quinta-feira, 30 de março de 2017

Academia Piauiense lança vários livros



A Academia Piauiense de Letras tem o prazer de convidar V. Exa. e distinta família para o lançamento dos seguintes livros: Petrônio Portella – Depoimentos à História Política Brasileira, Osvaldo Lemos, nº 82, da Coleção Centenário, e da Coleção Século XXI, Alfredo e Rosa e a Descendência da Esperança – A Família Pires Lages de Barras do Marataoã, Maria do Socorro Lages Gonçalves, nº 10; Piauiense, Sim Senhor, Lisete Napoleão Medeiros, nº 12; e Joga o Barro na Parede – Uma Canção de Amor e Paz, Gutemberg Rocha (organizador), nº 14, com apresentação de Moisés Reis, bem como O Recinto do Elogio e da Crítica – Maneiras de Durar de Alberto Silva na Memória e na História do Piauí, Cláudia Cristina da S. Fontineles, da EDUFPI.


Nelson Nery
Presidente da Academia Piauiense de Letras


Data: 1º de abril 2017 (Sábado)
Horário: 10h
Local: Sede da Academia Piauiense de Letras (Auditório Acad. Wilson de Andrade Brandão) Av. Miguel Rosa, 3300/S – Fone: (86) 3221 1566 – CEP.: 64001-490 – Teresina-PI  

Agrônomo Francisco Parentes


Agrônomo Francisco Parentes

Reginaldo Miranda

                  Foi o pioneiro da agronomia no Piauí, o primeiro piauiense que venceu os obstáculos e conseguiu a formação acadêmica em Engenharia Agronômica, para isto tendo de buscar uma escola francesa no terceiro quartel do século XIX. Mas recuemos um pouco e acompanhemos sua vida desde o berço materno.

Ele veio ao mundo em 10 de junho de 1839, na vila de Barras do Marataoan, norte do Piauí, num período de grande agitação política e social, em plena guerra da Balaiada e seu pai fora um dos que se alistara nas tropas legalistas de combate aos rebeldes, razão pela qual não assistiu ao nascimento da criança. Estava em combate.

Era um dos quatro filhos de Raimundo de Araújo Parentes e dona Maria Joaquina da Silva Parentes. Foram seus irmãos Honório Parentes, autor de interessante diário, Ângela, falecida pequena e Joaquina, que chegou à idade adulta.

Com o fim da insurreição política e o apaziguamento do Meio-Norte brasileiro, buscando novas oportunidades seus pais mudam para a povoação de Buriti de Inácia Vaz, do outro lado do Parnaíba, hoje cidade de Buriti, no Maranhão. Ali o esperançoso jovem barrense iniciou as primeiras letras até concluir o ensino primário.

Com esse pequeno cabedal de conhecimento, em busca de novos horizontes, o jovem barrense mudou-se para a cidade de Teresina, que acabara de seu fundada e de receber os foros de Capital do Piauí. E para manter-se empregou-se como caixeiro de um armazém, cujo trabalho lhe absorvia todo o tempo impedindo-o de continuar nos estudos, o que era objeto de preocupação do jovem, que viera para estudar. Foi, então que arranjou uma colocação no serviço administrativo do Liceu Piauiense, passando depois a secretário do tradicional estabelecimento de ensino. Pôde, então, prosseguir nos estudos almejando dias melhores.

Em 1857, dar mais um passo em sua caminhada assumindo o cargo de secretário da Câmara Municipal de Teresina, cuja remuneração era melhor.

Porém, em 6 de março de 1862, foi nomeado 4.º Escriturário do Tesouro Nacional, o que lhe abria novas perspectivas na vida. No ano seguinte, em função desse emprego mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro, já no firme propósito de formar-se em Agronomia. Ali pôde aprimorar seus conhecimentos, cursando preparatórios, mas ainda não existia escola agronômica. Foi, então, que se firmou no propósito de cursá-lo na França, mas para isto teria de vencer dois obstáculos: o financeiro, vez que seus pais não tinham condições de mantê-lo estudando no estrangeiro, aliás, desde muito que ele ganhava o próprio sustento; e a barreira do idioma, sendo então renitente monoglota. Ademais, conturbavam-se os ventos políticos, iniciando o conflito na Bacia do Prata, conhecido como Guerra do Paraguai.

Mas para os grandes espíritos não há obstáculos, só os fracos se abatem antes do combate. Concebida a ideia era preciso lançar-se à luta e vencer as dificuldades. Assim, depois de noites indormidas maturando seu sonho, pediu breve licença do emprego, pegou seu ordenado, comprou passagens e veio ao Piauí pedir à Assembleia Legislativa uma subvenção em forma de bolsa. A sua fala branda e firmeza  de propósitos sensibilizou o deputado Antônio José Almendra, que abraçou a causa e convencendo seus pares, apresentou projeto e conseguiu aprovar a lei concessiva do pleito. Todavia, em face de revés político seu protetor rompe com o presidente da província, Dr. Franklin Américo de Meneses Dória que, para vingar-se do parlamentar veta a indicada lei, trazendo, assim, transtorno ao estudante piauiense, que mais uma vez não se deixou abater. Era de uma fortaleza inquebrantável e o seu sonho o embalava, fazendo-o partir para outra alternativa, a busca de ajuda entre os particulares. Sobre esse assunto, é interessante a informação colhida por Monsenhor Chaves, seu biógrafo, que assim se reporta ao assunto:

“Francisco, porém, não era homem para esmorecer. Não podendo contar com o Governo, apelou para os particulares. Abriu-se uma subscrição. Três apenas a assinaram: o Dr. Almendra, que lhe garantiu uma mensalidade de 80$000, o pai de Francisco, que subscreveu 20$000, e o irmão, Honório Parentes, que começava a vida, mas mesmo assim lhe garantiu 10$000 por mês. Claro que 110$000 não dariam. Mas eram alguma coisa.

‘Àquela altura, a tenacidade, a humanidade e o entusiasmo de Francisco já haviam contagiado outras pessoas, que se dispuseram a ajudá-lo sob outra forma, sob a forma de empréstimo. Juntaram-se o Vigário do Amparo, Pe. Mamede Antônio de Lima, José F. Alves Pacheco, Antônio José Araújo Bacelar, José Ferreira de Vasconcelos. Entre eles levantaram uma importância bem alta e a colocaram à sua disposição. Agora o problema financeiro estava resolvido” (CHAVES, Mons. Joaquim. Obra Completa. 2.ª Ed. Teresina: FCMC, 2013. P. 474).

Assim, vencido esse primeiro obstáculo, Francisco Parentes embarca para a França em 7 de março de 1864, aos 25 anos de idade. Ainda era tempo de realizar seu sonho e conseguir a formação acadêmica no curso que desejava. Mas outro obstáculo se lhe antepunha: enfrentar e vencer o idioma francês, pois ainda nada sabia. Procurou então a Embaixada do Brasil, onde foi bem recebido e iniciado na língua de Victor Hugo, aprendendo as noções rudimentares, o suficiente para matricular-se no Instituto Neully, de Paris, onde concluiu com êxito os preparatórios.

Por fim, depois de mostrar a si próprio e aos que o acompanhavam e o ajudavam, de que contra a força de vontade não há obstáculo que resista, em princípio de 1866 matriculou-se na Escola de Agricultura de Grand Joyan, onde cursou com êxito as mais diversas disciplinas. Porém, em 1870, quando estava prestes a concluir o tão sonhado curso de Engenharia Agronômica, rebenta guerra na Europa e as tropas alemãs invadem e rendem a França em 2 de setembro, fechando as escolas. Então, o estudante Francisco Parentes, que cursava as últimas disciplinas do curso e nada tinha a ver com aquele conflito, “foge para a Bélgica e lá consegue sobreviver com a ajuda de um grego, seu colega” (op. cit.).

Com o fim do conflito retorna à França, mas não consegue prosseguir nos estudos, em face da guerra civil que sucedeu. Por fim, voltando os tempos de paz e reabrindo as escolas, Francisco Parentes consegue estudar as últimas disciplinas, completar a grade curricular e concluir o curso de Agronomia, recebendo o diploma em 19 de junho de 1871, poucos dias depois do aniversário de 32 anos de idade. Estava realizado o sonho, era hora de retornar à pátria e lançar-se ao trabalho. Porém, não havia recursos para a passagem de volta, tendo de recorrer a um empréstimo no valor de 1.405 francos ao patrício Francisco Marques Rodrigues, que morava em Paris.

Desta forma, em 10 de agosto do indicado ano de 1871, o Dr. Francisco Parentes está de volta a Teresina, onde já estavam mortos seu pai e o velho protetor, Dr. Almendra, cujos herdeiros, de forma magnâmica, se recusaram a receber qualquer reembolso.

A essa altura, o jovem agrônomo piauiense não tinha tempo a perder. Procura então a presidência da província, ocupada pelo Dr. Manoel do Rego Barros Sousa Leão e lhe expõe ambicioso projeto a ser executado nas Fazendas Nacionais, que no século passado haviam sido confiscadas aos jesuítas. Ele tinha conhecimento de que as mesmas só traziam prejuízos à Coroa, em face da inaptidão dos diversos administradores, embora grande parte fosse constituída de terras férteis, onde pastava imenso rebanho bovino, também da Coroa. Então, idealizou nelas implantar uma colônia agrícola com escola de agricultura prática voltada para os filhos de escravos libertos, onde se apresentavam duas vantagens para o Estado, a saber: desonerá-lo das despesas com a manutenção das fazendas, que pouco produziam e, por outro lado, facilitaria o emprego de libertos e a educação de seus filhos, no contexto da Lei do Ventre Livre, que libertara os nascituros e regular a manumissão dos cativos atribuindo ao estado a obrigação de cuidar dos ingênuos com idade superior a oito anos. Dessa forma, foi um projeto singular, extraordinário e com ampla visão social. E existiam no Piauí 24 fazendas do Real Fisco, com excelentes terras, abundância de gado, tendo nelas perto de 800 negros libertos, inclusive 300 menores e cerca de 100 inválidos. Era, portanto, campo propício à ação governamental, onde repercutiu positivamente o discurso do Agrônomo Parentes.

O presidente da província o ouviu com atenção e interesse e o encaminhou com carta de recomendação ao Presidente do Conselho de Ministros, José Maria da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco, no Rio de Janeiro. Depois de parlamentar com este, foi encaminhado para entender-se como ministro da Agricultura, conselheiro Teodoro Machado Freire Pereira da Silva que, encampa seu projeto e o contrata para aprofundar os estudos, percebendo uma remuneração de 300$000 e uma ajuda de custo de 1:000$000. Conforme o Aviso expedido em 11 de janeiro de 1872, deveria Francisco Parentes vir ao Piauí escolher o local, levantar as plantas e orçar a instalação de uma colônia que teria o nome de Estabelecimento Rural de São Pedro de Alcântara, em homenagem ao imperador.

Retornando a Teresina, agora a soldo do governo imperial, lança-se em ação dirigindo-se imediatamente ao território das Fazendas Nacionais. Depois de algumas andanças, à margem do rio Parnaíba, em pequena eminência denominada Chapada da Onça, elege por sede da nova colônia agrícola. Faz então os estudos iniciais, levantamentos topográficos e questões orçamentárias que sem demora os apresenta ao ministro da Agricultura, no Rio, onde volta a apresentar-se. Depois de aprovados os projetos é o mesmo agrônomo definitivamente contratado para, no período de 15 anos, fundar e dirigir o novo estabelecimento rural brasileiro em território da Inspeção de Nazaré das fazendas Nacionais, no Piauí, que haviam sido sequestradas aos jesuítas e, mais remotamente, fora do conquistador Domingos Afonso Sertão. O Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara foi oficialmente criado pelo decreto imperial n.º 5.392, de 10 de setembro de 1873.

De conformidade com o referido decreto, que autorizou o contrato do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas com o agrônomo Francisco Parentes para a fundação de um estabelecimento rural na província do Piauí, compreendendo as fazendas nacionais denominadas Guaribas, Serrinhas, Matos, Algodões, e Olho d'Agua, todas pertencentes ao departamento de Nazareth, obrigar-se-ia o contratante, assim é designado o agrônomo Parentes, às seguintes condições: 1. Fundar, à margem do rio Parnaíba, na Província de Piauí, um estabelecimento de agricultura prática, empregando como trabalhadores os libertos da nação, existentes nas fazendas do Estado, que fossem aptos para o trabalho e não estivessem empregados por conta do Governo; podendo também contratar na Província ou fora dela trabalhadores que não fossem libertos da nação, se o número destes fosse insuficiente ou não fossem aptos para o serviço; 2. Educar física, moral e religiosamente os libertos das ditas fazendas, que forem menores, e os filhos das libertas nascidos depois da promulgação da Lei de 28 de Setembro de 1871, não podendo, porém, os menores ser separados da companhia de suas mães, nem entrar para o estabelecimento, antes de completarem cinco anos de idade, salvo os órfãos de pai e mãe; provendo, outrossim, à educação moral e religiosa dos adultos; 3. Prestar os necessários socorros e alimento, vestuário e habitação aos libertos das ditas fazendas, que forem inválidos e quiserem se asilar no estabelecimento, sujeitos ao regulamento e polícia do mesmo; 4. Estabelecer lavouras de algodão, de cana de açúcar, de cereais e quaisquer outras que forem próprias do clima e do solo; fábricas de queijos e de sabão, charqueadas e curtume em que se empreguem os processos mais aperfeiçoados e compatíveis com os recursos do estabelecimento; 5. Construir prédio de residência, casa de oração, enfermaria, aula, cemitério, edifícios com proporções para as fábricas e curtume, para depósitos, para engenho de açúcar e suas dependências, para prensa e descaroço do algodão e para quartel das praças encarregadas da policia do estabelecimento e fazendas de gado, devendo também preparar um campo para estudos agronômicos; 6. Construir currais, cercados e estábulos apropriados para o melhoramento e aperfeiçoamento das raças de gado; formar açudes e prados artificiais e fazer aplicação do sistema de cruzamento ou do de seleção, segundo a espécie de gado e os resultados de um ou de outro sistema.

Para o bom êxito da empreitada, o estabelecimento contaria com o seguinte pessoal: um diretor, que seria o contratante acima referido, um escriturário, um sacerdote, um professor, uma professora, uma diretora dos trabalhos domésticos, um carpina, um ferreiro, um enfermeiro, uma enfermeira, seis criados, trinta trabalhadores para a lavoura da cana de açúcar, trinta ditos para a do algodão, quatro ditos para o curtume, quatro para as charqueadas, quatro para a fábrica de queijos, dois para a de sabão, seis encarregados da direção das indústrias, cinco vaqueiros e os fábricas necessários, seis praças e um sargento, e, finalmente, todos os menores e inválidos já referidos. No entanto, além do número fixado, deveriam ser admitidos, como trabalhadores, todos os libertos da nação que fossem aptos para o serviço rural e outros a que se destina o estabelecimento.

Eram amplas as atribuições do diretor, competindo-lhe admitir e despedir livremente todo o pessoal do estabelecimento e fixar-lhe os respectivos vencimentos e salários, salvo, porém, o escriturário, que era nomeado pelo presidente da província; organizar e sujeitar à aprovação do Governo o regulamento interno do estabelecimento, no qual poderia impor penas correcionais; fazer todas as despesas necessárias às construções, regime e bom serviço do mesmo estabelecimento; vender todos os produtos naturais e industriais deste, compreendidos os bois de talho das cinco fazendas que ficam sob sua direção; e remeter à Tesouraria de Fazenda, no fim de cada trimestre, os saldos líquidos existentes, depois de deduzidas as mencionadas despesas.

Também, durante os cinco primeiros anos, em que o contratante teria de receber consignações do Governo, seriam encontradas nestas as quantias líquidas que pudessem existir em seu poder, produto do estabelecimento, constantes dos balancetes trimestrais.

A escrituração da receita e despesa do estabelecimento ficaria a cargo do escriturário respectivo.

O diretor remeteria trimestralmente à Tesouraria da Fazenda balancetes explicados e os documentos da sua receita e despesa, que as comprovarem, para que a mesma Tesouraria pudesse exercer a fiscalização que lhe competisse. À vista desses balancetes se faria também a escrituração devida naquela repartição, de modo que no fim de cada exercício, apresentado o balanço anual do estabelecimento, se pudesse tomar a conta da diretoria e dar-se-lhe quitação. Na liquidação das contas e nos balanços anuais e trimestrais se discriminaria a renda do estabelecimento e a despesa própria da fundação, bem como a do custeio. A Tesouraria daria conta ao Ministério da Agricultura dos resultados da liquidação das contas anuais.

Todavia, o diretor poderia fazer no estabelecimento todas as modificações que julgasse necessárias, quer aumentando ou reduzindo o pessoal, sempre com atenção às normas indicadas, quer alterando a distribuição dos diversos serviços, sem acréscimo, porém, das consignações convencionadas com o Governo.

Quanto ao início dos trabalhos, deveria o diretor dar princípio às mesmas no prazo de seis meses, contados do dia em que recebesse as fazendas do Estado, sendo-lhe, porém, entregue dentro de três meses, da data do recebimento das ditas fazendas, a primeira prestação para as despesas da indicada fundação. E deveria concluí-los e iniciar o regular funcionamento das fábricas industriais no prazo de cinco anos, uma vez que por parte do Governo lhes fossem entregues nas épocas estipuladas as prestações pecuniárias devidas. No entanto, deveria concluir antecipadamente algumas etapas, sendo dentro de dois anos a construção de edifícios e a fábrica de queijos; no terceiro ano fazer funcionar as charqueadas, o curtume e a fábrica de sabão, e nos últimos anos as lavouras de algodão e de cana.

Deveria ainda o agrônomo contratante, prestar fiança idônea da quantia de 10$000 na Tesouraria de Fazenda da Província do Piauí, não só para receber as consignações contratadas, como para garantir a arrecadação da renda do estabelecimento, que tem de recolher trimestralmente à mesma Tesouraria. No que se referia à prestação de contas, sempre que o contratado apresentasse a sua conta documentada das despesas feitas, e fossem estas julgadas regulares pela Tesouraria, considerar-se-ia desonerado da importância delas e habilitado para receber nova consignação, prevalecendo a dita fiança. No entanto, se verificar-se a existência do saldo em seu poder, a mesma Tesouraria lhe entregaria somente a soma que, reunida a esse saldo, perfizesse a prestação pedida. Todos esses prazos e condições deveriam ser observadas, sob pena de rescisão do contrato com audiência prévia do diretor.

É importante ressaltar que o estabelecimento ficaria sujeito à inspeção imediata do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Publicas ou do Presidente da Província, sempre que necessário.

O Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas obrigou-se a mandar entregar por meio de inventário, que se processaria pela Tesouraria da Fazenda, ao contratante diretor do estabelecimento as fazendas denominadas Guaribas, Serrinhas, Algodões, Mattos e Olho d'Agua, pertencentes ao Estado no departamento de Nazareth, Província do Piauí, as quais foram concedidas pelo Ministério da Fazenda por Aviso de 10 de junho do referido ano para fazerem parte do estabelecimento, com todo o gado nelas existente, e as casas, utensílios, terras, currais e logradouros; da mesma forma, a entregar-lhe os libertos da nação precisos para os trabalhos do estabelecimento, e todos os menores e inválidos, os quais deveriam ser conservados nos lugares em que se achavam, até que pudessem ser transferidos para o estabelecimento; o que se entenderia até que fosse concluído o prédio destinado a asilá-los, que deveria ter preferência a qualquer outra construção, no prazo máximo de um ano. Os inválidos que precisassem de prontos socorros e os órfãos de pai e mãe seriam imediatamente transferidos para as cinco mencionadas fazendas a fim de receberem os auxílios de que necessitassem.

Obrigou-se ainda o órgão governamental a fornecer ao contratante, para a fundação do estabelecimento, no primeiro ano a quantia de 30:000$000 em quatro prestações iguais de três em três meses; no segundo a quantia de 20:000$000 pela mesma forma, e 30:000$000 em prestações, à proporção que fossem requisitadas pelo mesmo até completar o prazo de cinco anos. Porém, enquanto o estabelecimento não produzisse renda suficiente, as despesas de seu custeio correriam por conta das consignações convencionadas.

A fim de garantir a transparência na execução e administração do empreendimento, toda a sua receita e despesa, quer relativa às consignações recebidas do Governo, quer à renda do mesmo estabelecimento, seria escriturada em livros abertos, rubricados e encerrados por empregados da Tesouraria, que seriam recolhidos anualmente à mesma Tesouraria para a tomada das contas. Além desses livros, haveria um destinado à entrada e saída de gêneros, incluídos os bois de talho e outros objetos que fossem do uso e serviço do estabelecimento.

Por fim, o contratante perceberia o honorário anual de 6:000$ durante os cinco anos iniciais, e daí em diante, anualmente, o de 5:000$ e uma porcentagem, deduzida do rendimento líquido do estabelecimento, a qual seria marcada pela Presidência de acordo com o contratante, com tanto que a sua importância não fosse superior a 3:000$, não sendo também menor de 1:000$000. O contra tinha vigência de quinze anos, não podendo o contratante nesse período, exercer nenhum ramo de indústria ou de comércio por conta própria ou de terceiro.

Então, com o contrato em mãos o primeiro agrônomo do Piauí, o jovem barrense que venceu contra todas as circunstancias desfavoráveis, iria mostrar a que veio. Lançou-se então incansavelmente ao trabalho, à execução do projeto por ele concebido. Segue em vapor pelo rio Parnaíba até a Chapada da Onça, onde abre a clareira das primeiras edificações. E quase um ano depois, em 10 de agosto de 1874, o novo estabelecimento rural é oficialmente inaugurado pelo presidente da província, Dr. Adolfo Lamenha Lins, que ali chegara com numerosa comitiva. A viagem fora feita no vapor “Piauí”, que havia partido de Teresina seis dias antes, em 4 do indicado mês. Foi então lançada a pedra fundamental do edifício principal, cuja inscrição trazia os seguintes dizeres: “São Pedro de Alcântara. Estabelecimento Rural. Fundado por Decreto n.º 5.392. Pelo Agrônomo Piauiense, Dr. Francisco Parentes. Na presidência do Exmo. Sr. Dr. Adolfo Lamenha Lins, 1874”.

Desde então continuou o Agrônomo Parentes no seu afã de servir à pátria, levando a efeito todas as construções necessárias, desde o edifício principal que serviria de sede até as instalações mais simples. Era incansável em seu trabalho e vontade de servir.


No entanto, a cruel parca veio ceifar-lhe a vida ainda em seu alvorecer, quando muito ainda poderia realizar. Parece uma ironia do destino, pois o jovem que tanto lutara para fazer-se agrônomo e para implantar um grande empreendimento agrícola em sua terra, desapareceria antes de ver a sua realização, embora prestes a concluí-la. É que foi acometido por uma febre de mau caráter, sendo transportado às pressas para a cidade de Amarante, rio abaixo, em busca de recursos médicos. Todavia, ali vem a falecer em 16 de junho de 1876, seis dias depois do aniversário de 37 anos de idade e três dias antes de completar cinco anos de formado. Mas a sua obra perdura para sempre. E a conclusão das instalações foi continuada por seu auxiliar Juvêncio Tavares Sarmento da Silva. O governo teve a intenção de transformá-lo em um instituto de zootecnia, mas não houve sucesso, sobretudo em razão da falta de seu idealizador. Porém, o estabelecimento rural por ele fundado é hoje a cidade de Floriano, uma das mais prósperas do Estado. E a Escola Agrônomo Parentes, que ali funciona é um testemunho da reverência daquele povo ao fundador da cidade. E enquanto soar o nome desta cidade também soará o nome do Agrônomo Francisco Parentes, o pioneiro de sua profissão em terras mafrenses, figurando nessa galeria pelo pioneirismo, pela tenacidade, pelo trabalho, pela visão de futuro e pelo amor ao Piauí.  

quarta-feira, 29 de março de 2017

PARNAÍBA EXPRESSA POR PERÍFRASES

Fonte: Google

PARNAÍBA EXPRESSA POR PERÍFRASES

Alcenor Candeira Filho

     Várias cidades são identificadas não só pelo nome verdadeiro mas também através de um recurso estilístico denominado “perífrase”: rodeio de palavras utilizado em lugar do nome comum ou próprio, destacando algum de seus atributos.
     A perífrase (do grego “periphasis”), também chamada de “circunlóquio”, é uma variedade de “antonomásia” – designação de uma pessoa, objeto ou entidade por outra denominação: “Poeta dos Escravos” [= Castro Alves], “Salvador” [= Jesus Cristo], Última Flor do Lácio” [= latim].
     Normalmente as construções perifrásticas são bem conhecidas e facilmente associadas às palavras substituídas. Quando não se pressupõe conhecido o termo disfarçado por seu intermédio, a perífrase se torna viciosa ou de qualidade inferior, passando a configurar a denominada “perissologia”. Exemplos de circunlóquios de boa qualidade:
     - “Cidade Maravilhosa” [= Rio de Janeiro]
     - “Cidade Eterna” [= Roma)
     - Cidade Luz [= Paris]
     - Cidade Verde” [= Teresina]
     - País do Sol Nascente” [= Japão]
     O poeta cearense Paula Ney usa uma bela perífrase no soneto FORTALEZA:

                     “A Fortaleza – a loira desposada
                     Do sol – dormita à sombra dos palmares. ”

     Manuel Bandeira e Mário de Andrade também se utilizaram
 dessa figura de pensamento para homenagear suas cidades    
natais:

    
 
     “Recife    
     Não a Veneza americana
     Não a Mauritssadt dos armadores da Índias Ocidentais
     Não o Recife dos Mascates
     Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois –
                           Recife das revoluções libertárias,
     Mas o Recife sem história nem literatura
     Recife sem mais nada
     Recife da minha infância”
                         (M. B. – RECIFE)

     “Minha Londres das neblinas finas!
     Pleno verão. Os dez milhões de rosas paulistanas.
                           (M. A. – PAISAGEM Nº 1)

     Em vários poemas sobre Parnaíba publicados no ALMANAQUE DA PARNAÍBA (edições de nºs. 61/1994 a 65/1998), na seção denominada PARNÁRIAS, colhi exemplos de expressões perifrásticas, aqui transcritas para que cada leitor eleja a que melhor retrata a cidade:

     “A invicta Parnaíba, erguendo-se radiosa,
     ...................................................................
     Abre ao sol do Brasil seu lindo relicário. ”
                        (Alarico da Cunha – O CENTENÁRIO DE PARNAÍBA)

     “E que você seja sempre
     Rainha do Igaraçu,
     Princesa do Piauí! ”
         (R. Petit – TERRA CABOCLA)

     “Deusa do Igaraçu, Princesa das Canárias,
     Tens como trono e sólio essas famosas ilhas. ”
                    (Jesus Martins – PARNAÍBA)

     “És a Princesa de Simplício Dias! ”
                  (Oliveira Neto – PARNAÍBA)

     “Foste líder na história piauiense,
     Ao Progresso e à cultura dás abrigo,
     Linda joia do nordeste brasileiro. ”
                 (Fernando Ponte – PARNAÍBA)

     “parnaibano nato declaro:
     é aqui
                  e não ali
                                  ou alhures
     o meu lugar
     a partir de 1762 Vila de São João da Parnaíba
     e de 1844 para cá e para sempre cidade da Parnaíba
     porta do delta único das Américas em mar aberto.”
                         (Alcenor Candeira Filho – O MEU LUGAR)

     “PARNAHYBA, NORTE DO BRASIL, eu conheço bem essa história.”
                           Danilo Melo – PARNAHYBA)

      “Parnahyba, Norte do Brasil” – representa a forma como a cidade era chamada, particularmente em anúncios publicados no ALMANAQUE DA PARNAÍBA, durante o apogeu de seu 
desenvolvimento econômico, na primeira metade do século XX.
     Inácio Marinheiro de Oliveira publicou em 2014 um dos mais belos livros sobre Parnaíba, com muitas fotografias e textos do autor. O título do livro encerra uma perífrase: PARNAÍBA, A PÉROLA DO LITORAL BRASILEIRO.
     “Princesa do Igaraçu” e “Rainha do Delta” são outros exemplos de construções perifrásticas muito usadas pelos parnaibanos.
     Qual a mais expressiva para você, caro leitor?        

terça-feira, 28 de março de 2017

UM FUNERAL NO CARNAVAL

Foto meramente ilustrativa. Fonte: Google

UM FUNERAL NO CARNAVAL

Vivaldo Lemos Fernandes

            Acho que a sua pederastia era inata, congênita. Ele já nasceu guei. O seu verdadeiro nome ninguém sabia. Uns diziam que era Amadeus e outros que era Florisbelo. Mas, isso agora não importava. O que efetivamente vem ao caso é o que aconteceu naquele carnaval, nos idos de cinquenta e dois.

            Lixaba, como era conhecido desde a Palha de Arroz, São José, Paissandu, até o Mercado Velho, apareceu por ali ainda rapazola, no viço, vindo não se sabe também de onde, se do Maranhão, do Ceará ou da Bahia. Era moreno, baixo, grosso, de nádegas roliças e arrebitadas, e tinha uma entorse do lado direito da coluna, que o deixava meio corcunda. Andava sempre de calção apertado, feito de pano colorido e camiseta de mangas cavadas, banhado e perfumado. Tinha os cabelos compridos, ondulados, e, à noite, exercendo a profissão, até os lábios pintava e se travestia de mulher. Era o recadista das prostitutas do pedaço e também o seu mais fiel confidente. Fazia as compras para de mercado para a Maria Aguiar e outras cafetinas, donas de cabarés. Era pau para toda obra. E também bom cozinheiro, diziam.

            O dinheiro que ganhava tinha dois investimentos certos: sustentar os seus homens e depositar o restante na Caixa Econômica Estadual para custear suas fantasias e orgias do carnaval. Todos os anos tinha indumentárias novas e diferentes: ora de colombina, odalisca, boneca... e outras mais. Porém a que ele gostava mesmo e se esmerava no seu preparo era a de baiana, com saia rodada, colorida, com anáguas engomadas e cesta de frutas na cabeça, braceletes de contas nos braços, pendentes doirados das orelhas, tamancos de salto alto e enfeitados, tudo ao estilo Carmem Miranda. Aliás, vestido assim, a caráter, até que a imitava. Quando ele, desfilando, chegava à Rio Branco e a Pedro II, o povão ululava, ria, batia palmas, dava vivas, chamava seu nome e ele delirava; redobrava-se em requebros e meneios; jogava confetes, serpentinas, na plateia e jatos de lança-perfume. Ele se sentia o máximo, um fausto, um ditoso e alcançava, pela excitação e deslumbramento, um orgasmo mental. Eram três ou quatro dias de delírio, de contentamento, de alegres folguedos. Porém, na quarta-feira, se recolhia solitário ao seu quarto e lá permanecia como anacoreta, em total recolhimento e abstinência, até sábado, quando voltava às suas atividades normais.

            Também, às vezes, ficava em profunda prostração, abatido, deprimido, não se alimentava e não aparecia durante a noite. Quando era acometido por essas crises, não queria saber de ninguém, nem mesmo dos seus homens. Diziam os mais íntimos que aquilo era produto de uma grande paixão recolhida, não retribuída, guardada e sete chaves... um segredo inconfessável. Especulações havia de toda ordem. Uns diziam que era por causa de um filho de um alto funcionário do governo, o que, aliás, promoveu até uma disfarçada investigação. Outros juravam que era por causa do seu procedimento amoral – um pederasta vulgar, disforme e pobre, que só vivia de fato, verdadeiramente, durante os dias de carnaval, existência efêmera como a de uma colorida borboleta. Mas, tudo não passava de meras conjecturas até o momento em que o verdadeiro motivo veio à tona. Foi uma revelação bombástica! Toda a bicharada do pedaço e até mais além, para as bandas dos sobrados e bangalôs, se assanhou, com suspiros, desmaios, faniquitos... foi uma loucura, pô!

            O caso era antigo. Remontava há mais de cinco anos. Aconteceu num domingo, quando ele fazia compras no Mercado Velho. De repente, deparou-se com um crioulo de quase dois metros de altura, bem apessoado, dentes alvos, riso franco e aberto, maneiroso e voz argentina de locutor de rádio. O negrão, também, estava de bermuda e camisa de malha, mostrando o físico de atleta. Lixaba parou extasiado. Olhou-o, discretamente, de cima para baixo, prestando atenção em todos os detalhes, porém, onde se demorou, onde redobrou a sua perspicácia de profissional, foi no meio das pernas do rapagão. Fez um cálculo mental do tamanho do troço que estaria a dormitar ali por baixo da roupa e soltou um ai suspirado. O crioulo não deu muita atenção ao fortuito encontro e foi embora, entretanto, ele ficou ali parado a mirá-lo com o olhar lânguido... sonhador...apaixonado. Amor de primeira vista!

            Nunca tinha visto aquela criatura antes e procurou informar-se, sem alarde, de quem se tratava, até que conseguiu e passou a levar roupas à lavanderia onde ele trabalhava, com o intento de vê-lo mais à miúde, mais de perto, ouvir aquela voz argentina e, acidentalmente, roçar a sua manzorra. Tudo naquele homem era grande, exagerado, imagine “aquilo”, quando inchado, zangado, pensava ele nos seus longos e sonhadores cismares. O negrão, a princípio, de nada desconfiara. Achava até bom a vinda daquele novo freguês que lhe levava muitas roupas, pois isso aumentava o faturamento que, à época, estava em baixa. Mas, num outro domingo, no mesmo mercado, encontraram-se novamente. Agora, já eram conhecidos e tinham até uma certa intimidade. Depois de cumprimentá-lo, Lixaba fingiu que tropeçara e ia cair e, tentando amparar-se, passou a mão nas coisas íntimas do crioulo. Com faniquitos e espantado disse... Meu Deus! ... meu Deus! O negrão pulou para trás e ficou sério. Deu um empurrão no veado e foi embora resmungando e xingando. Os presentes riram a valer e ele ficou ali parado com a mão espalmada, como se quisesse conservar a medida correta das coisas do crioulo, das quais sentiu o volume, mesmo em estado de repouso, e repetia... meu Deus, que loucura! Daí em diante a comédia ficou com o seu enredo muito claro, transparente. Era o crioulo mesmo o bem-querer de sua vida.

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            O carnaval prometia ser o melhor dos últimos anos. A prefeitura havia dado contribuição em dinheiro para as agremiações, como forma de incentivo a melhorar a apresentação e desempenho dos blocos carnavalescos, e outras entidades privadas também participavam para que os folguedos de Momo fossem o melhor. Na Paissandu e na São José o clima era de grande euforia e rivalidade, pois, dali sairiam os dois carros alegóricos vencedores do corso. Porém, para Lixaba, isso não era de todo relevante. O que para ele era importante, verdadeiramente, era o seu desfile durante os três dias de entrudo. Três fantasias diferentes, cada uma feita com mais esmero e riqueza. No primeiro dia, desfilaria com a fantasia Deusa do Maracatu, acompanhada dos seus pajens. Seria um sucesso garantido, comentava. No segundo, Ave do Paraíso. Essa com mais de mil penas de pavão, além de outras tantas de diversos pássaros. E para o terceiro dia estava guardada a melhor surpresa. “O que é que a baiana tem?”, era o nome da fantasia. Na confecção desse costume, ele havia se esmerado em requinte, originalidade e gastos. Estava “um lixo de bonita! ”, dizia. E não foi sem um propósito definido a sua viagem a Salvador, no meio do ano anterior. Fora ver de perto o samba das autênticas baianas, o seu remexido, o seu rebolado e, também, adquirir adereços característicos.

            Os dois primeiros dias, um sucesso absoluto. Como em anos anteriores, o povão não poupou aplausos e vivas para a sua apresentação. Ele era todo alegria, contentamento e alvo de comentários. Até O DIA, do Mundo o Mão de Paca, elogiou a sua exibição e as outras bichas se mordiam de inveja e apontavam falhas imaginárias, no sentido de desvalorizar e menosprezar o desfile da concorrente, porém, secretamente, reconheciam o seu valor. O Totó bateu um seu número de fotos e o Muller, também. O Lauro, como não poderia deixar de ser, pois pertencia à mesma confraria, obteve foto privilegiadas. Muitas delas iriam fazer parte da sua galeria particular de fotografias.

            Ele soube, então, que o crioulo dos seus sonhos iria desfilar também num grupo denominado Enterro de Momo. Sairia fantasiado de “O Príncipe das Trevas”, caracterização que, aliás, lhe cairia muito bem, fechando o cortejo. Lixaba desfilaria logo atrás dele. Sabia por convicção que logo seria notado pelo seu príncipe, que não era nada das trevas, mas, sim, ali da Riachuelo mesmo. Seria o máximo desfilar, quase que exclusivamente, para o seu adorado. O sonho estava prestes a se realizar.

            A terça-feira amanheceu com uma chuva fina, molhada, mas, tudo indicava, não comprometedora das festividades de logo mais à tarde. No baixo meretrício a azáfama era total. Todo mundo ajudando todo mundo nas mais diversas tarefas. Os mínimos detalhes eram lembrados e ajustados. Não poderia haver falhas, pois, naquele dia, é que seria escolhido o melhor bloco, o melhor carro alegórico, o melhor grupo e, principalmente, o melhor folião, incluindo fantasia, criatividade, originalidade e desempenho. Era nesse último item que ele se incluía e havia se redobrado em ensaios e posturas. Ao meio-dia, todos ou quase todos os preparativos estavam concluídos. Sairiam, em corso, às três da tarde. Ele iria no carro da Raimundinha Leite até próximo à farmácia da Dona Lili. Ali esperaria a passagem do Enterro de Momo e seguiria, logo atrás, como havia de há muito planejado.

            Ninguém, a princípio, reparou na ausência de Lixaba que, naquelas ocasiões, sempre aparecia para dar palpites e fazer sugestões. Foi Mariinha de Sinimbu quem notou. Vendo a porta do quarto fechada por toda a manhã, foi verificar o que ocorria. Qual não foi o seu espanto, o grito de horror e de medo que soltou. Ele estava morto na cama, de barriga pra cima, a boca aberta escorrendo baba e os olhos esbugalhados, fixos em um ponto do teto. A cabeça pendida no colchão, na mão direita um lencinho branco e na outra uma ampola de lança-perfume, vazia. Havia morrido, por certo, de uma super inalação de éter. No cabide, a fantasia que usaria no desfile de logo mais, gomada e perfumada. Houve muita confusão, histerismo e choro. Foi chamada a polícia. Veio, também, o legista, bêbado que nem gambá, que constatou a morte por inalação excessiva de lança-perfume. Não houve autópsia e o médico nem mesmo tocou o corpo para verificar se Lixaba estava realmente morto. Foi um diagnóstico visual e circunstancial, apenas. A notícia logo se espalhou. Até a Rádio Difusora noticiou o fato, com muito respeito e pesar.

            Houve, então, um generalizado desalento. O que fazer agora com o já programado desfile?, era a pergunta comum. As sugestões vinham de toda parte e de toda sorte. O impasse teria que ser dirimido pelas organizadoras do evento. Reuniram-se as cafitinas mais importantes e resolveram, por unanimidade, não cancelar as manifestações antes programadas, mas, sim, acrescentar a elas um funeral, um funeral diferente, inusitado, sem luto, sem tristezas, sem choro ou lamentação. Um funeral sem marcha fúnebre, mas a toque de samba, marcha-frevo e muita cachaça e lança-perfume. Os participantes aplaudiram a magistral solução. Ninguém queria deixar de festejar naquele dia. Que se danasse a igreja, lá com seus padres e a sociedade com a sua hipocrisia! O importante era a homenagem póstuma que prestariam ao maior pederasta do pedaço.

            E assim foi feito. Às duas da tarde, maquiado a caráter, Lixaba estava comodamente deitado no melhor ataúde que a funerária do Benedito Caixão tinha disponível e vestido com a sua fantasia de baiana, completa, com turbante, tabuleiro e tudo mais de adereços. Parecia estar vivo, apenas adormecido, esperando a hora de entrar na folia. O singular e rápido velório foi no salão do cabaré da Jeruza, por comportar mais gente. De toda a cidade acorreram amigos e curiosos. O salão regurgitava, não cabia mais ninguém. A veadagem assumida, comandada por Napu, compareceu sem nenhuma reserva. Afinal, tratava-se de um ato de solidariedade humana, que não excluía credo, ou cor, fresco ou machão. Dizem até que o crioulo, discretamente, compareceu.

            Às três, o cortejo fúnebre-carnavalesco estava formado. Com o pipocar dos foguetes, sinal convencional, partiu. Na frente, capitaneando, o carro funerário, todo engalanado de coroas de papel crepom e flores das mais diversas. Era um jardim ambulante. Em seguida, os automóveis com as madames, os caminhões alegorizados com as meninas na carroceria e, por último, o povão a pé, tocado a pinga e sambando com a bateria e charanga do bloco dos Artísticos e de outros mais, avulsos, que se juntaram ao funeral. Todo o acompanhamento trazia uma laçada no braço direito de fita roxa, em sinal de respeito, não de luto. Nunca o Bazar das Novidades e a Casa A Fé venderam tanta fita em um só dia. As filas dobraram a esquina do Arquivo Público e da Papelaria do Antônio Lopes. Todo mundo queria participar da homenagem.

            O trajeto seria quase o mesmo programado para o desfile. Pela Paissandu até a Riachuelo, daí até a Estrela, à direita até a Praça do Liceu e, à esquerda, pela Simplício Mendes até o cemitério São José. Pararam em frente à igreja do Amparo em busca de um padre. Não havia. Estavam em retiro na casa paroquial, um pouco mais adiante. Seguiram. De lá, vinha saindo um, era o Cônego de Castelo, que, sorrateiramente, escapulia para tomar um alentado gole no boteco do Otávio Panelada, logo do outro lado da rua, quebrando a abstinência de três demorados e tediosos dias, passados a duras penas, somente com um golezinho pela manhã e outro à noite do vinho da missa. O cortejo parou. Uma das cafitinas desceu e conversou com ele explicando o acontecido. Queria que fosse junto para encomendar a alma do falecido, lá no cemitério. O cônego relutou, mas, vendo aquele mundaréu de gente, aquiesceu e entrou no automóvel do 71, junto com Raimundinha Leite, de quem, já tinha ouvido muito falar dos seus predicados, adjetivos não muito recomendados pela igreja, contudo, muito apreciados pelos mundanos pecadores.

            A madame, com acanhamento, ofereceu um trago de conhaque cinco estrelas, por sinal, o preferido do cônego. Afinal, era carnaval!... quando tudo ou quase tudo era tolerado e permitido. Ele, também, com fingido acanho, derramou de goela abaixo uma generosa dose, que desceu redonda, fazendo trinado aos seus ouvidos, já há algum tempo emudecidos. Até o cemitério, foi meio litro. Agora, já flutuava como um anjo e encomendaria a alma até mesmo do satanás, se fosse preciso.

            O povão tomou conta do cemitério. Era um empurra-empurra dos diabos. Todos queriam ver o sepultamento. Rodeando o caixão estavam as madames, os mais íntimos e o cônego. O esquife foi aberto para a última contemplação e uma chuva de flores caiu sobre ele, lançada pelos presentes. O padre fez as orações e recomendações, mas, na hora de aspergir água benta sobre o cadáver, não tinha. Então, disse baixinho para os mais próximos que qualquer líquido servia. Mourinha, que estava ali fantasiado de anjo, tirou de dentro de uma de suas asas uma garrafa de pinga e passou para o padre. Ele cheirou o conteúdo, comprovando que era das boas, salpicou algumas gotas sobre o defunto, dizendo em latim “que desperdício! ”... “que desperdício! ”. O restante da garrafa escamoteou, como profissional, para dentro da batina, visando o futuro.

            O caixão ia ser baixado à última morada. O bloco dos Artísticos começou a cantar “o que é que a baiana tem?”, como a sua última homenagem. O foguetório troou e o povo todo passou a participar da cantoria. Era uma festa de carnaval, em pleno cemitério. Foi um espetáculo pagão, mas bonito de ver todo mundo dançando, pulando e cantando naquele terreiro dos filhos do além. Entretanto, o inesperado estava por acontecer. Quando o esquife ia ser baixado à sepultura, talvez em razão da algazarra e dos estampidos dos rojões, o defunto se mexeu, acordou, abriu os olhos, olhos esbugalhados como os de quem acorda de um grande pesadelo, e sentou-se no fundo do caixão, atônito. Não atinava o que havia acontecido. Olhou em volta e levantou-se, atordoado. Foi uma debandada geral. Somente o cônego ficou ali, perplexo, boquiaberto, parado, porque não tinha ânimo para correr. Instintivamente, escamoteou de dentro da batina a garrafa de pinga e, de um só sorvo, acabou com ela. Agora, estava mais do que pronto para enfrentar alma do outro mundo, fosse fresca ou não.

            O falso defunto começou a acenar para o povo que corria aos tropeções e a gritar que estava vivo, fora só um desmaio. Aos poucos, e ainda com receio, voltaram. Então a charanga do bloco do Artísticos voltou a tocar e cantar a música interrompida e o povão fez coro. Lixaba, já refeito do susto, não perdeu tempo. Pulou do caixão e saiu na frente dos acompanhantes, se desfazendo em meneios e requebros, a dançar e cantar “ o que é que a baiana tem? ” E o povão, em delírio, respondia em coro:

Tem saia rodada, tem...
Tem brinco de ouro, tem...
Anágua engomada, tem...
Só vai ao Bonfim que tem...

Quando você requebrar,
Caia por cima de mim...
Caia por cima de mim...
Caia por cima de mim!
O que é que a baiana tem?

segunda-feira, 27 de março de 2017

Lançamento de "Jurisdição Constitucional" em Campo Maior


Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Piauí Lançará Livro em Campo Maior

Com o título Jurisdição Constitucional: Diálogos Institucionais como Terceira Via entre o Ativismo e a Autocontenção Judicial, o campomaiorense e atual Juiz Auxiliar da Presidência do TJPI, Antonio Oliveira, lançará livro jurídico na Câmara Municipal de Campo Maior, no próximo dia 31 de março.

A obra, na sua essência, reproduz sua dissertação de mestrado, defendida no ano de 2015, em Lisboa, Portugal. Nela o autor presta contribuição à magistratura e ao meio acadêmico, tendo em vista que aborda, entre outros, temas que continuamente se encontram em delicada tensão, tais como constitucionalismo versus democracia, Poder Judiciário versus Poder Legislativo, supremacia Judicial versus supremacia Parlamentar, além de ativismo judicial versus autocontenção judicial.

Destaca-se, ainda, por sua capital importância no contexto social, tendo em vista que chama atenção para o atual comportamento dos Poderes Constituídos no Brasil no que toca às suas funções constitucionais – mormente em relação à interpretação constitucional -, demonstrando que o descrédito da população perante os Poderes Políticos tem “legitimado” o Poder Judiciário a preencher os “vácuos” deixados pelos atores políticos, sobretudo o Poder Legislativo. Lado outro, alertar para o perigo de uma instância hegemônica, reivindicadora da pretensa última palavra na interpretação da Constituição, de modo a se repensar a adoção de mecanismos que possibilitem o diálogo institucional na construção do melhor sentido e interpretação dos direitos.

O evento ocorrerá na Câmara Municipal de Campo Maior, no próximo dia 31 de março, às 19 h, e, além de familiares e amigos do autor, contará com a presença do Presidente do TJPI, Desembargador Erivan Lopes – responsável pela apresentação do livro -, Magistrados, servidores do TJPI, membros do Ministério Público, Advogados, Professores, alunos e convidados diversos.


Confira trecho da apresentação do livro, realizada pelo Presidente do TJPI, Desembargador Erivan Lopes:

O leitor, doravante, tem à sua disposição uma das mais instigantes e arrojadas obra de Direito Constitucional contemporâneo. O livro de Antonio Oliveira é fruto de adaptações pontuais da sua dissertação de mestrado, defendida no dia 11 de setembro de 2015, junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), em Portugal, perante a seleta banca composta pelos Professores Doutores Marcelo Rebelo de Sousa (Presidente da banca e atual Presidente da República Portuguesa), Luís Pedro Pereira Coutinho (orientador), Alexandre Sousa Pinheiro (arguente) e Alexandra Leitão (vogal), que lhe atribuíram a festejada e merecida nota máxima!

Antonio Oliveira, em seu “Jurisdição Constitucional: diálogos institucionais como terceira via entre o ativismo e autocontenção judicial”, não submete o leitor a uma narrativa enfadonha acerca do papel assumido pelas diversas Cortes Constitucionais mundo afora, tampouco se restringe a conceituar e descrever os famigerados fenômenos da judicialização e do ativismo judicial.

Cuida-se, na realidade, de ousada obra pautada numa densa e refinada pesquisa científica, na qual o autor, lastreado em diferentes teóricos nacionais e estrangeiros, apresenta reflexões críticas sobre o ativismo e a autocontenção judicial, associando esses fenômenos aos modelos de supremacia judicial e supremacia parlamentar, respectivamente.
[...]
As argumentações do Autor, conquanto bastante balizadas no meio acadêmico, não se esgotam unicamente na ótica doutrinária, haja vista que se espraiam por diversos precedentes de distintos Tribunais do país, destacadamente, polêmicos julgados do Supremo Tribunal Federal (STF), que, chamado a se manifestar acerca de uma miríade de demandas, não apenas se contenta em decidir, mas reivindica abertamente o status de último intérprete da Constituição.
[...]
            Fica evidente, pelas pistas até aqui deixadas, que o livro do Professor e Magistrado Antonio Oliveira transcende a ciência do Direito Constitucional, porquanto seu conteúdo transita facilmente entre o Direito, a Ciência Política e a Filosofia. Conquanto elaborada em apurado âmbito acadêmico, sua obra não fica adstrita a alunos de pós-graduação e graduação, servindo de preciosa fonte de consulta para profissionais de distintas áreas – jurídica ou não -, ávidos por conhecer e entender assunto tão caro e relevante em tempo coetâneo, mas que escapam das lentes míopes e tradicionais que não vislumbram a expansão global do Poder Judiciário e seus desdobramentos numa sociedade pluralista como a brasileira.
            [...]
O Autor é Juiz de Direito no Estado do Piauí – atualmente Juiz Auxiliar da Presidência do TJPI -, onde exerce com escorreita vocação seu mister. Ao lado da judicatura, exerce com elevado entusiasmo e paixão o magistério, no qual se notabiliza na área do Direito Público, designadamente o Direito Constitucional, Direito Processual Penal e Direito Penal, tendo vasta contribuição na pós-graduação lato sensu da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (ESMEPI), nos cursos institucionais promovidos pela Escola Judiciária do Piauí (EJUD), além de experiências exitosas na graduação e em cursinhos da área jurídica, sendo reconhecido por seus alunos como docente que alinha com destreza conteúdo, didática e humildade.
            [...]

Desembargador Erivan Lopes
Presidente do TJPI

domingo, 26 de março de 2017

Seleta Piauiense - Elmar Carvalho

Fonte: Google

A PONTE NA MEMÓRIA

Elmar Carvalho (1956)

O vento passavoante
               pássaro voante
sob o arco-da-velha
sob o arco da ponte.
Baloiça os pés de oitis,
joga confete com suas folhas
e empurra o casario antigo
com suas: arcadas dóricas
                   volutas jônicas
                   ogivas góticas
                   sacadas exóticas
com suas parábolas e abóbadas.
O vento passalígero passalísio
e empurra o casario antigo
que navega parado
no tempo que navega
como um mar que navegasse
sob um navio ancorado
que se deixasse navegar.
Meu sonho de malas prontas
é passageiro e tripulação
do casario – navio que navega
ao se deixar navegar.   

quinta-feira, 23 de março de 2017

Antenor Rêgo e seu dicionário de “Piauiês”


Antenor Rêgo e seu dicionário de “Piauiês”

Elmar Carvalho

Logo no início de seu prefácio, o escritor Ribamar Garcia consigna: “Há uma lei estadual, de iniciativa da ex-deputada Margarete Coelho, que instituiu o ‘Piauiês’ como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Piauí. E o define como sendo a pronúncia característica do falar do piauiense, ‘bem como as palavras e expressões típicas do estado’”. A obra em comento é uma maneira de preservar e difundir esse patrimônio. A autora da lei foi minha colega no curso de Direito (UFPI) e é a atual vice-governadora de nosso estado.

Antenor Rêgo Filho é autor de vários e importantes livros. Foi um dos fundadores da Academia de Letras do Vale do Longá – ALVAL, da qual foi presidente em mais de um mandato. Numa de suas gestões a entidade obteve a sua sede própria, em cuja inauguração festiva estive presente. Já tive o ensejo de me pronunciar sobre “Barras – histórias e saudades”, notável obra de sua autoria sobre a história barrense, suas “coisas”, seus prédios, logradouros e seus costumes.

Em seu Dicionário do Piauí – a língua piauiense, de 160 páginas, estão catalogados em forma de verbetes, conforme consta na capa, o linguajar, as expressões, as sabenças, os falares, os costumes e as curiosidades de nosso povo. Segundo ele próprio me informou, passou vários anos à cata desses vocábulos, expressões e ditados regionalistas, notadamente de nosso estado. Quando em conversa com amigos e diferentes pessoas, anotava as palavras e expressões que lhe interessavam. De outras ia à procura, em livros e em indagações pessoais.

Muitas são bem conhecidas, mas algumas são quase inauditas, mesmo para um leitor atento e curioso como eu. Nos verbetes, quando é o caso, ele indica os seus sinônimos ou o seu significado, muitas vezes exemplificando com frases entre aspas, que facilitam a exata compreensão. Em outros casos, explica a origem da expressão que se tornou popular. Termina contando fatos interessantes e pitorescos de forma sucinta, como convém a um dicionário.

Não raras vezes somos surpreendidos pela explicação ou interpretação de certos ditados, que, vez ou outra, diferem de nossa própria interpretação ou conhecimento. Mesmo quando isso acontece, aceitamos a explanação, porque ela segue uma lógica, e, sem dúvida, não se afasta do que é razoável, crível ou pelo menos verossímil. Não significa dizer que a nossa interpretação também não fosse razoável ou pautada por um raciocínio aguçado. É que o dicionarista perquiriu a etimologia do regionalismo ou o que deu origem à expressão ou ditado, de que muitas vezes não temos conhecimento.

Algumas expressões, embora tenham sido muito usadas no passado, hoje estão quase em desuso, e por isso são pouco conhecidas. Soam como um estranho ou exótico anacronismo que nos remete ao passado. E por isso aviventam as lembranças e as saudades, trazendo-nos emoções dos tempos de outrora, que pensávamos esquecidas. Umas têm um fundo moralista, no bom sentido da palavra, ou podem nos servir de advertência; outras, têm algo de humor ou de evidente jocosidade.


É um livro de grande importância, não só para os filólogos e os doutos, mas para todos que amam o Piauí, a sua cultura, o seu linguajar e costumes, e lhe seguem os usos e fusos, pois, como sabemos, “cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”.