quarta-feira, 30 de novembro de 2016

VIDA E MORTE

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VIDA E MORTE

Antônio Francisco Sousa – Auditor-Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)

            O liquidificador, por mais de um minuto, valeu-se de seu potente motor para esfarelar, triturar, trucidar, enfim, transformar em líquido de densidade semelhante à do leite e mel, que serviram de diluente, pedaços de maçã, pera, mamão, cenoura, beterraba, de abacate, além de algumas colheres de flocos de aveia e de farinha de linhaça, colocados, todos juntos, no enorme copo do aparelho. Algo decorrente de essa ação, deveras interessante, deixou-me surpreso e estupefato: a banana, dividida em duas metades e misturada às outras frutas, verduras e cereais, escapou ilesa, praticamente sem arranhões, de todo o processo destrutivo. Convém informar que o equipamento era novo e suas lâminas, claro, perfeitamente afiadas; como pôde ser percebido e comprovado pela destruição imposta aos demais itens da poderosa vitamina.

            Não pude deixar de relacionar o que acabara de presenciar com os eventos vida e morte. Aquele não fora, ainda, o momento de a banana voltar ao pó (ou virar suco), ter sua consumação enquanto fruta em estado sólido. Se é que se pode afirmar isto: não havia chegado o instante, o átimo de tempo em que se extinguiria, teria fim, e passaria a ser parte indivisível do todo que comporia juntamente com os outros produtos liquidificados. Sem presença visível, somente poderia ser percebida com o auxílio de técnicas de separação de substâncias ou por olfatos e paladares muito bem apurados.

            Vezes sem conta já ouvi indivíduos letrados, iletrados, tolos, iniciados, jovens, maduros ou velhos dizerem que vida e morte são dois mistérios. Nunca concordei, integralmente, com essa assertiva, haja vista discordar ou divergir de suas opiniões no que tange à morte.

            Que de misterioso há na morte, se esta, sem anúncio nem aviso prévio, inapelavelmente, sobrevém-nos a todos, a qualquer momento, tenhamos tido ou não tempo de fazer o que nos impuséramos como meta ou objetivos de vida?

            A propósito, o que é mistério? Não poderia ser, também e, adredemente, a despeito ou em complemento aos conceitos que lhe dão dicionários e gramáticas, aquela situação ou condição, inusitada, que recai ou se insurge sobre nós sem que, a respeito ou em relação à mesma, por mais imaginativos ou inteligentes que sejamos, possamos exercer qualquer influência no sentido de tentar alterar ou modificar o formato ou o modo como ele se apresenta, mostra ou surge? O que há de inusitado ou de inédito na morte, se ela é a única certeza que todos nós, mais cedo ou mais tarde, haveremos de comprovar?

            Para o filósofo espanhol Sêneca, a morte goza de tamanha independência que sequer da vida precisa para que ocorra. Essa tese ou premissa ele a expôs quando, certa feita, vaticinou: tenho experimentado a morte desde antes de nascer, porque a morte é a não existência. O que quer que ela seja, depois de mim, será o mesmo que foi antes de mim.

            Quanto a mim, sou seguidor daqueles que entendem a vida como um dom, um privilégio, uma individualidade, e a morte, uma singularidade, um acerto de contas levado a cabo, muitas vezes, antes mesmo da efetiva movimentação de essas contas. A vida admite conceitos, sinônimos, definições; a morte é unívoca; a vida pode ser cíclica, morte é fim de ciclo. A vida é um caminho, de curto ou de longo percurso, a que somos convidados percorrer; a morte é o ponto desse caminho que, uma vez atingido, impede-nos de retornar ao início ou de seguir adiante. A vida é um mistério, a morte uma evidência.

            Assim como não é errado afirmar que morte significa, de fato, o fim natural da vida, certeza também é que não temos poder para dilatar nosso tempo de vida – o que parece lógico, já que não sabemos qual seria nosso prazo de duração - nem para postergar a hora, o minuto, o segundo em que haveremos de morrer, uma vez que, feliz ou, infelizmente, a ninguém é dado saber quando a indigitada das gentes nos visitará pela primeira e última vez.            

domingo, 27 de novembro de 2016

Meia-vida, de Oton Lustosa

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Meia-vida, de Oton Lustosa


Dílson Lages Monteiro
Membro da Academia Piauiense de Letras

Analisando o caráter social da literatura brasileira, o crítico Fábio Lucas diz que “a rigor, toda obra que fixasse uma personagem (imitação do homem real) poderia, em sentido amplo, ser considerada de caráter social”. Ao fazer tal explicação, esclarece que “a perspectiva social será apanhada toda vez que a personagem ou o grupo de personagens tiver seu destino ligado ao da sociedade global de que faz parte, sob o impulso das forças fundamentais que conferem historicidade às tensões entre indivíduos ou grupos”.
A obra do romancista e desembargador Oton Lustosa, da Academia Piauiense de Letras, de evidentes traços neorrealistas, tem-se afirmado pela perspectiva social, de que se constitui exemplo o romance Meia-vida, relançado pela APL (Coleção Centenário), em 2016. Vive-se nessa obra, principalmente, as tensões do drama de Santino, entregador de jornal, funcionário de hotel, líder estudantil, na ânsia de alcançar mobilidade social; o drama de Santino e de sua classe social, mergulhada na miséria de que ele, à exceção, consegue em parte se desvencilhar. Ainda que a superação alcançada pelo herói não signifique a transformação completa pela qual ansiou, conforme se subentende no final dessas notas.
O personagem Santino endossa Fábio Lucas, para o qual, “o ficcionista social (...) será aquele capaz de representar nos seus tipos e heróis a perdida unidade do homem, isto é, fixar aquele ser a quem roubaram horizontes, mas que aspira a ser íntegro numa sociedade que o mutila”. Santino delineia-se à proporção que a descrição de hábitos e costumes desenha-se como elemento central, funcionando para alicerçar o fundo moral que configura a construção dos personagens e dá a eles a consistência necessária para os questionamentos sociais que movem o leitor; para a caracterização histórico-geográfica do espaço e  para a curiosidade pelos dramas de personagens sem  horizontes, senão o da reprodução dos valores mais imediatos de suas vivências.
Em prefácio a Meia-vida, o acadêmico e notável crítico literário M. Paulo Nunes, ao apresentar o tema da obra  – “a vida fervilhante, com as suas vivências, e sofrências, do aglomerado urbano que procura sobreviver em torno do Troca-troca, na beira do rio Parnaíba, na praça Rio Branco, com suas bancas de jornais e seus camelôs e a mulher da vida,ou nos cabarés da Paissandu e do Morro do Querosene – reproduz a vida miúda sem quaisquer perspectivas”.  Ao focalizar esses tipos e espaços, retoma Oton Lustosa, conforme assinala Nunes, antigo filão que é o romance de costumes, ambientando a narrativa na Teresina da década de oitenta do século XX, somente assim situada para dar substância ao caráter político de que também é portadora a obra.
Ao centrar-se na vida cotidiana de personagens que vivem à margem, vasculhando-lhes os dramas, Oton Lustosa vai além do sentido mais habitual dessa categoria de romance. Espaços e valores servem tanto para descrever e documentar um tempo, quanto para lançar luz sobre a desigualdade, fugindo das explicações meramente deterministas. 
Para os romances de costumes, mais frequentemente, as desigualdades advinham da vontade de Deus ou da força agressiva da natureza. A esse propósito, diz o já citado crítico Fábio Lucas: “Embora descrevesse muitas vezes o estado sub-humano dos indivíduos alienados da propriedade dos bens, não indicava nunca a razão da miséria. Quase sempre, o fenômeno era analisado sob um prisma de comiseração e piedade, e as soluções que pudessem daí ser inferidas não passavam de um apelo à solução parcial, individual e ineficaz, em maior amplitude. Condenava-se a miséria, sem se condenar a sua causa”.
Em Meia-vida, entretanto, o destino de Santino traz implícitas as explicações para os encaminhamentos que a vida engendra, sem as marcas fechadas da solução fácil ou do determinismo. Em sua cosmovisão, a segregação familiar e os destinos da vida, antes de estarem ligados aos caprichos da natureza ou ao curso inflexível da imposição social, explicam-se pela organização dos homens, pela dinâmica da sociedade do capital.
Ao se ler ou reler Meia-vida, a atenção flui naturalmente para três pontos, que se cabe mencionar, a fim de, do ponto de vista temático-discurso, compreender a obra.  Antes de mais nada, Oton Lustosa constrói um panorama do centro da Teresina, focalizando pontos tradicionais de concentração de trabalhadores informais, cujo perfil é delineado, sobretudo, para, além de pintar o dia a dia, sondar as perspectivas de vida.
A construção desses espaços, embora se atenha também, a representar o lado malandro desses ambientes, por meio, por exemplo, das prostitutas e ladrões, volta-se com maior ênfase para a dignidade do trabalho, expresso em personagens como o feirante do Troca-troca Zezão e a vendedora de pratos feitos Mundica. Neles, o trabalho e a honestidade falam mais alto, desfazendo preconceitos e projetando olhar humano sobre os desprotegidos da fortuna e da sorte.
Outro ponto merecedor de anotação é o olhar para a política, aqui significada como forma legítima de representação dos anseios coletivos (a ilustrar esse enfoque, a luta bem intencionada de Santino para se fazer representante estudantil e a participação política para se ser vereador), mas também como troca de favores. Disso se servem, conforme a obra, políticos do Sul do Estado, tendo em Santino, um intérprete vocacionado para percorrer hospitais com enfermos ou encaminhar pedidos ao gabinete de “autoridades”.
Lendo Meia-vida, ocorrem questionamentos que, em essência, dirigem o leitor para o argumento da obra: “Sob quais critérios se constroem as representações sobre os semelhantes? A partir de critérios morais? A partir de habilidades pessoais? A partir da conta bancária? A partir da capacidade de influenciar? A partir do talento para a comunicação interpessoal? A partir do número de amigos? A partir de quê?”.
As perguntas validam o terceiro elemento que absorve o leitor  e que é um dos  esteios  de sua argumentação: “Como superar as adversidades, em um espaço marcado por lugares socialmente delimitados?”.  
Em Meia-Vida, cujo título retoma analogicamente o pneu de bicicleta semigasto e, nesse sentido, vidas cujos desejos não se completam, como bem destacou prof. M. Paulo Nunes, a superação social encontra em Santino explicação em quatro elementos: o trabalho honesto e dedicado; o exercício cotidiano da bondade; as escolhas que se realiza e, claro, uma boa dose de oportunidades, que surgem quase como uma consequência.

Em Meia-vida, o desembargador e romancista Oton Lustosa pratica uma escritura de resistência. Seu engajamento, longe de quaisquer comodismos ou reafirmação do olhar piedoso burguês é, acima de tudo, a crença na capacidade humana de superação, ainda que marcada pela dúvida, pelo pessimismo e pelas frustrações dos novos lugares sociais assumidos.

sábado, 26 de novembro de 2016

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"Paradeiro", de Geovane Fernandes Monteiro: uma estreia e uma promessa

Cunha e Silva Filho

Escrever sobre um obra de estreia de um jovem ficcionista torna a responsabilidade do crítico ainda bem maior do que escrever sobre um autor já conhecido e bem analisado pela crítica. Desta vez, tenho diante de mim o livro de contos Paradeiro[1] do piauiense Geovane Fernandes Monteiro.

Segundo breves dados biobibliográficos fornecidos no final do pequeno volume de contos, o autor, formado em Letras, escreve também poesia, crônicas, artigos e já tem a seu favor alguns prêmios conquistados fora do Piauí. Fez parte de várias coletâneas pelo país afora, o que é bom sinal de que o ficcionista pretende mesmo dar continuidade à sua produção e enfileirar-se ao número elevado de outros jovens autores que serão acrescentados à produção ficcional brasileira. O Piauí, quer-me parecer, já vai aumentando, ao contrário do que havia no passado com o predomínio de poetas, substancialmente o número de ficcionistas na contemporaneidade, de tal sorte que muitos escapam ao conhecimento de quem faz crítica literária, o que é, no mínimo, natural nas condições hoje oferecidas a esta atividade que, no passado, foi muito intensa em nosso vida literária. 

Para um estreante, devem-se acentuar de início alguns pontos fundamentais de construção ficcional nele evidentes: seu domínio narrativo, seu poder descritivo, sua boa dose de imaginação e sua forte tendência de fundir a prosa e a poesia de molde a resultar num texto que envolve o leitor num espaço e tempo tendentes a um mundo ficcional regido pela força do interioridade do que o mundo empírico não é capaz de dar conta.

O que a leitura dos seus contos suscita é aquilo que, em poesia, se chama de estranhamento, os formalistas russos denominam de ostranenie,[2]i.e., desfamiliarização ou desautomatização dos modos comuns pelos quais percebemos a realidade e as situações existenciais. Seu intento é o de impactar o leitor. O mundo empírico, a partir desse desvio literário, assume uma nova forma de “realidade” tanto em lidar com o narrador quanto com a narrativa. Essa estratégia, no passado, já fora usada por poetas como Wordsworth (1750-1850) e Shelley (1792-1822. A vanguarda, na ficção e na poesia, da mesma maneira fez uso desse traço linguístico-literário. O mesmo diria da nossa poesia modernista nas suas fases mais radicais.

Em Paradeiro tal uso do estranhamento ocorre não só ao nível do narrador mas também no discurso literário. Ora, ao utilizar-se de tal estratégia, Geovanne Monteiro não vai satisfazer o leitor habituado ao romance de corte tradicional, mais focado no enredo, nas peripécias da narrativa. Desta forma, o horizonte de recepção da obra se encolhe para certas faixas de leitores e não atinge a maioria. Teoricamente, se elitiza.

Outro componente da linguagem que logo nos chama atenção é a recorrência do emprego da oxímoro ou do paradoxo ao longo dos contos.Vejam-se, por exemplo, “(...) intenso e efêmero,”[3] primeiro conto, “Paradeiro,” da primeira parte da obra, ou “(...) pequenez profunda,”[4] ou estoutro “(...) harmonia da desordem,”[5]conto “Redescobrindo Teresina,” o quarto da primeira parte. Há também na sua linguagem, diria na sua sintaxe literária, um recurso bem original, que é o emprego de um sintagma no qual o adjetivo e o substantivo guardam um inusitada combinação de efeito antinômico a fim de configurar um estado mental ou emocional de uma personagem, segundo se constata nos exemplos “(...) em difícil doçura,”[6] conto “Paradeiro”; “(...) severidade paciente;”[7] “(...) contradição animada;”[8] “(...) pobre superioridade,”[9] conto “Redescobrindo Teresina.”
 
Tal feição conduz a narrativa a exigir do leitor uma constante reflexão diante de frases em tom sentencioso,aforístico, hermetizando o discurso literário da mesma maneira que, na poesia contemporânea ou nas antigas vanguardas do início do século passado, a descodificação torna-se antes mais sentida do que explicitada, como se estivéssemos em pleno estado característico da poesia simbolista, guardadas as proporções,com a conhecida recomendação de Paul Verlaine (1844-1896): “sugerir sempre, nomear nunca.” 

A sensação que passam ao leitor os contos de Geovane Monteiro é a de um mundo ficcional poetizado ou metaforizado tanto no sentido dos sentimentos bons quanto maus ou indeterminados.
O livro, segundo aludi acima, se divide em duas partes, ambas com intenções bastante desarticuladoras: 1) “Histórias mal contadas ou entre o medo e a saudade”. Esta se compõe de quatro contos, o primeiro dos quais dá título à obra; 2) “De volta ao esboço ou fica comigo.” Reúne três contos.

Há que considerar, na compreensão geral dos contos, o valor das parataxes relativas à primeira parte da obra, usadas pelo autor, com citações de escritores universais, Dostoiévski (1821-1881), Lao Tsé (605 a.C-531 a. C.) e Fernando Pessoa (1888-1935); na segunda parte do volume, são citados, dois brasileiros de peso, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Guimarães Rosa (1908-1967) e um estrangeiro, o famoso Franz Kafka (1883-1924).

O curioso e ao mesmo tempo relevante é o fato de que em todos aqueles autores nomeados, sem dúvida um exemplo de “isotopia narrativa”[10] convergindo, é claro, para a unidade temática da obra por inteiro instaurada pelos termos “caminho,” “paradeiro”(que aparece mais de uma vez na obra), ou equivalentes, “regressam, saída,”extraviados,” “chegada,” “retorno,” “travessia” Propositalmente ou não, esses termos fazem parte dos enunciados dos parataxes ou epígrafes. presentes, segundo referi antes, no livro. Por falar em parataxes, não se deve esquecer que o autor, no início da obra, com sua maneira desconcertante de escrever, inclui uma nota prévia ao leitor, a qual corrobora a natureza estético-composicional de seus contos no livro, sob o título “Aos outros”:Este livro esteve melhor escrito quando da falta de história tão fácil de contar. Apenas leitores inconscientes de sua escrita salvariam minha literatura. Este livro é minha pior bondade, pois – sem paradeiros – descubro o caminho.[11]

Na análise destes contos, há que assinalar em todos eles o componente estrutural do enredo, ou de uma trama, que, na obra, recebem um tratamento "contra-ideológico" no que concerne às narrativas tradicionais lineares ou mesmo não lineares.

Paradeiro persegue algum enredo? Conta uma história? Contém ações? Sim, contudo de forma subvertida. Assim se dá no primeiro conto, “Paradeiro,” uma história que fala de um homem velho, já vencido pelo cansaço da vida e do seu passado, Antônio Soares Monteiro. Seu presente é a sua relação com os filhos, suas netas. Sua vida consiste em tentar se equilibrar entre as memórias do passado no sítio e a sua pálida vida presente de idoso e divorciado.

O narrador deste conto não deseja apenas situar a figura do velho Monteiro no espaço familiar e no espaço exterior, da rua, dos conhecidos, das conversas. O que mais interessa ao narrador é a vida interior da personagem nuclear, captar-lhe os anseios na fase de declínio vital, as boas lembranças, as frustrações e o seu destino humano e comum.

Mais um elemento a se acrescer a esta personagem típica do homem do interior é a sua forma de aguardar o derradeiro dia da vida, com a esperança na vinda de Cristo. A sua morte não se manifesta direta na matéria narrativa.

Ela vem obliquamente, graças a um recurso que, no conto se repete, não agora com a intenção puramente de se valer da fé, mas com o propósito de fundir hedonismo e alusão bíblica frente à sociedade do espetáculo tendo, por melhor ilustração o esvaziamento de valores positivos, o Big Brother Brazil que vai aparecer no derradeiro conto do livro, “Travessia.”[12] Sobre este conto, voltarei a comentar nas páginas finais deste estudo.

No segundo conto, “Dona Maria,” o narrador-protagonista, na fase adulta, rememora o seu convívio, quando menino,com uma velha viúva atravessando os anos crepusculares de uma vida simples, cheia de lições a transmitir ao menino e que decida, depois, mudar de lugar s fim de morar com os filhos até seus últimos dias. O que flagra este conto é a questão mais uma vez da velhice e de seus percalços. 

O terceiro conto, “O segredo da vida,” retrata psicologicamente os momentos decisivos de jovem Ada, pessoa simples, trabalhadora, habitante de um bairro periférico. Os instantes do drama pessoal mais intensos são o de pagar a passagem ao cobrador. Este é um ato simples e corriqueiro de uma passageira passar pela roleta, porém, no relato, adquire contornos de ordem pessoal e moral diante da situação psicológica da personagem num ambiente fechado de um ônibus lotado de passageiros e insinuações. 

O estar no ônibus era uma forma também de pensar fora daqueles limites do carro e até pensar numa possível maneira de ser feliz dentro ou fora do veículo. Verdadeira sondagem subterrânea na alma de uma jovem pobre. Sobressalto e epifania. Alegria e dor. Fantasias de uma vida melhor, confortável e lembranças passadas.O ônibus como metáfora do mundo interior intenso de uma personagem presa à vida e às suas surpresas e limitações. Ada, o nome da passageira, é, sim, um poço fundo de vida interior. 

Após descer do ônibus, dirige-se para a sua casa. Toda esse monotonia de um vida sem horizontes no cotidiano urbano assume um alto sentido do drama existencial inescapável nos seus segredos e nas suas finalidades de existir no anonimato.

“Redescobrindo Teresina,” o quarto conto, narra a história de um personagem conhecido apenas pelas iniciais de JS (alusão kafkiana?), esperado por um amigo num bar sem luxo, numa noite de um sábado teresinense. O evolver da narrativa bate na tecla da espera do amigo que nunca chega.

Enquanto aguarda a chegada do amigo, o mundo interior de JS ressurge forte e avassalador, indo às recordações de Água Branca, cidadezinha piauiense, onde viveram ele e o amigo. Agora, no presente da narrativa, estavam ambos em Teresina, um cidade já crescida, desconhecida, que oferecia perigos e novidades.Já eram estudantes de universidade. No meio de um gole de cerveja, o espaço ao redor quebrava algum silêncio com um música e os movimentos de um jogo de bingo.

Todo o conto é essa espera que não chega,mas que desperta a abertura para o insondável da existência humana e para a solidão.

Até agora, se vê que a atmosfera dos contos de Geovane Monteiro é invadida pela reflexão de estofo filosófico, de questionamentos e tentativas de interpretar os sinais da convivência humana, sobretudo no plano familiar e da amizade. 

São narrativa pontuadas da “vaguidão,” de silêncios, de medos, de perigos e de inquietudes abissais. Ao analisar estes contos,me vem à mente algum modo de narrar e de olhar para o humano e o existencial de Clarice Lispector (1925-1977), ficcionista cuja narrativa mergulha densamente na contemplação e análise da vida e no destino de seus personagens, segundo a perspectiva de uma certa hesitação, de mistérios, ambiguidades, conceituações metafísicas, silêncios e indefinições, ou seja, de uma inconclusa procura de caminhos, num movimentar-se sem fim, propiciando ao leitor aquela sensação do texto beirando o poético e o dramático da condição do indivíduo no mundo.

Um literatura em desespero, em sofreguidão, em luta interior contra o vago e o indecifrável.Na ficção de autor piauiense, só consigo vislumbrar algo parecido em O.G. Rego de Carvalho (1930-2013) no que tange ao mundo interior, sombrio e indevassável de alguns personagens.

O texto se faz sensível, ao leitor, mas não se lhe entrega de bandeja. Nesta direção, é significativo, do ponto de vista metaficional, o seguinte trecho que aparece no conto “A chuva,” que, adiante comento:”Há encantos em não desamparar o desconhecido, hei de dominá-lo? Se o desafio é a falta de desfecho, o desconhecido é uma revelação.”[13]

No conto “O alto da montanha,” o tema, de conotação visivelmente simbólica, faz girar seu eixo no desejo estético da personagem que aspira a encontrar a “beleza.” Esta é a sua busca: desentranhar o belo no que lhe seja possível. É uma narrativa plena de sortilégios. Na procura por nomear o que fosse belo, no seu deambular pelas ruas, ao mesmo tempo se misturavam sentimentos de liberdade, de autobeleza só alcançada caso fosse relacionada a outrem, até que uma amiga lhe oferece de presente uma “pedra.” Ora, de posse desse objeto, a personagem inicia a sua perquirição existencial cheia de contradições e de aporias, tanto quanto existem em alguns autores, por sinal o citado Fernando Pessoa.

Segundo o monumental Dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, a pedra, entre outros sentidos, está relacionada com a alma. A “pedra bruta” se considerava ainda como "símbolo da liberdade.”[14] No Arcadismo, o topos da “pedra” está muito presente no poeta Manuel da Costa (1729-1789)). Segundo Antonio Candido, para aquele poeta:

(...)
a presença da rocha aponta nele para um anseio profundo de encontrar alicerce,ponto básico de referência que a impregnação da infância e adolescência o levam a buscar no elemento característico da paisagem natal.”[15]


Recorde-se também o controvertido poema de Carlos Drummond de Andrade “No meio do caminho”[16] aqui citado apenas na primeira linha do verso:”No meio do caminho havia uma pedra...”

No conto “A chuva” tem-se, sem dúvida, o ponto talvez mais evidente da capacidade de o autor construir uma narrativa sem mácula, uma pequena obra-prima no meio de bons contos. O que dizer desse conto? Somente encontro uma definição: é pura poesia. Latejar de sons e palavras poderosamente tematizando o fenômeno da chuva ressoando nos poros da existência.O ritmo frenético,uma enxurrada harmoniosa de enunciados lírico, num canto à natureza tendo por elemento nuclear a “água” – fonte da existência e equilíbrio na Terra.

O eu do narrador se espraia por todos os cantos de um espaço indefinido. Fala de si e dos multifários contornos da Natureza-Mãe abrangendo todo um vasto movimento da paisagem humana e da força da natureza no seu dinamismo natural e irreprimível, construindo um caleidoscópio atravessado pelos corpos, pelos objetos e pelos espíritos dos homens diante dos fenômenos naturais.

Se há catarse do trágico pode-se asseverar que o há igualmente no lirismo desta narrativa, na exaltação assombrosa dos movimentos, das mutações, das ondulações, do solo, do ar, dos ventos, dos mares, e da “alma,” termo que aparece reincidente na narrativa destes contos surpreendentes e, a meu ver, muito bem elaborados, elaborados com plena consciência estética: “Viu o adeus da amiga no perigo de uma bondade. Ela obedeceu a seus mistérios.”[17]

Atinge, finalmente, este pequeno volume o derradeiro conto, “Travessia.” Essa narrativa retoma, em muitos traços temáticos a notação autoficcional do primeiro conto, a que, de resto, não fiz claramente alguma alusão. Suas referências se alicerçam nas raízes familiares do autor e no forte tom rememorativo da figura do velho Monteiro. Só que no conto inicial, o narrador é de terceira pessoa, ao passo que, no conto final, o narrado é de primeira pessoa. O conto se desenvolve em seções, ao todo, nove, sendo as últimas formadas de pequenos enunciados.

Entretanto, é uma conto independente ainda que retomando aspectos semelhantes do primeiro conto do volume. Tem-se, agora, as lembranças de um adulto que remontam aos treze anos. Fala da infância, do início da adolescência, do sentimento do amor juvenil, da competição pelo mesmo ser amoroso, dos sobressaltos, dos medos, das incompreensões nunca aclaradas ainda que pelo distanciamento temporal e amadurecimento do adulto. Tanto é que o narrador, aqui e ali, recorre à palavra “vagueza” ou suas derivadas ou sinônimas (e isso vale praticamente para o livro todo). 

O conto oscila entre o passado e o presente do narrador. Ou seja, as recordações se tornam novamente vivas na elucidação do presente do jovem adulto da Teresina moderna. 

Durante o fechamento de um sinal de trânsito, no seu carro, passa em revista as mais enternecidas passagens de sua infância e adolescência no interior, Água Branca, que, a caminho do trabalho, na cidade de Teresina, já com traços de cidade grande.

Neste vaivém de reminiscências e sobressaltos existenciais, o jovem adulto retorna ao presente tão ao logo abre o sinal de trânsito. Suas reflexões, sempre pontuadas pelos elucubrações de natureza existencial e vincadas de frases sentenciosas, conceituais, se concentra numa espécie de surda denúncia de modos e estilos da vida moderna, vida pautada pelos meios eletrônicos, pelo sensacionalismo das mídias, pelo universos virtual. Seu tom é de franca crítica à vulgaridade da sociedade de espetáculos, disfarces do marketing e da publicidade, espaço artístico sem sentido e vazio.

A narrativa reveste, então, ares de montagem, de fusão de realidades artificiais. O exemplo mais contundente é sua clara referência ao programa de TV BBB - fonte de hedonismo oco e disparatado conduzindo massas amorfas e alienadas. Parte de uma seção, a quinta do conto, com evidentes[18] vestígios de pós-modernidade, é uma contundente denúncia a esta nova modernidade que mistura o profano e o sagrado. Daí o clamor do narrador invocando figuras de destaque do Velho Testamento em tempos apocalípticos. É curiosa a inclusão nesta seção de palavras da língua inglesa que reforçam o traço globalizante das imitações midiáticas ao mesmo tempo que são lembradas cenas de horrores de guerras e mortos, de refugiados. O texto, assim manejado habilidosamente pelo narrador, junta objetos difusos e díspares, num caldeirão semântico e conceitual que nos desconcerta pelo impacto que pode ter o leitor em termos de comunicação literária.

Não deixa esta seção de ser um belo libelo (valem a rima e o oximoro, por coincidência em consonância com o espírito geral deste conto) contra os tempos(templos) atuais em qualquer cidade contaminada pelos big brothers do capitalismo devorador da multidões famintas de consumo e de entretenimento que estiolam a inteligência da massa de espectadores de programas de baixo nível da televisão brasileira, fenômeno que, aliás, não é privativo de nosso país. 

Os períodos finais desta narrativa retomam as lembranças do pai e, como sempre, as aporias prevalecem, dando apenas uma posta final na hermenêutica da obra, que não deixa de ser uma epifania à criação literária: “Retorno a casas, vivo minha pior bondade, pois – sem paradeiro – descubro o caminho.”[19] Este epílogo, em parte, já se tinha anunciado naquela nota “Aos outros.” [20]

Uma palavra ao autor não deixaria por menos: se a posse dos segredos da ficção aponta para novas excursões, que o autor, sem se desviar de seu estilo de escrita, saiba também penetrar no mundo ficcional por caminhos renovados que não percam um pouco da chama ardente das grandes lições das narrativas da tradição literária. 

Que, não abdicando da originalidade de sua escrita, possa seduzir os leitores a veredas que ainda acenam a um bom enredo a despeito dos experimentalismos necessários à oxigenação da narrativa contemporânea. Basta descer um pouco na escala do hermetismo e a estrada do imaginário lhe estará aberta e lhe será bem-vinda.

[1] MONTEIRO, Geovane Fernandes. Paradeiro. Introdução de Perce Polegatto e orelhas do editor.Teresina: Nova Aliança, 2016, 104 p,
[2] GRAY, Matin. A dictionary of literary terms. 2nd edition. Essex:, EnglandLongman York Press, 1994, p. 206.
[3] MONTEIRO, Geovanne Fernandes. Idem, p. 23.
[4] Ibidem. .
[5] Idem, p. 75.
[6] Idem, p.20.
[7] Idem, p.25.
[8] Idem, p. 38.
[9] Idem, p. 71.
[10] Apud PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. 2 ed.rev. . e ampl.Rio de Janeiro: Presença, 1985, p. 288.
[11] Idem, p. 13.
[12] Idem, p. 91 -102.
[13] Idem, p. 84.
[14] CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT. Alain. Dicionário de símbolos. 8 ed. rev.. e aumentada. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994. Trad. de Vera da Costa e Silva, Raul de Sá Barbosa, Angela Melim e Lúcia Melim. Verbete "pedra", p. 696..
[15] CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, p. 88-89.
[16] ANDRADE, Carlos Drummond de. “No meio do caminho”. In: __. Poesia e prosa. Rio de Janeiro. Editora Nova Aguilar, 1983, p. 80
[17] MONTEIRO, Geovane Fernandes, idem, p. 84..
[18] Idem, p. 99-101.
[19] Idem p, 102.
[20] Ver p. 13.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Aldear e Exterminar[1]

Fonte: Google

Aldear e Exterminar[1]

Fonseca Neto[2]

O livro que Reginaldo Miranda nos apresenta neste momento é a segunda edição do seu “Aldeamento dos Acoroás”, originalmente publicado há dez anos. E logo de capa se v. que trata o livro dos chamados índios, forma vocabular esta com a qual se tem designado a população ancestral enfrentada nesta região do orbe desde o início da guerra da colonização europeia. 

Lendo esse livro para dizer palavras a vocês sobre ele, e para melhor organizar a própria leitura, fiz perguntas a seu autor, e entre elas, uma que diz respeito ao ato escritor da história, propriamente, portanto atinente ao método de fazê-lo: como e o que escrever sobre um povo que teve a sua existência roubada, sobretudo não deixando herança material, como expecta o cânone historiográfico assentado, e também não deixando a narrativa de sua presença gravada em suporte de escrita? Quais possibilidades, então, de fazê-lo, ante esse vazio? Ou esse vazio seria apenas construção emanada de uma vontade deliberada de ocultamento? E a memória? 

Mais duas perguntas fiz – e perguntar não ofende: ao historiador cabe fazer perguntas às coisas que o tempo lavrou e que estão por aí vagando no espaço da materialidade e até nos potenciais ainda infindos do imaterial? E com efeito o historiador “interpreta” as respostas ou cabe-lhe apenas fazer o relatório do que sua vista objetou ou tenha lido no suporte de escrita anterior? 


Não tenho e desconfio que não há respostas cabais sobre essas questões. Há, porém, a elaboração historiográfica sobre índios. E o autor deste “Aldeamento” inscreveu-se entre os que partiram em busca de algumas respostas, e seu texto, organizado nestas oitenta páginas, são a narrativa que conosco compartilha do que obteve.

Minhas próprias perguntas a ele foram motivadas por asseverações que – por exemplo –, faz Pierre Nora, num instigante esforço de distinguir “história” e “memória”. 

“A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memoria é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é efetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história, porque experiência intelectual e laicizante, demanda análise, discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwarchs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem, que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe confere uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo.
No coração da história trabalha um criticismo destruidor de memória espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la e a repelir. A história é deslegitimação do passado vivido. No horizonte das cidades de história, nos limites de um mundo completamente historicizado, haveria dessacralização última e definitiva.”


Acoroás: sim, nosso autor os reconhece como um povo que vivia nestas terras desde uns 650 anos antes do início da guerra da colonização que praticamente os suprimiu. É sabido que este espaço hoje geograficamente chamado de “vale do rio Parnaíba”, “vale do rio Tocantins” é habitado há cerca de 500 séculos,[3] segundo as mais adiantadas datações da equipe liderada por Niède Guidón. Os grupos humanos atacados nesta zona do mundo a partir da segunda metade do século XV – os acoroás um deles –, são parte de um movimento de migrações milenares sobre a face fértil da terra construindo a experiência de viver, de sobreviver.

Pelas balizas de sua busca, Miranda os localiza, já estropiados e já decorridos 150 anos da guerra aberta que contra eles e outros se travara neste vale do rio que chamavam então de Punaré. Cento e cinquenta anos de uma guerra que encontrou a mais eloquente resistência dos atacados, no pleno exercício daquele direito há milênios consagrado: o imperativo da resistência e o direito à insurgência contra a tirania. Ele os localiza num “aldeamento”, à beira de um riacho a que chamarão de Mulato. 

Acoroás num aldeamento. Aldeamento que o autor diz que era um “verdadeiro campo de concentração”, portanto, um lugar de “confinamento”, “vigiado por soldados”, condição de recluso que deveria propiciar o roubo, pelo agressor, em primeiro lugar, de sua força de trabalho, ao mesmo tempo, despojar-lhes de sua cultura, do próprio significado de viver; no limite, de sua condição humana, de sua humanidade.

Mas “campo de concentração” não é coisa do tempo de füher do III Reich? Não é coisa do século XX? O autor pode fazer essa comparação? Não era outro o contexto? Claro que pode fazer a comparação e saber se outro o contexto depende das referências de quem está pesquisando e escrevendo. 

Há duas semanas, um grupo de manifestantes, declarando-se defensores da causa da vida animal, entraram e livraram do confinamento 172 cachorros, em São Paulo, que estavam tendo sua vida manipulada para fins de pesquisas comerciais com vistas à elaboração de novas mercadorias. A notícia disso – aliás, tímida – causou certo impacto nas razões de muita gente. 

Pois vejam estas outras três notícias, as quais foram assim dadas três séculos depois dos acontecimentos narrados, por três conhecidos membros desta Casa de letrados: Odilon Nunes, J. G. Baptista e Joaquim Chaves. Em geral reproduzem os relatos que os próprios matadores fizeram aos seus superiores na ordem legal do tempo. 

“Depois de 6 ou 7 dias de marcha através de caatingas e terras agreste, a rastejar o inimigo, os perseguidores surpreendem a tribo espavorida e faminta e após ligeira escaramuça, subjugam-na, jungindo os guerreiros estropiados e decorridos dois dias, sob fútil pretexto, degolam 400 e reduzem à escravidão mulheres e crianças. Era 1º de junho de 1676.
O local da carnificina dos pobres indígenas a 6 ou 7 dias da foz do Salitre, ficava bem longe do rio Gurgueia, todavia, se não na bacia do Parnaíba, pelo menos, bem perto dos tributários do Canindé, especialmente do rio Piauí. Teriam dessa vez ultrapassado o divisor das águas? Provavelmente, como da vez primeira. Quatro meses após, já D. Pedro de Almeida, Governador de Pernambuco, concede as primeiras sesmarias em território piauiense a Domingos Afonso Sertão, Julião Afonso Serra, Francisco Dias de Ávila e Bernardo Pereira Gago, de dez léguas de terras em quadro a cada um, nas margens do Gurgueia. Pediram-nas em Olinda, porque a região ficava na jurisdição de Pernambuco, isto é, nos sertões que se estendem da margem esquerda do São Francisco, em rumo do ocidente”.[4]
“Daí por diante não houve mais tréguas na luta com o selvagem.
Em 1679, os Tremembés haviam fechado o caminho que ligava o Maranhão ao Ceará, na zona da costa. Faziam mais: matavam os pobres náufragos que, escapando às águas, buscavam salvação e refúgio nas ilhas do delta do Parnaíba. Contra eles foi enviada a expedição de Vital Maciel Parente. Os selvagens foram surpreendidos nalgum ponto da costa, do lado do Piauí, e facilmente desbaratados. Mas o branco civilizado enodoou a vitória com um ato repugnante de selvageria: conseguiu que os índios aliados exterminassem brutalmente as crianças tremembés aprisionadas. É o próprio Governador, Inácio Coelho da Silva, que relata o nefando crime, em carta, para o príncipe regente: ‘Os índios aliados, travando das criancinhas pelos pés, mataram-nas cruelmente, dando-lhes com as cabecinhas pelos troncos das árvores, e de uma maloca, de mais de 300 só escaparam 37 inocentes’.”[5]

“1700 – 400 Paiacus são dizimados por Morais Navarro. O padre João Tavares faz a paz com os Barbados e Tremembés. Alguns índios são aldeados no Itapicum: São Barbados, Guanarés e Aroás. 1713 – Levante geral dos selvagens. Índios indeterminados matam [o mestre de campo Antonio da Cunha] Souto Maior e Tomás Vale... 1716 – Nova luta acontece no Porto das Barcas. [Mandu] Ladino cai no rio e é assassinado por Manoel Peres, soldado. Outra versão dá este fato como acontecido em 1718. Dias de Siqueira liquida os Cariris, na ribeira do Itaim”.[6]

Importa mais perguntar, no entanto: por que o confinamento dos cachorros de hoje gera mais indignação no coração de muita gente do que o relato dessas vidas roubadas de gueguês e acoroás? 

Há quem tenha uma resposta na ponta da língua: “era outra lei e outra ética” e não poderíamos analisar/interpretar esse passado com a “ética” do presente. Esse pensar é uma espécie de “amortecedor” ante os abalos eventualmente produzidos pelos cobros da consciência – trata-se de uma fala embasada numa espécie de furor ideológico dos mais tendentes à conservação, e até dos reacionários, daquele tipo que governa o juízo dos que morrem de amor pela história, mas que se enfurecem quando levanta ela a sua espada em fogo e em sua relatividade vingadora. Digo mais que essa guerra para escravizar índios e se apropriar das terras em que eles viviam não tinha nada de autorizada na lei do tempo – o que havia era uma estrutura iníqua de manipulação do poder, pela ganância do enriquecimento de poucos à custa do trabalho e da vida de muitos. Mas aí de novo se vai redarguir: “mas a escravidão também era normal...”. Qual normalidade? Qualquer manual de história da Europa mostra que em 1772, ano da reclusão dos acoroás, a escravidão naquele território já estava fora da lei. E por que esse é um tempo de grande expansão da hediondez escravista por aqui?

Reginaldo traz evidências da mobilizadora ganância de um desses funcionários da carreira militar que reprimia os índios, rumo às supostas minas de ouro dos goiazes. Ora, para enriquecer, ele passaria por cima, como de fato passou, de qualquer escrúpulo, lei. Lei? “Ora a lei”. 

Nesse sentido, repugnante o extermínio já à época – poderia citar várias leis restritivas atinentes –, lembre-se que a “legitimidade” desses acontecimentos é uma criação historiográfica de escritores que concordam, no próprio tempo em que escreveram, com a “naturalidade”, “justeza”, da guerra desse tempo. Tempo que não existe mais, mas existentes, e insistentes, até como que “naturais”, as estruturas urdidas em leis não revogadas, impedidas de o serem, pela força bruta dos que não querem que a sociedade em seu conjunto alcance o viver justo. Aliás, repita-se, o afirmado acima de que “A história, porque experiência intelectual e laicizante, demanda análise, discurso crítico... A história é deslegitimação do passado vivido...”.

O livro do acadêmico Reginaldo Miranda ilustra para nós a maneira como funcionava esses aldeamentos da segunda metade do século XVIII na América Portuguesa. Tem a vantagem de exprimir um exame com lentes bem próximas do dia-a-dia de um desses “verdadeiros campos de concentração” – bem caracterizados como campos de trabalhos forçados –, assim experiência espantosa, como já dito, de extermínio de uma fração da humanidade, sem conceder-lha nenhum tipo de direito à defesa. Mostra bem o processo de escolha política dos diretores, as regras do confinamento, a “educação”, a agressão da vestimenta. E o autor não alude, mas lembro que certamente das desgraças maiores para os aldeados nessas prisões, tenha sido a obrigação de aprender a moral dos imoralíssimos algozes quanto a ter vergonha de suas vergonhas, naquele sentido do escriba deslumbrado Pero Caminha.

Reginaldo utiliza o termo “indiocídio”; impressiona o dia-a-dia da resistência: na conduta dos confinados, aquela compulsão da liberdade se manifesta em todos os instantes daquela roça-cadeia a céu aberto.

Lido em diálogo com a primeira parte do recém-relançado “São Gonçalo do Amarante”, “Aldeamento dos Acoroás” permite-nos, leitores, e pesquisadores outros de suas pistas, exemplo único em nossa historiografia mais recorrente, local e até brasileira, enxergar, como o projeto de Sebastião de Melo, o Oeiras-Pombal, expresso no Diretório de 3 de maio de 1757, se fez acontecer, no pós-jesuitismo setecentista. 

Regeneração é única cidade piauiense que tem seu organismo, morfológico, institucional, étnico, explicado desde o se aparecimento. Dependendo de que tipo de cidadão se queira erguer numa criança, por exemplo, essa cidade poderia ensinar o significado de existir numa cidade cuja origem é o que nosso autor – e eu concordo com ele – está chamando de “verdadeiro campo de concentração”.

Muita oportuno o registro, igualmente bem apoiado em fontes, do dia-a-dia do aldeamento, dos atos de corrupção dos funcionários públicos – dir-se-á, funcionários régios – levando índios para casa para servir-lhes como escravos e distribuindo outros por fazendas de apaniguados pela capitania inteira. Isso é assunto daquela época, de imensa atualidade, e prova que, em muitos sentidos, vivemos o contexto das malandragens que aquele tempo engendrou. 

Ler esse ensaio despretensioso é desafiar a alma naquilo que consiste uma tarefa de cidadania que os livros de história ousem respaldar – tornar-se um brasileiro indignado e levado à recusa das misérias de sempre. 

[1] Palestra proferida à guisa de apresentação, por ocasião de seu lançamento, do livro Aldeamento dos Acoroás, na sessão da Academia Piauiense de Letras, havida em 26 de outubro de 2013. Publicado na Revista da APL n.º 72 – ISSN 2236-5036. 

[2] Antonio Fonseca dos Santos Neto, titular da Cadeira 1 da APL. 

[3] PARQUE NACIONAL DA SERRA DA CAPIVARA. O homem. São Raimundo Nonato (PI): Fumdham, 1998, p. 61. 

[4] NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina: Fundapi/FCMC, 2007, p. 88. 

[5] CHAVES, Joaquim. O índio no solo piauiense. In: DIAS, Claudete M. M.; SOUSA, Patrícia de. (organizadoras). História dos índios do Piauí. Teresina: Edufpi, 2011, p. 50. 

[6] BAPTISTA, João Gabriel. Etno-história indígena piauiense. In: DIAS, Claudete M. M.; SOUSA, Patrícia de. (organizadoras). História dos índios do Piauí. Teresina: Edufpi, 2011, p. 148 e 149.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Macacos me mordam!

Fonte: Google

Macacos me mordam!

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

Verão de lascar este segundo semestre de 2016. Nem os ipês floraram, nem chuvinha generosa para despertar os maturis dos cajueiros e mangueiras. O fenômeno vem se repetindo há pouco mais de três anos. A mesma secura de anos atrás, início da década de 1980. Porém 2016 vem exaurindo a última seiva das florestas e quintais. Para completar a dramática paisagem desértica, multiplicam-se queimadas, causadas por instintos selvagens e irracionais.

Meti-me na densa mata de cajueiros e mangueiras, garranchos espinhentos, poucas árvores e arbustos verdejantes, resistentes coqueiros carregados de cachos de babaçus, 15 km de Teresina. Facão, celular, chapéu de palha, 7 da manhã. Abrindo veredas tortuosas, de repente percebi que não acertava caminho de volta. Já passava da 10, cansado, sol ardente, sombras ralas, sedento, garganta seca, perdido. Odor forte de fumaça trazido pelo vento de distantes queimadas apavorava-me. Bando de macacos-prego e soinhos assustados pulavam galhos dos coqueiros com gritinhos afinados e alarmantes. Temi provável ataque. Prece.

Buscava socorro por celular, não atendia. Enfim, o contato: “Estou perdido na mata... avise meus filhos e minha Rita... venham depressa... estou exausto... gritem, e eu retornarei!” Vinte minutos, milagroso encontro, beijos, abraços, louvores aos céus.

Dia seguinte, o fogo devoraria centenas de hectares de mata em toda aquela região. Graças à atuação do Corpo de Bombeiros, do helicóptero e avião em voos rasantes, o inferno virou purgatório.

Dois dias depois,voltei ao local da paisagem cinzenta e desolada. Macacos e soinhos tinham razão para tanta gritaria e desespero. Clamavam socorro, não para me ofender. Além deles, os bem-te-vis, sabiás, rolinhas, mil seres vivos que o Criador enche a natureza para servir de contemplação, e não de holocausto. Logo eu, que desembolso, semanalmente, dinheirinho para lhes distribuir ração, no fundo do quintal. Acordam-me na aurora para o canto de louvor e prece ao Senhor da vida. Chegam, aos bandos, final da tarde, querendo jantar.

Pouco se sabe da origem da expressão, MACACOS ME MORDAM! Em seriado de desenhos da TV, a personagem Popeye usa-a com frequência. Cronista Stanislaw Ponte Preta criou uma história utilizando o mesmo título: um cientista pesquisava macacos, no interior de Minas. Encomendara, por telegrama, centena de símios a criador de Amazonas. Pedido atendido, chegaram muito mais do que o solicitado. O cientista desesperou-se. Os macacos fugiram, invadiram praças e residências, atacavam, famintos.

Macacada assombrada e barulhenta, pulando coqueiros, apavorando-me. Macacos me mordam, se for mentira o que me ocorreu, quando retornei ao local da devastação: descobri restos de cocos roídos. Nossos habitantes da floresta tinham feito a última refeição, antes de partir, sabe Deus para onde. Doeu-me fundo, movido de saudade. Fugiram, talvez para fazer justiça ,com afiados dentes aos assassinos da criação, porquanto, se as leis dos homens não funcionam, a justiça da mãe natureza chega mais cedo que nunca. Repito, macacos me mordam se estou mentindo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

METAPOEMA

Fonte: Google

METAPOEMA

Elmar Carvalho

As meadas e as palavras
são labirintos e teias.
Nelas os poetas se elevam;
nelas as moscas se enleiam
e se debatem em vão.
Os poetas são.
As moscas, não.    

domingo, 20 de novembro de 2016

Seleta Piauiense - Jamerson Lemos

Fonte: Google

NAS RUAS

Jamerson Lemos (1945 - 2008)

não mais voltarei aqui
seguirei as curvas do vento
tentar não tendo
assim eu me perdi

nada do que vi vi
nisso me acalento
foi bom todo momento
vivi

subida descida
noite amanhecida
espuma do Mar

tempo sem bruma
lua me luma
ar   

sábado, 19 de novembro de 2016

Juiz Antônio Oliveira lança livro sobre Ativismo Judicial e Autocontenção




O livro “Jurisdição Constitucional: Diálogos Institucionais como Terceira Via entre o Ativismo e a Autocontenção Judicial”, de autoria do Juiz Auxiliar do Tribunal de Justiça do Piauí, Antônio Oliveira, foi lançado nesta sexta-feira (18). A solenidade aconteceu no auditório do TJ-PI e contou com a presença de magistrados e autoridades.

Com um auditório lotado, a solenidade iniciou-se com uma breve apresentação da temática do livro pelo Desembargador Erivan Lopes, presidente do TJ-PI. “Ainda que não seja de temática inédita, a abordagem de Antônio Oliveira é inovadora, por tratar da seguridade dos direitos fundamentais pelo Poder Judiciário e pelo Poder Legislativo. O diálogo institucional proposto pelo autor segue as tendências de todos os países democráticos do mundo”, afirma Erivan Lopes.

Segundo Antônio Oliveira - autor do livro que foi fruto de sua tese de mestrado, concluída em 2015, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), em Portugal - o livro é destinado aos que desejam entender as tensões existentes num momento em que o Poder Executivo, por temer prejuízos advindos da opinião pública, acaba por relegar ao Poder Judiciário a tomada de decisões polêmicas, frequentemente associadas à seguridade dos Direitos Fundamentais ou a questões de cunho ético e moral.

O livro, ainda de acordo com o autor, busca resgatar todo o contexto histórico do Pós-Guerra no tocante à expansão dos Direitos Fundamentais e, dentre as conclusões, busca propor, tal qual o modelo canadense, o maior diálogo entre os Poderes. “É importante que não haja um poder ou uma instituição estanque, hegemônica, que tenha o poder de dar a última palavra sobre estes direitos”, frisa o juiz.

“Aplaudimos a disponibilidade do colega, ao transformar em livro um assunto que é atual - que é o Ativismo Judicial e a Autocontenção - e queremos incentivar que outros magistrados também deem sua parcela de contribuição, entrando academicamente nestas discussões do Direito”, frisa o juiz Thiago Brandão, presidente eleito da Associação dos Magistrados Piauienses para o próximo triênio.

Após as falas, os convidados – magistrados, servidores do TJ-PI, membros do Ministério Público, advogados, professores, alunos, amigos e familiares de Antônio Oliveira -, puderam receber o autógrafo em seus livros e dar os cumprimentos ao autor.

Fonte: site da AMAPI

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

SOBRE LEITURA


SOBRE LEITURA

Cunha e Silva Filho

Este texto, vou avisando-o, leitor, não visa a dar lições teóricas sobre o assunto nem aqui, no espaço de um crônica, seria conveniente cuidar de um tema tão vasto e variado quanto falar de leitura.

É apenas uma conversa livre, descontraída, sem jargão acadêmico. Leitura simplesmente. Leitura de um texto, de preferência literário, ficcional, poético, dramatúrgicos, memorialísticos, os best-sellers, os de ficção científica, os de humor, quadrinhos, gibis, auto-ajuda, revistas sobre televisão, sobre fofocas da vida de artistas (celebridades), os policiais, ensaístico, críticos, mesmo um texto de jornal, revista, um artigo, um editorial, uma reportagem, uma entrevista escrita, em suma, um texto que seja bem escrito, criativo, o que não quer dizer que seja politicamente correto, normativo, vernacular.

Tampouco do assunto estou excluindo os textos políticos,nacionais, internacionais, regionais nem os históricos, sociológicos, artísticos, filosóficos, científicos, geográficos, antropológicos, de religiões, os educacionais, os didáticos, os de referências, os gramaticais, os linguísticos e suas variações múltiplas e complicadas. 

Com tão amplo espectro de opções textuais, para todos os gostos e tipos de leitores, torna-se árdua a tarefa de saber como iniciar uma discussão que pode ter um cunho frívolo ou pode até ajudar alguém que precise de uma orientação sobre o que ler e o que escrever. 

Se não cometo um deslize informativo, acho que livros de orientação sobre leituras têm muita voga nos EUA. De lá talvez tenham vindo as influências desse tipo de livro. Eu mesmo li alguns de origem americana. Os autores são muitos meticulosos neste aspecto. Eu ainda até escrevi um capítulo de um livro (Breve introdução ao curso de letras: uma orientação (Quártica, 2009) meu sobre o curso de letras em que dou meus palpites e ainda remeto o leitor a cobras desta natureza. Será, me pergunto algo cético, que vale a pena alguém orientar leitores ou estudantes ou o público em geral com algumas dicas propedêuticas sobre assunto de leitura? O último livro discutindo a questão-chave da leitura de que tive notícia foi Como ler livros, de Mortmer J. Adler e Charles Van Doren ( São Paulo: É realização, 2010, 430 p. Trad. de Edward Horst Wolff e Pedro Sette-Câmara).

Não sei, tenho cá minhas dúvidas. Vai ver que nem o autor que escreveu livros deste tipo seguiu os passos dele mesmo ou de outros autores lidos por ele. Tudo pode. Há um distância grande entre o planejado e o realizado na prática. No entanto, é indispensável elaborarem-se projetos, planos, programas, pois tudo isso envolve metodologias, as quais são de suma importância ao o desenvolvimento do conhecimento dos saber humano. 

Em conversa com gente de culturas diversas e de níveis de conhecimento do mais baixo ao mais alto tenho ouvido coisas assim:”Ah, compro um jornal, leio alguns textos que me chamaram a atenção e os outros deixo de lado. Nada achei de tão atraente que me fizesse ler a matéria.” Ao final, praticamente esse leitor, não leu o jornal, cujo destino vai servir para auxiliar no recolhimento do lixo, cobrir a área do tanque para proteger o piso na limpeza da cozinha.

Um outro amigo me diz que, hoje em dia, ninguém quase ler mais nada de importante. Prefere fica mexendo no celular ou brincando com algum jogo eletrônico ou lendo ou até preferindo ler gibis a ler um importante autor, segundo anos atrás me falou um conhecido livreiro do Rio de Janeiro. 

Certa vez, um professor de literatura brasileira desabafou com os seus alunos de doutorado sobre a má vontade de seus alunos de graduação que teriam que ler um livro bem volumoso. “Professor, qual é! Por que não recomenda um livro com menos página? O mestre, um conhecido ensaísta, lhes respondeu amuado: “Logo vocês, estudantes de letras, vêm me dizer que não gostam de ler, têm medo de livros volumosos!!! O mundo está perdido!” - sentenciou ele.

Tenho uma pergunta de alcance geral: será que esta realidade sobre índices de leitura se restringe somente aos leitores comuns, a alguns estudantes ? Não aconteceria com alguns professores de língua portuguesa ou mesmo de literatura? Não acredito que minhas indagações não tenham procedência. Já ouvi histórias em torno desta situação de penúria de leituras da parte de alguns docentes. 

Eu até não os reprovo tanto diante de certas conjunturas de política educacional em que o professor brasileiro se encontrou no passado e no presente. Pressionado por vários fatores negativos, o professor se vê impedido de melhorar o seu cabedal de leituras por falta de tempo, por se sentir desanimado num país em que os governantes pouca atenção dispensam ao magistério, ou melhor, à educação, ao ensino, à aprendizagem, diferente de países como a China, o Japão e mesmo os Estados Unidos e outra nações bem adiantadas. 

Eu próprio soube por minha esposa que, anos atrás, indo ela à Secretaria Municipal do Rio de Janeiro levar alguns documentos meus a fim de ser beneficiado por alguma vantagem salarial (curriculum vitae, certificados de cursos, presença em seminários, congressos etc) e conversando com uma professora, desta ouviu esta pérola: “Mas, por que o seu marido faz tantos cursos? Não servem pra nada.” Mal sabia ela que aqueles cursos, aqueles certificados, aqueles seminários me seriam de muito valia nos anos seguintes. Com uma mentalidade tacanha daquela professora jamais poderá um país atingir um elevado nível de ensino e de educação. 

Pelo andar da carruagem, o leitor pode perceber que a leitura é um instrumento formidável de progresso intelectual e de realização profissional. Neste sentido, deixo implícito o quanto a leitura serve ao estudioso e só com muita leitura é possível sair da mediocridade. Não tenho pejo de afirmar que sou mais um leitor intensivo do que compulsivo. Admiro os compulsivos, mas cada livro que li, o fiz com critério, profundidade e paixão. Francamente, lhe declaro que todos nós temos gaps de leituras que não fizemos no passado, na mocidade. Entretanto, na medida do possível, aos poucos vamos completando as nossas deficiências e lendo aqueles autores que, por um circunstância ou outra, deixamos de ler nas mais férteis fases de nossas vidas: a juventude, a mocidade.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Histórias de Évora - Capítulo XXX


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXX

Dança e namoro

Elmar Carvalho

No sábado, conforme combinado no balneário, Marcos se preparou para ir à festa no Évora Clube. Sua mãe lhe entregou uma pequena quantia, suficiente apenas para o bilhete de entrada, alguns refrigerantes e, no máximo, três cervejas.

Seguiu para o bar do Zé Afonso, onde já estavam Mário Cunha e Fabrício, bebericando umas cubas-libres, preparadas por eles mesmos (com mais ou menos coca, com mais ou menos limão), conforme o gosto de cada um, no Cantinho dos Inocentes. Faziam a chamada base ou preliminar para as poucas cervejas que tomariam no clube, no intervalo das danças.

Quando terminaram o litro de rum, já quase no horário marcado para o início do baile, seguiram para o centro, não sem antes fazerem uma entrada estratégica na Zona Planetária, como se fosse uma batida de vistoria ou de reconhecimento. Os prostíbulos estavam animados, com muitas raparigas, fregueses e curiosos. As mulheres expunham suas carnes em varais de açougues imaginários, como disse certo poeta, referindo-se a esse meretrício de nome tão sugestivo, quanto poético e apropriado.

O grande cantor de bolero Roberto Müller se esgoelava na vitrola em alto volume. Os copos de cerveja sobre a mesa eram o cenário perfeito para a música que ele cantava, sucesso absoluto nos lupanares da cidade: “Entre espumas”. Os rapazes pouco demoraram. O que mais lhes interessava eram as namoradas, ninfetas em flor, que poderiam conquistar na festa.

Marcos não era um bom dançarino, mas, de qualquer modo, nenhuma garota reclamara, até então, de sua performance. Na verdade, ele usava a dança para arranjar namorada, sem maior compromisso e sem risco de vexame, já que desnecessária a costumeira “cantada”, que sempre poderia redundar em um “fora”. Conforme o modo como a garota se lhe aconchegasse, ele saberia se a conquista seria “tiro e queda”, como gostava de dizer.

Se ela aceitasse o aconchego, o enlace dos braços e o afago das mãos a deslizarem em suas costas e cintura, era porque “estava a fim”. Ele, em consequência, a convidaria a irem para a praça, a pretexto de que fazia muito calor, o que de fato era verdade, pois o clube não era climatizado.

Se acaso houvesse recusa, isso não seria entendido como “levar um fora”, já que não a pedira em namoro. Na praça, longe das vistas de curiosos, encostado em uma árvore, canteiro ou mureta, o casal se esbaldaria em abraços apertados, carícias calientes, em escaldantes e invasivos beijos na boca. Era o que se chamava, na gíria dos jovens da época, pinar ou “dar um pino”.

Às vezes a moça, dadivosa, pródiga em amabilidades, quando não havia ninguém por perto, deixava o rapaz lhe tocar os seios, por cima da roupa. Em raras ocasiões, no calor da excitação, a medo, com certa relutância e muita cautela, o que concorria para mais valorizar o ato dadivoso, a garota consentia em ofertar os seios, e os exibia como duas joias preciosas e delicadas; mas, ao menor sinal de passos ou aproximação de alguma pessoa, os recolhia com incrível rapidez e perícia.

O rapaz, ao vê-los túmidos, hígidos, empinados, com a auréola eriçada e os mamilos ressaltados, tinha um verdadeiro alumbramento. E os tocava e beijava com sofreguidão, com a adrenalina a todo vapor, quase como se estivesse a cometer um crime, embora com a permissão relutante e medrosa da “vítima”.

Marcos já possuía essa experiência, desde que fizera dezesseis anos. Porém, em nome de sua liberdade, nunca firmava compromisso para novos encontros com a parceira, conquanto isso pudesse acontecer ao sabor de novas festas e do acaso. Portanto, já praticava o que hoje se chama “ficar”. Contudo, pressentia que, desta feita, haveria certo compromisso, e que certa fidelidade ou exclusividade lhe seria exigida.

Laura, com seu jeito sério, compenetrado, não aceitaria ser mero desfrute de quem quer que fosse. O rapaz logo a enxergou, sentada a uma das mesas do amplo saguão, com três amigas. Foi ao bar, com Fabrício e Mário, onde tomou dois copos de cerveja, a pretexto de criar coragem. Em seguida, se dirigiu até onde a jovem estava. Sem rodeios, a convidou para dançar.


Ela sorriu em cumprimento, e se levantou, sem pressa, mas sem se fazer de difícil. Encaminhou-se em passos lentos, elegantes e firmes até a pista de dança. Marcos a acompanhou, enquanto lhe admirava as belas curvas, que o vestuário, embora discreto, tão bem acentuava.