, revelou que um deles morreu de coração partido. Fiquei curioso, e logo imaginei que o finado havia contraído uma forte paixão amorosa não correspondida. Isso porque a metáfora do “coração partido” é usada na literatura e mesmo nas conversas informais como símbolo de desilusão amorosa, de amores sem correspondência, de amores impossíveis ou proibidos.

Dr. Itamar, ante minha irrefreável curiosidade, deu rápida explicação, e me prometeu enviar maiores informações por e-mail. Cumprindo a promessa, enviou-me o seguinte bilhete eletrônico:

“É uma situação já bem documentada. Nos pacientes submetidos a stress permanente, haverá liberação excessiva de substâncias vasoativas (Adrenalina e Noradrenalina), e como consequência a coronária sofre um espasmo e o paciente infarta, ao ser estudado por Ecocardiograma são detectadas grandes áreas de necrose no músculo do coração.

Submetido ao cateterismo e cinecoronariografia (estudo das artérias coronárias), eis a surpresa: as artérias coronárias estão quase sempre isentas de obstruções. Em outras situações o paciente tem morte súbita e, ao ser submetido à necropsia, são detectadas imensas áreas de necrose da musculatura do coração e o padrão das artérias coronárias completamente normais.

A doença leva este nome em função de que existe uma cidade no Japão (tradicionalmente agrícola – plantações de arroz), na qual os jovens japoneses trabalham cerca de 18h/dia, sem férias, sem perspectivas para o futuro; estes trabalhadores apresentam uma frequência muito alta de infarto e/ou morte súbita.”

Ante os esclarecimentos acima, verifico que o coração mencionado pelo doutor Itamar foi literalmente partido, e nada tinha a ver com os metafóricos corações partidos dos poetas e amantes, embora um forte estresse provocado por amores infelizes ou trágicos possa literalmente “arrebentar” um coração, segundo deduzo da leitura do e-mail acima transcrito.

Outrora, acreditou-se que o coração seria a sede do amor. Hoje quase todos acreditam que os sentimentos estejam em algum lugar do cérebro. Alguns acreditam que eles estejam alojados na alma ou no espírito. Não irei, aqui, discutir assunto tão abstrato e controverso. De qualquer maneira o coração passou a ser símbolo do amor. É um importante órgão, vigoroso, de músculos nobres e resistentes, conquanto também possa ser necrosado e partido. Portanto, recomendo que ninguém ame demais, ou, pelo menos, não ame além de sua capacidade.

É, na verdade, uma bomba, que faz o sangue circular por todas as veias e artérias. E se ele parar, a vida para. Foi chamado de comboio de cordas pelo poeta Fernando Pessoa: “E assim nas calhas de roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / Que se chama coração.” Eu o chamei de bomba, mas bomba incendiária: “Meu coração / é uma bomba incendiária / mas muitas vezes tem servido / de bobo da corte / para os fúteis e vulgares.”

No livro Psicanálise dos Gênios (Doentes Célebres), de Gastão Pereira da Silva, leio que o grande poeta Shelley, ao morrer em circunstância trágica, teve o seu corpo levado a uma pira fúnebre. Então, ocorreu algo de extraordinário, que deixo GPS descrever: “De súbito, porém, o corpo estala e se encurva no ar e o coração de Shelley aparece inteiramente ileso! As chamas não o queimam, mas o cérebro ferve literalmente dentro do crânio, como se estivesse dentro de uma caldeira!” E conclui afirmando que tudo o fogo destruíra, menos o coração bondoso do poeta, que costumava fazer caridade.

No conto O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde, o protagonista, na verdade uma suntuosa e bela estátua, manda em sucessivas ocasiões que a andorinha, que o amava, distribuísse aos necessitados as valiosas peças de metais nobres e pedras preciosas de que era revestido, até se transformar numa escultura feia e sem valor artístico. Quando a andorinha morreu aos seus pés, o seu coração se partiu. “Como ele perdeu a beleza, perdeu também sua utilidade”, proclamou, doutoral, o professor de arte da Universidade.

Os administradores da cidade mandaram, então, fundir a estátua, para que uma nova fosse feita. Tudo o fogo derreteu, menos o coração bondoso (e partido) do Príncipe Feliz, que foi jogado no lixo.  Um dia, pediu Deus a um de seus anjos que lhe trouxesse “as duas coisas mais preciosas da cidade”. E o anjo lhe entregou a andorinha morta e o coração de chumbo.  

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Dílson Lages: discurso de posse na APL


Dílson Lages: discurso de posse na APL

[Dílson Lages Monteiro]

Senhores e senhoras,

O espírito que me move hoje é o mesmo de 30 anos atrás. Ao cruzar o morro do Pipoca,   pequena elevação geográfica que escondia  a cidade natal, como se ocultasse ou protegesse um tesouro,  minhas esperanças de menino  se depositavam na argila dos meus sonhos.  A longa viagem, mais na imaginação que no trajeto, mais no desejo de descobertas  que na paisagem renovada do verde das chuvas de março.  Longa a vontade de realizar, de crescer, de vencer.

O entusiasmo de trinta anos atrás é o mesmo de hoje.  Carrego em minha alma  o permanente anseio de ser útil à humanidade, mais que a mim mesmo, e espero que esse traço de meu ser se mantenha inabalável – agora mais do que antes -  em favor de difundir e revigorar a boa literatura e  promover o conhecimento dos grandes temas intrínsecos à linguagem.

Generosamente, as portas desta Casa se abrem para mim quando chego à juventude  dos quarenta anos. Desde os mais verdes anos, sonhei que um dia estaria entre vós, e custa crer, às vezes, que este dia chegou. Multiplica-se minha responsabilidade de retribuir ao coletivo, com o olhar em Deus, a confiança creditada. Espero, com humildade e labor incansável em prol das letras, corresponder, com as tintas de meu verbo e o vigor da persistência, para ajudar a manter acesas as chamas que iluminam o alicerce deste sodalício e que enaltecem o ideal comum de todos os confrades.

Fazer literatura e formar leitores, hoje, transformaram-se em desafios dos mais exigentes. Não obstante as tecnologias digitais se revelarem grandes aliados, favorecendo desde a divulgação de ideias à edição de livros, a profusão de novas formas de sociabilidade, contagiantes para todas as idades, conduziu a uma ânsia de imediatismo e a novas necessidades, que forçam à inserção no ciberespaço, por meio da atualização contínua e do uso dos novos meios disponíveis e, ao mesmo tempo,  requerem o compartilhamento e a participação ativa de todos os integrantes do sistema literário. Afinal, a cibercultura “propaga a copresença e a interação de quaisquer pontos do espaço físico, social ou informacional”, como lembra Pierre Levy, e exige que nos recriemos para viver o hipertextual sem perder as marcas da tradição que fundamentam a nossa identidade.

Senhores e senhoras,

Cresci. A certeza disso reside na juventude embebida principalmente de livros, leituras e  trabalho, muito trabalho. Reside na manutenção de meus propósitos de criança e adolescente sonhadores, dos propósitos do romântico operário da educação.  Eis-me  aqui, eis o menino, o adolescente, o operário, o sonho. A vontade de realizar e de vencer.

Escreveu o vate amarantino Da Costa e Silva no festejado poema Carrossel Fantasma:

“Ganhei o dia a meditar na minha vida,

porque a saudade me levou à longínqua Amarante
que cisma, talvez por mim, debruçada sobre as águas
lentas e sonolentas do Parnaíba
a rolar para o mar como eu para o mistério...
Então, num sonho de criança convalescente,
vem-me à memória o carrossel que fascinava,
no seu giro constante, os meninos de minha idade”

(...)

O carrossel parou no largo... mas não parou na vida...
Continua em meu sonho, rodando... rodando sempre...
E andando e desandando, num ritmo contraditório,
ainda me dá a alegria inevitável de dar voltas...
de girar, de rolar como os astros no espaço,
de elevar-me a um destino superior ao do planeta,
que em torno da sua órbita, como um símbolo, roda...

— Upa! Upa! Meu pensamento!

Ao compor estas palavras, por mais que tentasse resistir a isso, as correntezas da memória me arrastaram à infância e ao berço de minhas raízes, como tão frequentemente fizeram a Da Costa e Silva e a uma infinidade de vates, como uma espécie de sina. Se as evoco é porque se entranharam definitivamente  em mim, como reservas literárias, das quais o esforço para outros temas não foi  capaz de me libertar inteiramente. Se as evoco é porque, falando inicialmente com a força da memória,  embora contrariando aparentemente a praxe do discurso acadêmico, posso com maior exatidão e autenticidade discorrer sobre o que verdadeiramente interessa. Se as evoco é porque, recompondo as nódoas da meninice, posso revisitar a descoberta do livro, da literatura e as primeiras impressões sobre esta luminosa Casa de Lucídio Freitas e A. Tito Filho.

Em mim, a literatura visa preservar o tempo de ontem, atualizando impressões ou vivências passadas, para reinterpretá-las e criar novas impressões em palavras multiformes. Em mim, é a memória, em sensações simbólicas, que se incorporam à natureza, independentemente do uso social que faça da linguagem literária. A literatura, afinal, serve como modo de ler a individualidade humana  – a nós mesmos, sem determinação de tempo e lugar -  e a absorção do individual pelo coletivo. Uma forma de reconstrução do passado e do presente, sem arbitrariedades, porque nesse tipo de linguagem, até nos textos declaradamente engajados, o princípio da excelência está na liberdade dos sentidos  ou  das vozes emergentes. Ao escrever, pois, a memória e as sensações se sobrepõem ao individual; o passado reinventa-se no presente. 

A esse propósito, para ilustrar o significado superior das reminiscências e seu  processo alinear, recorro à memória do despertar do sono, em “No caminho de Swann”, de Proust:

“A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhe seja imposta pela nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas. A verdade é que, quando eu assim despertava, com o espírito a debater-se para averiguar, sem sucesso, onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito entorpecido para se mover, procurava, segundo a forma de seu cansaço, determinar a posição dos membros para daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e dar um nome à moradia onde se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de suas espáduas, lhe apresentava sucessivamente vários dos quartos onde havia dormido, enquanto em torno dele as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça imaginada, redemoinhavam nas trevas. E antes mesmo que o meu pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das formas, tivesse identificado a habitação, reunido as diversas circunstâncias, ele, - o meu corpo -, ia recordando, para cada quarto, a espécie do leito, a localização das portas, o lado para que davam as janelas, a existência de um corredor, e isso com os pensamentos que eu ali tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar […]”

Interessa-me, sobremodo, a memória da infância. Toda infância se alicerça na transposição imaginária do real, conforme acertadamente asseverou o antropólogo Clifford James Geertz: “Uma mente criando sentido, buscando sentido, preservando sentido e usando sentido; numa palavra – construtora do mundo”. Quer no giro metonímico do poema dacostiano, quer em qualquer outra representação social ou imagética, essa transposição se configura como condição comum para se entender a voz da criança, também da literatura que se fundamenta – ainda que parcialmente - na construção social do mundo infantil.

Para Freud, a natureza da arte imaginativa reside na infância: “A obra literária, como o devaneio, é uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar infantil”.  O ofício do literato se elucida simplificadamente nestes termos: “O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre esse mundo e a realidade”.

Se recupero essas referências, é para justificar, em partes, a gênese de um processo literário em formação permanente.  A presença viva de uma paisagem simbólica, reflexo identitário da escritura literária, em cujas metáforas e metonímias a integração à natureza anima-se. Essa integração constitui-se em pano de fundo que recuperam sabiamente, por exemplo, românticos, simbolistas e mesmo os revolucionários regionalistas brasileiros de 1930. Nos primeiros, para favorecer a evasão ou definir a cultura do novo mundo; nos segundos, para ensejar a transcendência cósmica; nos terceiros, para  questionar a realidade social com contundência, à luz principalmente do socialismo.

Essa integração é a mesma tão habilmente decantada na dimensão espiritual do poema O tempo nos parques, de Vinicius de Moraes. Para a percepção da vida, do ser e do estar no mundo, o eu lirico vai buscar no contato onipotente com a natureza o silêncio, o sagrado, o eterno, necessários para a consciência do existir e para a elevação espiritual:



“O tempo nos parques é íntimo, inadiável, imparticipante (...)

Medita nas altas frondes, na última palma da palmeira

Na grande pedra intacta, o tempo nos parques.

(...)

O tempo dos parques gera o silêncio do piar dos pássaros

Do passar dos passos, da cor que se move ao longe.

(...)

Porque imóvel, elementar, autêntico, profundo

É o tempo nos parques."

A integração da paisagem ao narrador ou ao eu lírico, na raiz da mímese ou da ambiência literárias, explicita-se como traço inerente ao fazer artístico e encontra na infância seu porto seguro.

Em mim, a memória da infância se divide entre o rio, a casa paterna, a igreja e as miragens do mundo rural. Neles, a experiência humana se converteu em novas experiências e palavras, principalmente, ora intermediadas pelo sensacionismo, ora pela utilização da literatura como documento.  Em Pessoa, sobretudo, essas vivências encontram referencial de que me utilizo como bússola para o fazer literário. Explica o poeta: “A arte, na sua definição plena, é a expressão harmônica da nossa consciência das sensações; ou seja, as nossas sensações devem ser expressas de tal modo que criem um objeto que seja uma sensação para os outros”. Dito em forma de versos, por meio do heterônimo Alberto Caeiro:

“Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.”

A literatura como documento encontra na prosa de 1930, de que também me valho, o paradigma para grande parte dos projetos literários em vigor. Herdeira da influência realista, repaginada pela renovação estética, em prosa, nas quatro primeiras décadas do século XX, essa concepção trouxe profundas  transformações sobre a técnica literária. Nas palavras do historiador Alfredo Bosi, “o caráter bruto ou brutal desse novo realismo do século XX corresponde ao plano dos efeitos que a sua prosa visa a produzir no leitor: é um romance que analisa, agride, protesta. Para atingir esse alvo, porém, foi necessária toda uma reorganização da linguagem narrativa, o que deu ao realismo de um Faulkner, de um Céline ou de um Graciliano Ramos uma fisionomia estética profundamente original”.



Em mim, a memória da infância se divide na natureza de minha palavra. O mundo, tão grande, cabia no meu coração. Aprendi a ver no rio, na casa paterna, na igreja e nas miragens do mundo rural gente. Aprendi a me integrar à paisagem como se fôssemos uma só criatura. As águas assombrosas dos invernos fartos lambiam os tetos das casas ribeirinhas e reproduziam a fartura de peixes: piranhas e surubins gigantes vendidos de porta em porta. As águas pareciam gente. A casa modesta de então,  de longo corredor, teto de madeira redonda e piso de tijolos, rústica em sua simplicidade  e rica em carinho e amor. A casa paralela ao rio, a dois quarteirões da igreja. A casa em cujas paredes enxergava o céu de todas as formas e texturas. A casa imorredoura em minha emoção. A casa que era gente.  A igreja, onde coroinha fui  aos sete anos – para orgulho de Dasinha. a igreja, onde aprendi a fazer perguntas e a conversar com o desconhecido, imaginando as estórias do outro mundo;  A igreja que fortaleceu a paciência e a humildade de meu DNA. A igreja que em festas religiosas atraiam toda espécie de tipos curiosos e exóticos. Gente, era gente.

Ah! As miragens do mundo rural! Vivi, antes da maior consciência de classe, que modificou as configurações do trabalho no campo, e da opção pelas oportunidades e promessas da vida cosmopolita, os últimos dias coloridos e simples das antigas propriedades rurais da Zona da Mata de Barras do Marataoã, na sombra dos desdobramentos  da  Fazenda Esperança, do velho Alfredo Pires Lages. Ainda as conheci; os valores, costumes e histórias, nos derradeiros anos de uma geração que viveu no campo. Até parece que ouço a comunicação fácil dos longevos e fiéis Agostinho Israel e Jenelino. As antigas propriedades, ainda as conheci como eram,  elemento concentrador de renda e como saudável fonte de entretenimento e sociabilidade.

Ali, a audição tinha professor nos ruídos de algum veículo perdido nos estradões de areia. Ali, a cantiga insistente da cigarra, o mugido do gado na madrugada, o ruído frenético das folhas das palmeiras, dos sapos nas lagoas em noites de inverno e os sons das correntezas dos riachos eram as vozes das sensações falando em bom português. A variada gastronomia de delícias sem fim e orações que se dissolvem, respectivamente, em meu paladar e em meus tímpanos.

Nesse ambiente, pela primeira vez entrei em contato com a poesia propriamente dita, a dos cantadores, na vaga lembrança de uma cantoria, e com a leitura dos poemas de Teodoro e Hermínio, em antologia organizada e comentada pelo acadêmico Herculano Moraes, em capa azul. Tenho a impressão viva de lhe tatear ainda. Lendo-a, sob o balançar da rede de tucum, punha-me a cantar sem nenhuma ideia sobre a sinfonia particular que une a música e a poesia. Quantas estórias de assombração sob o céu estrelado! Figuras que viravam animais, visagens de todo tipo, para justificar os absurdos das transgressões humanas.

Ali, também entendi a desigualdade nas mãos das quebradeiras de coco, na peleja do vaqueiro tocando boi encaretado, no agricultor de foice ao ombro a caminho da roça. O mundo era dividido; algumas vezes, pela natural divisão social do trabalho; outras, pelas imposições morais da injustiça social. A mesma divisão da pracinha central da cidade-berço: andando em círculos, na extremidade superior da praça, as trabalhadoras domésticas, alvo dos mais absurdos preconceitos, e os moradores dos bairros, vistos pelas lentes da desconfiança e da discriminação; na extremidade inferior,  jovens oriundos das famílias do centro, indiferentes aos contornos da desigualdade velada.  O mundo demarcado, dividido na pólvora das ruas e das tensões inesgotáveis de poder, mas o mundo em que o humanismo, a ação cidadã e a convivência saudável derrotavam as barreiras da arrogância e da indiferença. As fazendas e a cidade, em suas alegrias e divisões, gente eram. E ficaram marcadas em minha epiderme, como um pedaço de minha própria pele. Se as evoco, é porque sei da força matriz que mantêm com meus projetos literários.

Na cidade em que nasci, por volta de 1982, ocorre-me a lembrança mais distante do nome desta Casa de Letras. Para conter a indisciplina em sala de aula, a diligente e afetuosa diretora do grupo escolar Gervásio Costa, escola pública onde estudei o ginásio, a senhora Maria de Jesus Carvalho Rocha, figura de relevo na história da educação daquela cidade, entrou subitamente no recinto e pôs-se a falar das tradições de uma cidade de grandes homens, no passado, nas variadas esferas da atividade humana. A tradição, ao que  parece, iniciada na Guerra do Paraguai e esplendorosa até a queda do Estado Novo, assinalando não apenas o declínio político das oligarquias rurais, mas também a decadência da força política de uma região. Todos, em silêncio, ouviam atentamente comentar sobre os irmãos Celso e João Pinheiro, além do mito vivo de então, A. Tito Filho. Dizia que o destino de alguns de nós poderia ser de conquistas, se assim o quiséssemos.  Ouvi pela primeira fez ali o nome da Academia Piauiense de Letras e dele nunca mais me esqueci, como símbolo de orgulho do lugar em que nasci.

Se  evoco essas memórias, é porque o menino, o adolescente ainda existem em mim. Em seu entusiasmo, em suas esperanças.

Senhores e senhoras,
Vivendo o magistério, a linguagem e a literatura como objetivos diários desde a adolescência, como estudante, como professor  de longa data, sinto-me afinado aos valores e às causas dos que me antecederam na cadeira 21, embora eu seja apenas um pequeno ponto de entusiasmo diante do que cada um legou para as letras. O desafio de honrar a cadeira de Leopoldo Damasceno Ferreira, Antônio Francisco da Costa e Silva, Maria Isabel Gonçalves Vilhena e Francisco Hardi Filho é colossal, todavia, gigantesca, também, a minha obstinação.

O oeirense Cônego Leopoldo Damasceno Ferreira, doutor em Direito Canônico,  nascido em 1857 e falecido em São Luiz do Maranhão, em 1906, patrono deste assento, notabilizou-se como, além de poeta de grande força lírica, figura múltipla, com extensa folha de serviços, especialmente à igreja, ao magistério e ao jornalismo.  No Maranhão, segundo anotações do historiador e acadêmico Wílson Carvalho Gonçalves, além de notável orador sacro e poeta, foi professor de Latim e Francês no Liceu Maranhense, diretor do Seminário das Mercês e governador do bispado do Estado.  Cônego Leopoldo, destaca o historiador, “teve intensa atividade na imprensa do Maranhão”, colaborando com os jornais Diário do Maranhão e  Alvorada.

A nobreza fulgurante de sua inteligência e expressão como orador sacro é descrita por Ivan Lins em sua “História do positivismo no Brasil” (1967). Ele relata o empenho do professor maranhense Agostinho Gomes de Castro, intenso defensor da teoria de Auguste Comte, para dar publicidade a ela em São Luiz, e a movimentação da igreja em oposição a esse conceito. Nesse mister, o clero nomeou a maior autoridade da igreja naquele Estado, o Cônego Leopoldo Damasceno:

“Num domingo, 29 de fevereiro de 1898, no edifício da Escola da Rua Grande, onde funciona hoje o Instituto Histórico, deu Gomes de Castro a sua aula inaugural, tomando como tema a "exposição popular do positivismo". O sucesso foi espantoso. Grande assistência passou a ouvir-lhe a palavra, sempre fluente e fascinadora.

(...)

Tal sucesso apavorou o clero maranhense, que resolveu reagir, opondo doutrina contra doutrina.


Para isso, apelaram os padres para sua maior ilustração — o Cônego doutor Leopoldo Damasceno Ferreira. Mandaram-no buscar na Vila do Paço, de cuja freguesia era encarregado. O Cônego veio e iniciou uma série de conferências contra o Positivismo na Igreja de Santo Antônio.”

Registra o professor A. Tito Filho, em crônica datada de 17.06.1988, a seguinte apreciação de Clodoaldo Freitas sobre a larga contribuição do patrono da cadeira 21:

 "Foi, nestes últimos tempos, o campeão de teologismo entre nós, e bateu-se, pela imprensa, em defesa do credo católico com a louçania de um convencido. Sustentou polêmicas acres e veementes, demonstrando sempre copiosa e larga cultura. Distinguiu-se como orador sagrado, como jornalista e os íntimos o denunciavam também como um poeta de inspiração e sentimento. Tinha coração de patriota para amar a pátria, sentir suas dores e suas alegrias. Era uma rara exceção entre o clero brasileiro, tão diferente do clero de outrora".

Na cadeira 21 deste sodalício, em janeiro de 1923, tomou posse o mais conhecido dos poetas piauienses, Antônio Francisco da Costa e Silva. Em artigo publicado originalmente em 11 de outubro de 1998 e reproduzido em Notas de leitura impressionista – nova série, o ilustre crítico literário e acadêmico Manoel Paulo Nunes revisita a posse do Poeta da Saudade, em busca de desvendar o desconhecimento completo do discurso do vate, jamais publicado em terras piauienses.

Do amigo romancista Josué Montello, Paulo Nunes conta que recebeu inusitado presente: recorte do jornal  Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, de 16 de janeiro de 1923, noticiando a posse do acadêmico e tecendo elogio ao patrono por ele escolhido.

Esclarece Paulo Nunes:

“Trata-se, ao que suponho, do resumo do famoso e desconhecido discurso do poeta, ou mesmo do próprio discurso, pois compreende um perfeito estudo biográfico e crítico da personalidade do cônego, detendo-se o novo acadêmico, especialmente, no comentário de sua obra lírica, de mais forte inspiração”.

Reproduzindo poema de autoria do Padre Leopoldo, poema de acentuados traços líricos, o crítico Paulo Nunes prioriza  a leitura que  Da Costa realizou sobre a poética do patrono da cadeira 21. Nas palavras do poeta amarantino,

“Esse padre, que todos afirmam era um crente convicto e um sacerdote virtuoso, teve, sem dúvida, como o poeta Anvers, o seu segredo n’alma e o seu mistério na vida. Teve, como todo poeta, a aparição divina de uma sombra de mulher, nos caminhos incertos da existência.”

Raros poetas piauienses atingiram tanta notabilidade nacional quanto Antônio Francisco da Costa e Silva. À sua produção literária, detêm-se os mais variados historiadores, entre os quais, nomes de credibilidade como Andrade Muricy, José Veríssimo, Sílvio Romero, Alfredo Bosi e Carlos Nejar. Para este, em sua História da Literatura Brasileira – Da carta de Caminha aos Contemporâneos - o poeta de Amarante, ao lado de Raul de Leoni, “tornara-se o arauto do Pré-Modernismo, trazendo a semente da crise, que é o começo da transformação estética”. Para justificar o parecer ele afirma: “ Há um lado estranho neste poeta, revolucionário para a época, o dos poemas experimentais, desenhando em vocábulos o tema dos versos”.

Rotulando-o como um “lírico superior”, Nejar destaca, entretanto, que a poética dacostiana, sobretudo, “gerou uma poesia com apuro e força imagística, aliando símbolos religiosos a certo profanismo”, a que se agrega, em muitos poemas, “visível concisão elegíaca”.

A interpretação de Nejar, que o considera, conforme posto, como precursor do Pré-Modernisto e, portanto, atento às nova tendências de seu tempo, encontra reforço nas palavras de um dos principais pesquisadores da poesia de Da Costa e Silva. Para o crítico literário e  Pós-doutor em Literatura Cunha e Silva Filho, fecundo estudioso da obra dacostiana, “ao construir uma obra literária poética em vários estilos literários, ele não deu senão demonstração de ser um poeta voltado a um experimentalismo que o conduziu até mesmo ao Modernismo”.

A  força das imagens e símbolos, a que há pouco referimos,  mergulhada em telurismo de tom elegíaco, é traço comovente de um dos poemas mais populares do Piauí, o  célebre soneto Saudade:                                                               

"Saudade! Olhar de minha mãe rezando

e o pranto, lento, deslizando em fio...

Saudade! Amor da minha terra... O rio

cantigas de águas claras soluçando.



Noites de junho... o caboré com frio,

ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...

E ao vento, as folhas lívidas cantando

a saudade imortal de um sol de estio.



Saudade! Asa de dor do Pensamento!

Gemidos vãos de canaviais ao vento...

As mortalhas da névoa sôbre a serra...



Saudade! O Parnaíba, - velho monge,

as barbas brancas alongando... e, ao longe,

o mugido dos bois da minha terra..."



Sobre a Saudade em Da Costa e Silva, diz Cunha e Silva Filho:

“(...) A saudade no poeta está mais plantada em fundas raízes românticas, sendo ela fruto mais das intuições, da espontaneidade, de condicionamentos existenciais. (...) A saudade dacostiana deve ser entendida, a nosso ver, como  a ausência de alguém ou de alguma coisa que perdemos no tempo e no espaço e, além disso, é motivada por quatro forças-motrizes de seu lirismo: o amor materno, o amor à terra natal, o amor ao rio Parnaíba e, finalmente, o amor à Alice, a sua musa cedo desaparecida.”

Uma dos mais completos mergulhos no lirismo e na gênese da criação de Costa e Silva nasceu da sensibilidade do historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva em Invenções de Orfeu, ensaio quase obrigatório para compreender as influências literárias  do poeta e as particularidades de sua técnica . Conta o historiador, citando relato de Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves, que o pai aprendera muito cedo a ver. “A Perscrutar o mundo. A conhecer as formas, os movimentos e o nome de tudo que estava a seu redor”.

“O poeta fazia máscaras de Carnaval e pandorgas. Pintava com paisagens as paredes das casas. Esculpia santos em madeira. Confeccionava estandartes para as festas religiosas. Suas mãos de dedos longos e harmoniosos eram habilíssimas e teriam feito dele um pintor ou um escultor, não tivesse ainda menino, começado a compor versos.”, conta o historiador.

A capacidade de ver situa-se, para Alberto da Costa e Silva, como elemento do qual se vale para sintetizar o fazer literário do pai:

“A capacidade de mimese, que poderia conduzir ao simples descritivismo e a uma poesia que se reduzisse às emoções da inteligência, é corrigida num poeta que sabia ver e reproduzir o que via, por uma penetração na paisagem e, mais que isso, por um pensamento panteísta, que o integrava nela e na divindade”.

Referindo-se a toda a produção poética de Da costa e Silva, ele acrescenta:

“Da Costa foi capaz de estar na natureza como Pã e como Orfeu. Por isso, pode passar da paisagem misteriosa e altamente simbólica, presente em Sangue – naquele soneto perfeito que é “Rio das Garças”, por exemplo – para a natureza harmoniosa ou agredida de Zodíaco, até chegar à natureza emotiva e pesada de Pandora, à natureza filtrada pela lembrança e que obedece ao canto do poeta”.

Antônio da Costa e Silva nasceu a 23 de novembro de 1885, na rua das Flores, em Amarante. Ali estudou o primário e viveu a infância entre os banhos nos rios Canindé, Parnaíba e o riacho Mulato, entre os passeios à fazenda da família e à igreja. Muda-se para Teresina na adolescência, a fim de estudar o ginásio no Liceu Piauiense. Em 1906, está em Recife, matriculado na faculdade de Direito. Em 1910, aprovado em concurso público, assume o cargo de escriturário da Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional, ascendendo celeremente ao posto máximo dessa repartição. No exercício de suas atividades profissionais, reside em várias capitais: São Luiz, Manaus, Fortaleza, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, onde falece a 29 de junho de 1950.

Para aquilatar a influência do Poeta da Saudade no cenário literário nacional e sua sintonia com o que se produzia à sua época, cito episódio a que menciona Alphonsus de Guimaraes Filho, em biografia escrita sobre o próprio pai, um dos maiores poetas – senão o maior - do cânone simbolista. Estabelecido em Minas Gerais, Da Costa fora um dos maiores amigos de Alphonsus de Guimaraes e o responsável, inicialmente, pela divulgação da poesia do famoso autor de “Ismália”, conforme conta Guimaraes Filho em biografia:

“Teu amigo foi o esplêndido poeta piauiense Da Costa e Silva, a quem muito prezavas: dedicaste-lhe o soneto XXV da Pastoral.

 (...) O poeta de Sangue figura entre os que mais te distinguiram. (...)”

A esse respeito diz Alberto da Costa e Silva, incansável divulgador da obra do pai:

“Da Costa e Silva fez uma peregrinação, pouco antes de 1915, a Mariana, a fim de conhecer pessoalmente a Alphonsus de Guimaraes, a quem admirava desde os tempos de rapaz e cuja grandeza foi dos primeiros a conhecer”.

E acrescenta:

“Se, como dizia Augusto Meyer, fora Da Costa e Silva quem lhe revelara, e a outros companheiros gaúchos em 1930, ele o fizera antes aos próprios mineiros”.

Sucedendo a Da Costa e Silva, Maria Isabel Gonçalves Vilhena, projetou-se como poetisa e como educadora  de reconhecida competência. Professora da Escola Normal, do Colégio Diocesano e do Colégio das Irmãs, ela nasceu em 20 de agosto de 1896, na Rua Santo Antônio, hoje Olavo Bilac, e faleceu aos 92 anos, em Teresina, a 19 de dezembro de 1988. Publicou Nada e Seara Humilde, este em 1940. O reconhecimento da obra assegurou-lhe a reedição conjunta em 1975, pela Secretaria da Cultura do Piauí. Em notas impressionistas, diz seu sucesso na cadeira 21, o poeta Hardi Filho:

“O lirismo de sua poesia encanta pela doçura e pela leveza da expressão que traduz com espontaneidade as emanações da fonte conceitual do pensamento. Seu livro é composto de versos nascidos de uma imaginação clara, expressos como água que cai e, nessa queda, arrasta para a mensagem o que de melhor e mais puro contém o coração.”

Graça Vilhena, poetisa, festejada professora de literatura e neta da autora de Seara Humilde, em análise lúcida, assim se manifesta sobre a técnica e as matizes da poética da avó:

“A expressão analógica entre a natureza exterior e a projeção dos sentimentos, assim como a liberdade formal, na maioria das composições, aproxima a poética de Isabel Vilhena à estética romântica. Porém, alguns aspectos relevantes são operados, em sua lírica, que revelam certa tendência modernista e contradizem algumas características básicas do comportamento romântico. Isso ocorre nos momentos em que a poeta (ou poetisa) rompe as fronteiras do individualismo e as imagens, arquitetadas por símbolos, metáforas, símiles e prosopopeias passam a ser produto de uma correlação psíquica entre as coisas da natureza e o mundo, assim, a voz poética é projetada no âmbito geral, numa comunhão com o outro.”

Expressando-se sobre a consciência do fazer poético de Isabel Vilhena, acrescenta a poetisa:

“Sua poesia se atualiza também pelo trabalho consciente em torno da linguagem. A riqueza imagética nos versos de “Nada” e “Seara Humilde” – reunidos em publicação posterior – está nos poemas como testemunha de uma poética que se afirma pela excelência de seus versos. A linguagem, aparentemente simples, veste-se de novos significados, férteis em simbologia e figuração: o pau-d´arco amarelo é símbolo da riqueza da “Terra Brasileira”; nossos sonhos estão guardados “no longínquo azul” do horizonte; o amor “é tão iluminado” como todas as flores sob a luz do sol; a mesma luz que “se coalha” nos arvoredos, agasalhando “a solidão das casinhas de palha”. As asas da borboleta levam a ventura fugidia e a “alvorada de maio” traz a alegria da vida. A “luminosa esteira do sol” se afasta como as lembranças do passado e as noites de São João são iluminadas pelo “chuveiro de estrelas”. A “alma da terra mora no vulto erguido das longínquas serras” e o rio, como nós, “sonha acordado e sem saber que sonha”.

O diálogo natureza-sentimento e os símbolos daí oriundos refletem-se em versos de notável influência romântico-simbolista, como estes, de O lago:

Na superfície azul das águas transparentes,

Sereno e calmo vive o lago a refletir

a grandeza do céu, os astros reluzentes

e a renda do arvoredo ameno a reflorir.



E quem o vê assim nessa mudez dormente,

Sem um murmúrio vago ou leve proferir,

Nessa aparência mansa e doce de um demente,

terá razão demais, de certo, em se iludir!



Revolvei o seu leitor! E o tendes já turvado,

Desfeita, emaranhada a renda do arvoredo,

E  o calmo adormecer em vagas transformado!



Como o lago também há corações! E quantos!...

De aparência feliz, guardando, com segredo,

na placidez de um riso um vendaval de prantos!



Resumindo a poética de Isabel, conclui Graça Vilhena:

“A espiritualidade, a saudade, o fundo psicológico, o amor e a natureza são temáticas constantes em sua obra, que ela soube tratar não com sentimentalismo exarcebado, mas com uma sensibilidade rara e verdadeira. A intenção da poeta com sua simplicidade estética e pura expressão poética é tocar a alma humana, sem distinção, numa atitude universal e solidária. O lirismo sem particularismo, o ecumenismo de seus versos são, portanto, traços inovadores que atualizam sua poética e nos deixa a impressão, ao ler seus versos, que compreendemos sua generosidade, a intenção contida em seu lirismo agreste, sua voz que se projeta para emocionar os corações distantes.”

Bastam as palavras de Carlos Nejar, para definir a grandeza da poesia do último ocupante da cadeira 21. Contrapondo o estilo de Hardi filho ao de H. Dobal, para quem “a poesia é um instrumento de precisão”, sentencia:

“O oposto de H. Dobal é Hardi Filho, natural de Fortaleza (1934), radicado em terra piauiense, estreando com Cinzas e Orvalhos (1964). Poeta de efusão amorosa, usuário do soneto, em que o ânimo de dizer é maior que a invenção imagística e o domínio estético. Mas diz com fervor o que sente, arma o silêncio contra o indefeso (suicidado) tempo, concita a luz na gruta do poema, sinuosa forma de eternidade”.

Entre nós, comungando da vivência dos livros em espaços comuns, os historiadores e poetas Francisco Miguel de Moura e Herculano Moraes, amigos de geração do poeta de Gruta Iluminada, souberam abstrair o âmago da escritura de Hardi.

“No seu trabalho contínuo, de obra a obra, incorpora conquistas do moderno e as mais experiências do verso na construção poemática de modo geral. Entretanto, a crítica tem concordado: é no soneto que está o melhor de sua arte”, diz Francisco Miguel.

“Última glória de uma poesia efetivamente compromissada com os estados interiores da alma”, avalia Herculano Moraes.

Tive a oportunidade de conhecer Hardi Filho. De ouvi-lo falar sobre poesia. De sua predileção sobre Celso Pinheiro, a respeito de quem conversamos reiteradas vezes. Introspecto, era dado ao diálogo quando se sentia à vontade; figura afável e cativante, um poeta no sentido exato do termo.

Se o conhecimento poético limpa as vidraças da percepção para tornar as coisas infinitas, conforme definiu William Black, em Hardi, esse instante de iluminação torna o verbo límpida ressonância do sonho e do romantismo,  escolha realizada com a consciência da arte que dominava, como bem condensou o poeta em soneto antológico:

Dúvida

Eu ti esperarei, eu te esperarei sozinho

Dentro da noite intérmina da vida.

E desde o instante atroz da despedida,

Que te esperando acumulo carinho...



E então? Ficaste de voltar, querida,

Eu te esperarei insone em nosso ninho,

Sem companhia de cigarro ou vinho

E a noite mais se alarga e se encomprida!



E de tão longa a espera me tortura.

Deixaste-me somente noite infinda,

Só noite e noite triste e noite escura!



Minha alma está confusa e se biparte:

Não se sabe se ti espera mais ainda

Ou saia pelo mundo a procurar-te!



A poesia de Hardi está  “impregnada de símbolos e conceitos negativistas, cuja temática e o binômio amor-morte, fundindo-se numa constante que é o desconhecido, com tendência para o transcendental”,  conforme acentua Francisco Pacelli Bossuet, enfatizando que Hardi “é poeta sem vínculos a qualquer escola literária”.

Nele, ainda que permaneça o romântico inconfundível, lê-se também o poeta moderno, versejando com perícia a forma do verso livre e a incorporação do cotidiano à literatura:

Pela Janela do Trem




Pela Janela do trem

num recorte branco,

a torre da igrejinha

e o céu se derramando

sobre o casario.



Pela janela do trem

o fumo indeciso

das chaminés caseiras

e a arquitetura das nuvens

em matinal passeio.



Pela janela do trem

semblantes de vários tipos

aparecendo e sumindo,

o apito e as vozes

de até breve (ou nunca mais?).



Pela janela do trem

uns olhos femininos

livremente marejados...

e a cidade tão presente

viajando acorrentada

às pupilas desses olhos.



Pela janela do trem

um passado e um futuro

resumindo num presente

na janela do trem

um rosto pétreo

olhos nos olhos que ficaram...



Senhores e senhoras,

Acende-se em meu pensamento o recorte de jornal que recebi, pelo correio,  em 1990. Nele, o frágil texto escolar que escrevera e, encaminhado ao então presidente desta Casa A. Tito filho, publicado nas páginas de O Dia por seu intermédio, a mim retornava com a inconfundível assinatura do grande mestre. A generosidade do ilustre professor, endossada em duas dezenas de cartas a punho a mim remetidas e, guardadas com extrema cautela, muito significaram para o pobre estudante de letras, o leitor curioso e o operário da palavra, que hoje, professor A Tito Filho, ingressam nesta casa de muitas portas e janelas, nesta casa que o passado revive, para fazê-lo brotar como a água das fontes. Nesta Casa que é a sua Casa. Muito obrigado, professor A. Tito Filho. Em seu nome, agradeço a todos os que me encorajaram nesta trajetória inacabada.

Ditas estas palavras, recorro  ao saudoso Carrossel Fantasma de  Da Costa e Silva:

“Ganhei o dia a meditar na minha vida.”

Muito obrigado!

Discurso proferido por ocasião da posse na cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras, ocorrido em 22.10.2015, no Auditório Wílson de Andrade Brandão, na sede da instituição.

 Dílson Lages: discurso de posse na APL

 Dílson Lages: discurso de posse na APL
 [Dílson Lages Monteiro]

Senhores e senhoras,

O espírito que me move hoje é o mesmo de 30 anos atrás. Ao cruzar o morro do Pipoca,   pequena elevação geográfica que escondia  a cidade natal, como se ocultasse ou protegesse um tesouro,  minhas esperanças de menino  se depositavam na argila dos meus sonhos.  A longa viagem, mais na imaginação que no trajeto, mais no desejo de descobertas  que na paisagem renovada do verde das chuvas de março.  Longa a vontade de realizar, de crescer, de vencer.

O entusiasmo de trinta anos atrás é o mesmo de hoje.  Carrego em minha alma  o permanente anseio de ser útil à humanidade, mais que a mim mesmo, e espero que esse traço de meu ser se mantenha inabalável – agora mais do que antes -  em favor de difundir e revigorar a boa literatura e  promover o conhecimento dos grandes temas intrínsecos à linguagem.

Generosamente, as portas desta Casa se abrem para mim quando chego à juventude  dos quarenta anos. Desde os mais verdes anos, sonhei que um dia estaria entre vós, e custa crer, às vezes, que este dia chegou. Multiplica-se minha responsabilidade de retribuir ao coletivo, com o olhar em Deus, a confiança creditada. Espero, com humildade e labor incansável em prol das letras, corresponder, com as tintas de meu verbo e o vigor da persistência, para ajudar a manter acesas as chamas que iluminam o alicerce deste sodalício e que enaltecem o ideal comum de todos os confrades.

Fazer literatura e formar leitores, hoje, transformaram-se em desafios dos mais exigentes. Não obstante as tecnologias digitais se revelarem grandes aliados, favorecendo desde a divulgação de ideias à edição de livros, a profusão de novas formas de sociabilidade, contagiantes para todas as idades, conduziu a uma ânsia de imediatismo e a novas necessidades, que forçam à inserção no ciberespaço, por meio da atualização contínua e do uso dos novos meios disponíveis e, ao mesmo tempo,  requerem o compartilhamento e a participação ativa de todos os integrantes do sistema literário. Afinal, a cibercultura “propaga a copresença e a interação de quaisquer pontos do espaço físico, social ou informacional”, como lembra Pierre Levy, e exige que nos recriemos para viver o hipertextual sem perder as marcas da tradição que fundamentam a nossa identidade.

Senhores e senhoras,

Cresci. A certeza disso reside na juventude embebida principalmente de livros, leituras e  trabalho, muito trabalho. Reside na manutenção de meus propósitos de criança e adolescente sonhadores, dos propósitos do romântico operário da educação.  Eis-me  aqui, eis o menino, o adolescente, o operário, o sonho. A vontade de realizar e de vencer.

Escreveu o vate amarantino Da Costa e Silva no festejado poema Carrossel Fantasma:

“Ganhei o dia a meditar na minha vida,

porque a saudade me levou à longínqua Amarante
que cisma, talvez por mim, debruçada sobre as águas
lentas e sonolentas do Parnaíba
a rolar para o mar como eu para o mistério...
Então, num sonho de criança convalescente,
vem-me à memória o carrossel que fascinava,
no seu giro constante, os meninos de minha idade”

(...)

O carrossel parou no largo... mas não parou na vida...
Continua em meu sonho, rodando... rodando sempre...
E andando e desandando, num ritmo contraditório,
ainda me dá a alegria inevitável de dar voltas...
de girar, de rolar como os astros no espaço,
de elevar-me a um destino superior ao do planeta,
que em torno da sua órbita, como um símbolo, roda...

— Upa! Upa! Meu pensamento!

Ao compor estas palavras, por mais que tentasse resistir a isso, as correntezas da memória me arrastaram à infância e ao berço de minhas raízes, como tão frequentemente fizeram a Da Costa e Silva e a uma infinidade de vates, como uma espécie de sina. Se as evoco é porque se entranharam definitivamente  em mim, como reservas literárias, das quais o esforço para outros temas não foi  capaz de me libertar inteiramente. Se as evoco é porque, falando inicialmente com a força da memória,  embora contrariando aparentemente a praxe do discurso acadêmico, posso com maior exatidão e autenticidade discorrer sobre o que verdadeiramente interessa. Se as evoco é porque, recompondo as nódoas da meninice, posso revisitar a descoberta do livro, da literatura e as primeiras impressões sobre esta luminosa Casa de Lucídio Freitas e A. Tito Filho.

Em mim, a literatura visa preservar o tempo de ontem, atualizando impressões ou vivências passadas, para reinterpretá-las e criar novas impressões em palavras multiformes. Em mim, é a memória, em sensações simbólicas, que se incorporam à natureza, independentemente do uso social que faça da linguagem literária. A literatura, afinal, serve como modo de ler a individualidade humana  – a nós mesmos, sem determinação de tempo e lugar -  e a absorção do individual pelo coletivo. Uma forma de reconstrução do passado e do presente, sem arbitrariedades, porque nesse tipo de linguagem, até nos textos declaradamente engajados, o princípio da excelência está na liberdade dos sentidos  ou  das vozes emergentes. Ao escrever, pois, a memória e as sensações se sobrepõem ao individual; o passado reinventa-se no presente. 

A esse propósito, para ilustrar o significado superior das reminiscências e seu  processo alinear, recorro à memória do despertar do sono, em “No caminho de Swann”, de Proust:

“A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhe seja imposta pela nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas. A verdade é que, quando eu assim despertava, com o espírito a debater-se para averiguar, sem sucesso, onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito entorpecido para se mover, procurava, segundo a forma de seu cansaço, determinar a posição dos membros para daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e dar um nome à moradia onde se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de suas espáduas, lhe apresentava sucessivamente vários dos quartos onde havia dormido, enquanto em torno dele as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça imaginada, redemoinhavam nas trevas. E antes mesmo que o meu pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das formas, tivesse identificado a habitação, reunido as diversas circunstâncias, ele, - o meu corpo -, ia recordando, para cada quarto, a espécie do leito, a localização das portas, o lado para que davam as janelas, a existência de um corredor, e isso com os pensamentos que eu ali tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar […]”

Interessa-me, sobremodo, a memória da infância. Toda infância se alicerça na transposição imaginária do real, conforme acertadamente asseverou o antropólogo Clifford James Geertz: “Uma mente criando sentido, buscando sentido, preservando sentido e usando sentido; numa palavra – construtora do mundo”. Quer no giro metonímico do poema dacostiano, quer em qualquer outra representação social ou imagética, essa transposição se configura como condição comum para se entender a voz da criança, também da literatura que se fundamenta – ainda que parcialmente - na construção social do mundo infantil.

Para Freud, a natureza da arte imaginativa reside na infância: “A obra literária, como o devaneio, é uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar infantil”.  O ofício do literato se elucida simplificadamente nestes termos: “O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre esse mundo e a realidade”.

Se recupero essas referências, é para justificar, em partes, a gênese de um processo literário em formação permanente.  A presença viva de uma paisagem simbólica, reflexo identitário da escritura literária, em cujas metáforas e metonímias a integração à natureza anima-se. Essa integração constitui-se em pano de fundo que recuperam sabiamente, por exemplo, românticos, simbolistas e mesmo os revolucionários regionalistas brasileiros de 1930. Nos primeiros, para favorecer a evasão ou definir a cultura do novo mundo; nos segundos, para ensejar a transcendência cósmica; nos terceiros, para  questionar a realidade social com contundência, à luz principalmente do socialismo.

Essa integração é a mesma tão habilmente decantada na dimensão espiritual do poema O tempo nos parques, de Vinicius de Moraes. Para a percepção da vida, do ser e do estar no mundo, o eu lirico vai buscar no contato onipotente com a natureza o silêncio, o sagrado, o eterno, necessários para a consciência do existir e para a elevação espiritual:



“O tempo nos parques é íntimo, inadiável, imparticipante (...)

Medita nas altas frondes, na última palma da palmeira

Na grande pedra intacta, o tempo nos parques.

(...)

O tempo dos parques gera o silêncio do piar dos pássaros

Do passar dos passos, da cor que se move ao longe.

(...)

Porque imóvel, elementar, autêntico, profundo

É o tempo nos parques."

A integração da paisagem ao narrador ou ao eu lírico, na raiz da mímese ou da ambiência literárias, explicita-se como traço inerente ao fazer artístico e encontra na infância seu porto seguro.

Em mim, a memória da infância se divide entre o rio, a casa paterna, a igreja e as miragens do mundo rural. Neles, a experiência humana se converteu em novas experiências e palavras, principalmente, ora intermediadas pelo sensacionismo, ora pela utilização da literatura como documento.  Em Pessoa, sobretudo, essas vivências encontram referencial de que me utilizo como bússola para o fazer literário. Explica o poeta: “A arte, na sua definição plena, é a expressão harmônica da nossa consciência das sensações; ou seja, as nossas sensações devem ser expressas de tal modo que criem um objeto que seja uma sensação para os outros”. Dito em forma de versos, por meio do heterônimo Alberto Caeiro:

“Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.”

A literatura como documento encontra na prosa de 1930, de que também me valho, o paradigma para grande parte dos projetos literários em vigor. Herdeira da influência realista, repaginada pela renovação estética, em prosa, nas quatro primeiras décadas do século XX, essa concepção trouxe profundas  transformações sobre a técnica literária. Nas palavras do historiador Alfredo Bosi, “o caráter bruto ou brutal desse novo realismo do século XX corresponde ao plano dos efeitos que a sua prosa visa a produzir no leitor: é um romance que analisa, agride, protesta. Para atingir esse alvo, porém, foi necessária toda uma reorganização da linguagem narrativa, o que deu ao realismo de um Faulkner, de um Céline ou de um Graciliano Ramos uma fisionomia estética profundamente original”.



Em mim, a memória da infância se divide na natureza de minha palavra. O mundo, tão grande, cabia no meu coração. Aprendi a ver no rio, na casa paterna, na igreja e nas miragens do mundo rural gente. Aprendi a me integrar à paisagem como se fôssemos uma só criatura. As águas assombrosas dos invernos fartos lambiam os tetos das casas ribeirinhas e reproduziam a fartura de peixes: piranhas e surubins gigantes vendidos de porta em porta. As águas pareciam gente. A casa modesta de então,  de longo corredor, teto de madeira redonda e piso de tijolos, rústica em sua simplicidade  e rica em carinho e amor. A casa paralela ao rio, a dois quarteirões da igreja. A casa em cujas paredes enxergava o céu de todas as formas e texturas. A casa imorredoura em minha emoção. A casa que era gente.  A igreja, onde coroinha fui  aos sete anos – para orgulho de Dasinha. a igreja, onde aprendi a fazer perguntas e a conversar com o desconhecido, imaginando as estórias do outro mundo;  A igreja que fortaleceu a paciência e a humildade de meu DNA. A igreja que em festas religiosas atraiam toda espécie de tipos curiosos e exóticos. Gente, era gente.

Ah! As miragens do mundo rural! Vivi, antes da maior consciência de classe, que modificou as configurações do trabalho no campo, e da opção pelas oportunidades e promessas da vida cosmopolita, os últimos dias coloridos e simples das antigas propriedades rurais da Zona da Mata de Barras do Marataoã, na sombra dos desdobramentos  da  Fazenda Esperança, do velho Alfredo Pires Lages. Ainda as conheci; os valores, costumes e histórias, nos derradeiros anos de uma geração que viveu no campo. Até parece que ouço a comunicação fácil dos longevos e fiéis Agostinho Israel e Jenelino. As antigas propriedades, ainda as conheci como eram,  elemento concentrador de renda e como saudável fonte de entretenimento e sociabilidade.

Ali, a audição tinha professor nos ruídos de algum veículo perdido nos estradões de areia. Ali, a cantiga insistente da cigarra, o mugido do gado na madrugada, o ruído frenético das folhas das palmeiras, dos sapos nas lagoas em noites de inverno e os sons das correntezas dos riachos eram as vozes das sensações falando em bom português. A variada gastronomia de delícias sem fim e orações que se dissolvem, respectivamente, em meu paladar e em meus tímpanos.

Nesse ambiente, pela primeira vez entrei em contato com a poesia propriamente dita, a dos cantadores, na vaga lembrança de uma cantoria, e com a leitura dos poemas de Teodoro e Hermínio, em antologia organizada e comentada pelo acadêmico Herculano Moraes, em capa azul. Tenho a impressão viva de lhe tatear ainda. Lendo-a, sob o balançar da rede de tucum, punha-me a cantar sem nenhuma ideia sobre a sinfonia particular que une a música e a poesia. Quantas estórias de assombração sob o céu estrelado! Figuras que viravam animais, visagens de todo tipo, para justificar os absurdos das transgressões humanas.

Ali, também entendi a desigualdade nas mãos das quebradeiras de coco, na peleja do vaqueiro tocando boi encaretado, no agricultor de foice ao ombro a caminho da roça. O mundo era dividido; algumas vezes, pela natural divisão social do trabalho; outras, pelas imposições morais da injustiça social. A mesma divisão da pracinha central da cidade-berço: andando em círculos, na extremidade superior da praça, as trabalhadoras domésticas, alvo dos mais absurdos preconceitos, e os moradores dos bairros, vistos pelas lentes da desconfiança e da discriminação; na extremidade inferior,  jovens oriundos das famílias do centro, indiferentes aos contornos da desigualdade velada.  O mundo demarcado, dividido na pólvora das ruas e das tensões inesgotáveis de poder, mas o mundo em que o humanismo, a ação cidadã e a convivência saudável derrotavam as barreiras da arrogância e da indiferença. As fazendas e a cidade, em suas alegrias e divisões, gente eram. E ficaram marcadas em minha epiderme, como um pedaço de minha própria pele. Se as evoco, é porque sei da força matriz que mantêm com meus projetos literários.

Na cidade em que nasci, por volta de 1982, ocorre-me a lembrança mais distante do nome desta Casa de Letras. Para conter a indisciplina em sala de aula, a diligente e afetuosa diretora do grupo escolar Gervásio Costa, escola pública onde estudei o ginásio, a senhora Maria de Jesus Carvalho Rocha, figura de relevo na história da educação daquela cidade, entrou subitamente no recinto e pôs-se a falar das tradições de uma cidade de grandes homens, no passado, nas variadas esferas da atividade humana. A tradição, ao que  parece, iniciada na Guerra do Paraguai e esplendorosa até a queda do Estado Novo, assinalando não apenas o declínio político das oligarquias rurais, mas também a decadência da força política de uma região. Todos, em silêncio, ouviam atentamente comentar sobre os irmãos Celso e João Pinheiro, além do mito vivo de então, A. Tito Filho. Dizia que o destino de alguns de nós poderia ser de conquistas, se assim o quiséssemos.  Ouvi pela primeira fez ali o nome da Academia Piauiense de Letras e dele nunca mais me esqueci, como símbolo de orgulho do lugar em que nasci.

Se  evoco essas memórias, é porque o menino, o adolescente ainda existem em mim. Em seu entusiasmo, em suas esperanças.

Senhores e senhoras,
Vivendo o magistério, a linguagem e a literatura como objetivos diários desde a adolescência, como estudante, como professor  de longa data, sinto-me afinado aos valores e às causas dos que me antecederam na cadeira 21, embora eu seja apenas um pequeno ponto de entusiasmo diante do que cada um legou para as letras. O desafio de honrar a cadeira de Leopoldo Damasceno Ferreira, Antônio Francisco da Costa e Silva, Maria Isabel Gonçalves Vilhena e Francisco Hardi Filho é colossal, todavia, gigantesca, também, a minha obstinação.

O oeirense Cônego Leopoldo Damasceno Ferreira, doutor em Direito Canônico,  nascido em 1857 e falecido em São Luiz do Maranhão, em 1906, patrono deste assento, notabilizou-se como, além de poeta de grande força lírica, figura múltipla, com extensa folha de serviços, especialmente à igreja, ao magistério e ao jornalismo.  No Maranhão, segundo anotações do historiador e acadêmico Wílson Carvalho Gonçalves, além de notável orador sacro e poeta, foi professor de Latim e Francês no Liceu Maranhense, diretor do Seminário das Mercês e governador do bispado do Estado.  Cônego Leopoldo, destaca o historiador, “teve intensa atividade na imprensa do Maranhão”, colaborando com os jornais Diário do Maranhão e  Alvorada.

A nobreza fulgurante de sua inteligência e expressão como orador sacro é descrita por Ivan Lins em sua “História do positivismo no Brasil” (1967). Ele relata o empenho do professor maranhense Agostinho Gomes de Castro, intenso defensor da teoria de Auguste Comte, para dar publicidade a ela em São Luiz, e a movimentação da igreja em oposição a esse conceito. Nesse mister, o clero nomeou a maior autoridade da igreja naquele Estado, o Cônego Leopoldo Damasceno:

“Num domingo, 29 de fevereiro de 1898, no edifício da Escola da Rua Grande, onde funciona hoje o Instituto Histórico, deu Gomes de Castro a sua aula inaugural, tomando como tema a "exposição popular do positivismo". O sucesso foi espantoso. Grande assistência passou a ouvir-lhe a palavra, sempre fluente e fascinadora.

(...)

Tal sucesso apavorou o clero maranhense, que resolveu reagir, opondo doutrina contra doutrina.


Para isso, apelaram os padres para sua maior ilustração — o Cônego doutor Leopoldo Damasceno Ferreira. Mandaram-no buscar na Vila do Paço, de cuja freguesia era encarregado. O Cônego veio e iniciou uma série de conferências contra o Positivismo na Igreja de Santo Antônio.”

Registra o professor A. Tito Filho, em crônica datada de 17.06.1988, a seguinte apreciação de Clodoaldo Freitas sobre a larga contribuição do patrono da cadeira 21:

 "Foi, nestes últimos tempos, o campeão de teologismo entre nós, e bateu-se, pela imprensa, em defesa do credo católico com a louçania de um convencido. Sustentou polêmicas acres e veementes, demonstrando sempre copiosa e larga cultura. Distinguiu-se como orador sagrado, como jornalista e os íntimos o denunciavam também como um poeta de inspiração e sentimento. Tinha coração de patriota para amar a pátria, sentir suas dores e suas alegrias. Era uma rara exceção entre o clero brasileiro, tão diferente do clero de outrora".

Na cadeira 21 deste sodalício, em janeiro de 1923, tomou posse o mais conhecido dos poetas piauienses, Antônio Francisco da Costa e Silva. Em artigo publicado originalmente em 11 de outubro de 1998 e reproduzido em Notas de leitura impressionista – nova série, o ilustre crítico literário e acadêmico Manoel Paulo Nunes revisita a posse do Poeta da Saudade, em busca de desvendar o desconhecimento completo do discurso do vate, jamais publicado em terras piauienses.

Do amigo romancista Josué Montello, Paulo Nunes conta que recebeu inusitado presente: recorte do jornal  Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, de 16 de janeiro de 1923, noticiando a posse do acadêmico e tecendo elogio ao patrono por ele escolhido.

Esclarece Paulo Nunes:

“Trata-se, ao que suponho, do resumo do famoso e desconhecido discurso do poeta, ou mesmo do próprio discurso, pois compreende um perfeito estudo biográfico e crítico da personalidade do cônego, detendo-se o novo acadêmico, especialmente, no comentário de sua obra lírica, de mais forte inspiração”.

Reproduzindo poema de autoria do Padre Leopoldo, poema de acentuados traços líricos, o crítico Paulo Nunes prioriza  a leitura que  Da Costa realizou sobre a poética do patrono da cadeira 21. Nas palavras do poeta amarantino,

“Esse padre, que todos afirmam era um crente convicto e um sacerdote virtuoso, teve, sem dúvida, como o poeta Anvers, o seu segredo n’alma e o seu mistério na vida. Teve, como todo poeta, a aparição divina de uma sombra de mulher, nos caminhos incertos da existência.”

Raros poetas piauienses atingiram tanta notabilidade nacional quanto Antônio Francisco da Costa e Silva. À sua produção literária, detêm-se os mais variados historiadores, entre os quais, nomes de credibilidade como Andrade Muricy, José Veríssimo, Sílvio Romero, Alfredo Bosi e Carlos Nejar. Para este, em sua História da Literatura Brasileira – Da carta de Caminha aos Contemporâneos - o poeta de Amarante, ao lado de Raul de Leoni, “tornara-se o arauto do Pré-Modernismo, trazendo a semente da crise, que é o começo da transformação estética”. Para justificar o parecer ele afirma: “ Há um lado estranho neste poeta, revolucionário para a época, o dos poemas experimentais, desenhando em vocábulos o tema dos versos”.

Rotulando-o como um “lírico superior”, Nejar destaca, entretanto, que a poética dacostiana, sobretudo, “gerou uma poesia com apuro e força imagística, aliando símbolos religiosos a certo profanismo”, a que se agrega, em muitos poemas, “visível concisão elegíaca”.

A interpretação de Nejar, que o considera, conforme posto, como precursor do Pré-Modernisto e, portanto, atento às nova tendências de seu tempo, encontra reforço nas palavras de um dos principais pesquisadores da poesia de Da Costa e Silva. Para o crítico literário e  Pós-doutor em Literatura Cunha e Silva Filho, fecundo estudioso da obra dacostiana, “ao construir uma obra literária poética em vários estilos literários, ele não deu senão demonstração de ser um poeta voltado a um experimentalismo que o conduziu até mesmo ao Modernismo”.

A  força das imagens e símbolos, a que há pouco referimos,  mergulhada em telurismo de tom elegíaco, é traço comovente de um dos poemas mais populares do Piauí, o  célebre soneto Saudade:                                                               

"Saudade! Olhar de minha mãe rezando

e o pranto, lento, deslizando em fio...

Saudade! Amor da minha terra... O rio

cantigas de águas claras soluçando.



Noites de junho... o caboré com frio,

ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...

E ao vento, as folhas lívidas cantando

a saudade imortal de um sol de estio.



Saudade! Asa de dor do Pensamento!

Gemidos vãos de canaviais ao vento...

As mortalhas da névoa sôbre a serra...



Saudade! O Parnaíba, - velho monge,

as barbas brancas alongando... e, ao longe,

o mugido dos bois da minha terra..."



Sobre a Saudade em Da Costa e Silva, diz Cunha e Silva Filho:

“(...) A saudade no poeta está mais plantada em fundas raízes românticas, sendo ela fruto mais das intuições, da espontaneidade, de condicionamentos existenciais. (...) A saudade dacostiana deve ser entendida, a nosso ver, como  a ausência de alguém ou de alguma coisa que perdemos no tempo e no espaço e, além disso, é motivada por quatro forças-motrizes de seu lirismo: o amor materno, o amor à terra natal, o amor ao rio Parnaíba e, finalmente, o amor à Alice, a sua musa cedo desaparecida.”

Uma dos mais completos mergulhos no lirismo e na gênese da criação de Costa e Silva nasceu da sensibilidade do historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva em Invenções de Orfeu, ensaio quase obrigatório para compreender as influências literárias  do poeta e as particularidades de sua técnica . Conta o historiador, citando relato de Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves, que o pai aprendera muito cedo a ver. “A Perscrutar o mundo. A conhecer as formas, os movimentos e o nome de tudo que estava a seu redor”.

“O poeta fazia máscaras de Carnaval e pandorgas. Pintava com paisagens as paredes das casas. Esculpia santos em madeira. Confeccionava estandartes para as festas religiosas. Suas mãos de dedos longos e harmoniosos eram habilíssimas e teriam feito dele um pintor ou um escultor, não tivesse ainda menino, começado a compor versos.”, conta o historiador.

A capacidade de ver situa-se, para Alberto da Costa e Silva, como elemento do qual se vale para sintetizar o fazer literário do pai:

“A capacidade de mimese, que poderia conduzir ao simples descritivismo e a uma poesia que se reduzisse às emoções da inteligência, é corrigida num poeta que sabia ver e reproduzir o que via, por uma penetração na paisagem e, mais que isso, por um pensamento panteísta, que o integrava nela e na divindade”.

Referindo-se a toda a produção poética de Da costa e Silva, ele acrescenta:

“Da Costa foi capaz de estar na natureza como Pã e como Orfeu. Por isso, pode passar da paisagem misteriosa e altamente simbólica, presente em Sangue – naquele soneto perfeito que é “Rio das Garças”, por exemplo – para a natureza harmoniosa ou agredida de Zodíaco, até chegar à natureza emotiva e pesada de Pandora, à natureza filtrada pela lembrança e que obedece ao canto do poeta”.

Antônio da Costa e Silva nasceu a 23 de novembro de 1885, na rua das Flores, em Amarante. Ali estudou o primário e viveu a infância entre os banhos nos rios Canindé, Parnaíba e o riacho Mulato, entre os passeios à fazenda da família e à igreja. Muda-se para Teresina na adolescência, a fim de estudar o ginásio no Liceu Piauiense. Em 1906, está em Recife, matriculado na faculdade de Direito. Em 1910, aprovado em concurso público, assume o cargo de escriturário da Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional, ascendendo celeremente ao posto máximo dessa repartição. No exercício de suas atividades profissionais, reside em várias capitais: São Luiz, Manaus, Fortaleza, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, onde falece a 29 de junho de 1950.

Para aquilatar a influência do Poeta da Saudade no cenário literário nacional e sua sintonia com o que se produzia à sua época, cito episódio a que menciona Alphonsus de Guimaraes Filho, em biografia escrita sobre o próprio pai, um dos maiores poetas – senão o maior - do cânone simbolista. Estabelecido em Minas Gerais, Da Costa fora um dos maiores amigos de Alphonsus de Guimaraes e o responsável, inicialmente, pela divulgação da poesia do famoso autor de “Ismália”, conforme conta Guimaraes Filho em biografia:

“Teu amigo foi o esplêndido poeta piauiense Da Costa e Silva, a quem muito prezavas: dedicaste-lhe o soneto XXV da Pastoral.

 (...) O poeta de Sangue figura entre os que mais te distinguiram. (...)”

A esse respeito diz Alberto da Costa e Silva, incansável divulgador da obra do pai:

“Da Costa e Silva fez uma peregrinação, pouco antes de 1915, a Mariana, a fim de conhecer pessoalmente a Alphonsus de Guimaraes, a quem admirava desde os tempos de rapaz e cuja grandeza foi dos primeiros a conhecer”.

E acrescenta:

“Se, como dizia Augusto Meyer, fora Da Costa e Silva quem lhe revelara, e a outros companheiros gaúchos em 1930, ele o fizera antes aos próprios mineiros”.

Sucedendo a Da Costa e Silva, Maria Isabel Gonçalves Vilhena, projetou-se como poetisa e como educadora  de reconhecida competência. Professora da Escola Normal, do Colégio Diocesano e do Colégio das Irmãs, ela nasceu em 20 de agosto de 1896, na Rua Santo Antônio, hoje Olavo Bilac, e faleceu aos 92 anos, em Teresina, a 19 de dezembro de 1988. Publicou Nada e Seara Humilde, este em 1940. O reconhecimento da obra assegurou-lhe a reedição conjunta em 1975, pela Secretaria da Cultura do Piauí. Em notas impressionistas, diz seu sucesso na cadeira 21, o poeta Hardi Filho:

“O lirismo de sua poesia encanta pela doçura e pela leveza da expressão que traduz com espontaneidade as emanações da fonte conceitual do pensamento. Seu livro é composto de versos nascidos de uma imaginação clara, expressos como água que cai e, nessa queda, arrasta para a mensagem o que de melhor e mais puro contém o coração.”

Graça Vilhena, poetisa, festejada professora de literatura e neta da autora de Seara Humilde, em análise lúcida, assim se manifesta sobre a técnica e as matizes da poética da avó:

“A expressão analógica entre a natureza exterior e a projeção dos sentimentos, assim como a liberdade formal, na maioria das composições, aproxima a poética de Isabel Vilhena à estética romântica. Porém, alguns aspectos relevantes são operados, em sua lírica, que revelam certa tendência modernista e contradizem algumas características básicas do comportamento romântico. Isso ocorre nos momentos em que a poeta (ou poetisa) rompe as fronteiras do individualismo e as imagens, arquitetadas por símbolos, metáforas, símiles e prosopopeias passam a ser produto de uma correlação psíquica entre as coisas da natureza e o mundo, assim, a voz poética é projetada no âmbito geral, numa comunhão com o outro.”

Expressando-se sobre a consciência do fazer poético de Isabel Vilhena, acrescenta a poetisa:

“Sua poesia se atualiza também pelo trabalho consciente em torno da linguagem. A riqueza imagética nos versos de “Nada” e “Seara Humilde” – reunidos em publicação posterior – está nos poemas como testemunha de uma poética que se afirma pela excelência de seus versos. A linguagem, aparentemente simples, veste-se de novos significados, férteis em simbologia e figuração: o pau-d´arco amarelo é símbolo da riqueza da “Terra Brasileira”; nossos sonhos estão guardados “no longínquo azul” do horizonte; o amor “é tão iluminado” como todas as flores sob a luz do sol; a mesma luz que “se coalha” nos arvoredos, agasalhando “a solidão das casinhas de palha”. As asas da borboleta levam a ventura fugidia e a “alvorada de maio” traz a alegria da vida. A “luminosa esteira do sol” se afasta como as lembranças do passado e as noites de São João são iluminadas pelo “chuveiro de estrelas”. A “alma da terra mora no vulto erguido das longínquas serras” e o rio, como nós, “sonha acordado e sem saber que sonha”.

O diálogo natureza-sentimento e os símbolos daí oriundos refletem-se em versos de notável influência romântico-simbolista, como estes, de O lago:

Na superfície azul das águas transparentes,

Sereno e calmo vive o lago a refletir

a grandeza do céu, os astros reluzentes

e a renda do arvoredo ameno a reflorir.



E quem o vê assim nessa mudez dormente,

Sem um murmúrio vago ou leve proferir,

Nessa aparência mansa e doce de um demente,

terá razão demais, de certo, em se iludir!



Revolvei o seu leitor! E o tendes já turvado,

Desfeita, emaranhada a renda do arvoredo,

E  o calmo adormecer em vagas transformado!



Como o lago também há corações! E quantos!...

De aparência feliz, guardando, com segredo,

na placidez de um riso um vendaval de prantos!



Resumindo a poética de Isabel, conclui Graça Vilhena:

“A espiritualidade, a saudade, o fundo psicológico, o amor e a natureza são temáticas constantes em sua obra, que ela soube tratar não com sentimentalismo exarcebado, mas com uma sensibilidade rara e verdadeira. A intenção da poeta com sua simplicidade estética e pura expressão poética é tocar a alma humana, sem distinção, numa atitude universal e solidária. O lirismo sem particularismo, o ecumenismo de seus versos são, portanto, traços inovadores que atualizam sua poética e nos deixa a impressão, ao ler seus versos, que compreendemos sua generosidade, a intenção contida em seu lirismo agreste, sua voz que se projeta para emocionar os corações distantes.”

Bastam as palavras de Carlos Nejar, para definir a grandeza da poesia do último ocupante da cadeira 21. Contrapondo o estilo de Hardi filho ao de H. Dobal, para quem “a poesia é um instrumento de precisão”, sentencia:

“O oposto de H. Dobal é Hardi Filho, natural de Fortaleza (1934), radicado em terra piauiense, estreando com Cinzas e Orvalhos (1964). Poeta de efusão amorosa, usuário do soneto, em que o ânimo de dizer é maior que a invenção imagística e o domínio estético. Mas diz com fervor o que sente, arma o silêncio contra o indefeso (suicidado) tempo, concita a luz na gruta do poema, sinuosa forma de eternidade”.

Entre nós, comungando da vivência dos livros em espaços comuns, os historiadores e poetas Francisco Miguel de Moura e Herculano Moraes, amigos de geração do poeta de Gruta Iluminada, souberam abstrair o âmago da escritura de Hardi.

“No seu trabalho contínuo, de obra a obra, incorpora conquistas do moderno e as mais experiências do verso na construção poemática de modo geral. Entretanto, a crítica tem concordado: é no soneto que está o melhor de sua arte”, diz Francisco Miguel.

“Última glória de uma poesia efetivamente compromissada com os estados interiores da alma”, avalia Herculano Moraes.

Tive a oportunidade de conhecer Hardi Filho. De ouvi-lo falar sobre poesia. De sua predileção sobre Celso Pinheiro, a respeito de quem conversamos reiteradas vezes. Introspecto, era dado ao diálogo quando se sentia à vontade; figura afável e cativante, um poeta no sentido exato do termo.

Se o conhecimento poético limpa as vidraças da percepção para tornar as coisas infinitas, conforme definiu William Black, em Hardi, esse instante de iluminação torna o verbo límpida ressonância do sonho e do romantismo,  escolha realizada com a consciência da arte que dominava, como bem condensou o poeta em soneto antológico:

Dúvida

Eu ti esperarei, eu te esperarei sozinho

Dentro da noite intérmina da vida.

E desde o instante atroz da despedida,

Que te esperando acumulo carinho...



E então? Ficaste de voltar, querida,

Eu te esperarei insone em nosso ninho,

Sem companhia de cigarro ou vinho

E a noite mais se alarga e se encomprida!



E de tão longa a espera me tortura.

Deixaste-me somente noite infinda,

Só noite e noite triste e noite escura!



Minha alma está confusa e se biparte:

Não se sabe se ti espera mais ainda

Ou saia pelo mundo a procurar-te!



A poesia de Hardi está  “impregnada de símbolos e conceitos negativistas, cuja temática e o binômio amor-morte, fundindo-se numa constante que é o desconhecido, com tendência para o transcendental”,  conforme acentua Francisco Pacelli Bossuet, enfatizando que Hardi “é poeta sem vínculos a qualquer escola literária”.

Nele, ainda que permaneça o romântico inconfundível, lê-se também o poeta moderno, versejando com perícia a forma do verso livre e a incorporação do cotidiano à literatura:

Pela Janela do Trem




Pela Janela do trem

num recorte branco,

a torre da igrejinha

e o céu se derramando

sobre o casario.



Pela janela do trem

o fumo indeciso

das chaminés caseiras

e a arquitetura das nuvens

em matinal passeio.



Pela janela do trem

semblantes de vários tipos

aparecendo e sumindo,

o apito e as vozes

de até breve (ou nunca mais?).



Pela janela do trem

uns olhos femininos

livremente marejados...

e a cidade tão presente

viajando acorrentada

às pupilas desses olhos.



Pela janela do trem

um passado e um futuro

resumindo num presente

na janela do trem

um rosto pétreo

olhos nos olhos que ficaram...



Senhores e senhoras,

Acende-se em meu pensamento o recorte de jornal que recebi, pelo correio,  em 1990. Nele, o frágil texto escolar que escrevera e, encaminhado ao então presidente desta Casa A. Tito filho, publicado nas páginas de O Dia por seu intermédio, a mim retornava com a inconfundível assinatura do grande mestre. A generosidade do ilustre professor, endossada em duas dezenas de cartas a punho a mim remetidas e, guardadas com extrema cautela, muito significaram para o pobre estudante de letras, o leitor curioso e o operário da palavra, que hoje, professor A Tito Filho, ingressam nesta casa de muitas portas e janelas, nesta casa que o passado revive, para fazê-lo brotar como a água das fontes. Nesta Casa que é a sua Casa. Muito obrigado, professor A. Tito Filho. Em seu nome, agradeço a todos os que me encorajaram nesta trajetória inacabada.

Ditas estas palavras, recorro  ao saudoso Carrossel Fantasma de  Da Costa e Silva:

“Ganhei o dia a meditar na minha vida.”

Muito obrigado!

Discurso proferido por ocasião da posse na cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras, ocorrido em 22.10.2015, no Auditório Wílson de Andrade Brandão, na sede da instituição.