sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A INFÂNCIA E O CHAMBRE


Jacob Fortes

Dentre as reminiscências da infância adesivadas ao meu cangote, subsiste aquela relativa ao chambre.

Mal o sol desfalecia as galinhas, com o desassossego de quem pede repouso, alçavam-se ao poleiro. Sequentemente, a meninada, de corpos fatigados por um longo dia de excitação de ânimo, também se empoleirava nas suas redes. Antes de entregar-se à rede, era preciso vestir o chambre, providencia inescusável na forma do disciplinamento severo de dona Luiza (Lulu). Esses chambres, mais das vezes encardidos, permaneciam encafuados nas respectivas maqueiras, suspensas, até que os seus ocupantes chegassem. Ocupantes que preferiam permanecer entre os adultos, tentavam resistir ao sono, mas este, indômito, tomava-os de assalto, maiormente os miúdos. Era a rotina do dia após dia.

Ainda que nem todos apreciem a unanimidade, parece inequívoco dizer-se que há três conjuntos de seres unânimes no concernente ao horário de dormir: galinhas, meninos e idosos. A propósito, lembro que, naquele tempo, num lugar recôndito chamado “Serra do Veludo”, habitava um casal de idosos, seu João Pele e dona Zezé Pote, adotivos de uma menina de nome Cincinata, que atendia pelo apelido de bombom, tamanho sua devoção por balinhas, desde o seio. Diariamente, no turvar do vespertino, seu João, vista estiolada, perguntava: “Bombom, espie se as galinhas estão subindo”.

Finda aquela noite — feita tanto para o sono quanto para arrebatar a paz e o sossego —, recomeçava a inquietação da meninada ao estilo de folha seca ao vento. O primeiro alvoroço, em júbilo, irrompia lá fora, na fronde do arvoredo, sob a batuta dos chicos-pretos. Preferiam as partes altas, os paus-d’arco, porém, existiam figueiras ramalhudas, jurema-branca, um cardeiro vetusto, imponente, além de outros vegetais infantes.

Se, de um lado, a meninada travessa vivia sob o desfavor do banco do atraso, de outro, era agraciada com uma universidade de favores: brincadeiras intérminas; despensa assinalada por abastos copiosos: sacas de arroz, de feijão, de milho, varal de carne seca, gamelas repletas de toucinho, tina de barro abarrotada de coalhada e aprovisionamentos outros, típicos de quem, respirando a cultura do couro, vive imerso na lida do gado, ovelha e bode.

Os chambres, que ultrapassavam os joelhos, indo até o meio da canela, eram confeccionados de maneira rudimentar: em morim branco, para os meninos; em chita ramada, para as meninas. Nem diga ao leitor, por ser motivo de constrangimento, o quanto os chambres, sobretudo dos miúdos, exalavam um cheiro forte, fazendo lembrar aquele líquido próprio de quem, sob a letargia do sono profundo, perde a capacidade de exercer o controle das necessidades expulsórias do corpo.

Mas as mutações, imposição do progresso tecnológico e social, abreviaram a existência dos chambres: vigeram apenas enquanto durou o calendário da infância.

Insepultos na memória, os chambres exprimem a mostra das usanças de outros tempos, hoje ignoradas. Na necrópole da desusança vê-se o jazigo do chambre, do carro de boio, do cavalo, das ferramentas rudimentares e tantos outros. Vê-se, também, logo adiante, uma campa cujo epitáfio, indistinto, não permite afirmação categórica, mas faz crer tratar-se da virtude. Aquela aludida por Rui em tom pesaroso: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

Água e sabão limpam as vestes apossadas de sujeira, inclusive o chambre, mas não a sujidade e a má fama dos desapossados de honra.      

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

AS DÁDIVAS DO POETA


Poeta Cleyson Gomes
Escultura feita por Braga Tepi


30 de janeiro

AS DÁDIVAS DO POETA

Elmar Carvalho

Por esses dias, recebi a visita dos jovens poetas Walter Lima e Cleyson Gomes. O primeiro, de férias, veio de São Paulo visitar seus parentes e amigos; o segundo, além de lhe fazer companhia, colheu a oportunidade para que nos conhecêssemos pessoalmente. Walter é um leitor apurado, percuciente, e que não perde tempo com autores que reputa de pequeno valor artístico. Garimpador de sebos, tem encontrado obras importantes e muitas vezes desconhecidas pelo chamado grande público. Poeta talentoso, sobre ele já me reportei neste diário.

Sempre que vem ao Piauí, gosta de visitar os literatos pelos quais nutre amizade e consideração. Além da visita e de suas alvíssaras, Walter Lima ainda me trazia dádivas. E as dádivas de um poeta outras não poderiam ser senão livros. Declino-lhes os títulos e autores: A forma do silêncio, Fios de luz, aromas vivos: leitura de “Retrato de Mãe, de Jorge Tufic” e Os maribondos de fogo, respectivamente da autoria de Wilson Rocha, Rogel Samuel e José Sarney. Fico feliz em fazer parte do seu seleto e restrito rol de amigos.

Conhecia Cleyson Gomes apenas de nome, de alguns poucos textos de sua lavra e através de referências do Walter. Conversamos sobre cultura, livros e poetas, no alpendre de nossa casa. Mostrei-lhes alguns poucos quadros e objetos que a guarnecem. Fiz questão de ofertar aos dois vates livros de minha autoria, de que ainda posso dispor, sem comprometer minha reserva técnica, digamos assim.

Para minha grande surpresa, quase diria perplexidade, Cleyson Gomes disse já ter em sua biblioteca todos os meus livros, com que iria lhe presentear. Intrigado, perguntei-lhe como os adquirira. Respondeu-me que os comprara em livrarias ou sebos locais. Devo dizer que isso, conquanto não fosse propriamente um elogio, foi, para mim, uma das maiores referências elogiosas que já recebi.

Somente um significativo apreço poderia fazer uma pessoa, que sequer me conhecia pessoalmente, se dar ao trabalho de ir procurar livros e opúsculos deste humilde escriba. De certa forma, observadas as proporções, considerei o fato algo semelhante ao sucedido ao nosso poeta maior Da Costa e Silva, que consignava como um dos maiores elogios que já obtivera a circunstância de que um larápio, ao roubar uma livraria do Recife, ter subtraído unicamente uma obra de sua lavra.

Talvez a título de explicação, confessou-me ele que, quando mais novo, na qualidade de campomaiorense e estudante do curso superior de Letras, procurava saber quais seriam os principais literatos de sua terra natal. Procurou informar-se sobre isso com a sua professora universitária, que lhe indicou alguns nomes, entre os quais o deste diarista. Com essa informação, o poeta Cleyson procurou adquirir livros de minha autoria, como já dito acima. Para honra minha, descobriu em meus textos qualidades que lhe mereceram leitura cuidadosa e algumas releituras.


Pela conversa que tive com os poetas que me visitaram, logo percebi que o meu conterrâneo Cleyson Gomes é um intelectual antenado com a produção poética contemporânea, mas sem perder de vista a contribuição dos grandes mestres do passado. Mormente se considerarmos a sua juventude, sem dúvida é um erudito e amante da literatura. Merecer a sua leitura atenta me vale mais do que certas honrarias, porque demonstra o seu interesse e apreço pela minha (pálida) poesia. Que mais dizer? Nada mais a dizer, tudo a agradecer.     

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Posse da nova Diretoria da Academia Piauiense de Letras


Será hoje a posse da nova diretoria da Academia Piauiense de Letras.

A solenidade acontecerá na Assembleia Legislativa do Estado Piauí, no Cine-Teatro, às 19 horas.

A diretoria está assim constituída:

Presidente: Nelson Nery Costa
Vice-presidente: Oton Mário José Lustosa Torres
Secretário geral: Herculano Moraes da Silva Filho
1º Secretário: José Elmar de Mélo Carvalho
2º Secretário: Humberto Soares Guimarães
Tesoureiro: Wilson Nunes Brandão      

O assassínio de um professor de inglês

Foto meramente ilustrativa

Cunha  e Silva Filho


                 Não anotei  o nome dele. Sei que tinha  45 anos, um jovem ainda na flor da mocidade  produtiva, morto a tiros  por uma bandido  “cruel.” Estou  usando uma palavra de um delegado  onde  o fato  deplorável  foi registrado. Este marginal, com antecedentes criminais, ou seja,  era um delinquente, um  menor há um ano.
Segundo  declarações do delegado,  este energúmeno, que  tem atitudes  frias e uma  fisionomia  na qual  os  olhos indicam  o que lhe ia  no íntimo de sua alma perdida, aproveitou-se do fato  surpresa e tirou a vida  de quem   estava  no exercício de sua  profissão,  certamente  um professor  eu complementava  seu salário  com aulas  particulares, pois era isso mesmo que  o  mestre de inglês ia  fazer.
Estacionou numa das ruas de São Paulo e,  quando se  preparava  para   deixar seu carro  perto  da casa onde  daria uma aula,   de repente  vê na sua  frente  um espírito das trevas mefistofélicas que lhe exige  o carro e talvez  alguma coisa mais. O professor,  tendo  saído do carro,  num  átimo  de reação  mecânica,    não  se intimidou  e entrou  em luta corporal com  o meliante, predador  noturno  da vida  paulistana,  mais uma dessas  feras  (des)umanas espalhadas atualmente  pelas  ruas  da  trepidante  e sempre  perigosa   capital   paulista, a maior  cidade  da América  Latina.
 Lutou  por pouco  tempo com  o facínora que, talvez mais  habilidoso  e sendo mais  novo,  levou a melhor,  acertando, creio que à queima-roupa,  o peito e outras duas   regiões do corpo  do  jovem  professor. Foram, se não me  engano,  cinco tiros. Morte  imediata. 
Uma vida  encurtada  pela  impunidade  brasileira, pelo  código  penal superado,  pelas brechas    imorais de  nossa  legislação,  pela  desídia  de  nossa estrutura  jurídica de todas  os níveis da Federação e pela ausência  de medidas  governamentais  decisivas  a favor de mudanças    concretas   e duradouras. São   
Paulo agoniza não só nas  águas tempestuosas das inundações anuais e  mortais, atingindo, sem piedade,  sobretudo  as camadas  desfavorecidas da população,    mas também  no crime  impune  e  contínuo.
São Paulo, por suas qualidades,  que são  muitas,   e por seus defeitos  que  igualmente são inúmeros,  abriga   cotidianamente  todo  tipo de crimes e selvagerias  praticadas contra  seus  habitantes que,  além disso,  ainda têm  que enfrentar  uma  vida  árdua nos transportes  precários.
 Com demagógicas promessas de seus  governos  estadual e municipal de melhorarem    a qualidade   da educação pública sempre adiada, com    seus hospitais  sem condições de atender  à demanda gigantesca   de  milhões  de seus habitantes, com seus   moradores  pobres  sem  teto  ou  vivendo   em  favelas  da periferia, fruto dos  desníveis   sociais,  São Paulo  atingiu  seus limites  de resistência e, assim , clama  por mudanças  inadiáveis sob pena  de  ter que  enfrentar  a indignação   da sociedade.
São Paulo  e seus  quatrocentos e sessenta anos  de fundação em  25  de janeiro de 1554, tendo à frente a colaboração decisiva de dois eminentes  padres jesuítas, Nóbrega e Anchieta, o  Apóstolo  do Brasil. A São Paulo de hoje, ameaçadora  e a do passado, dos primeiros anos  do século anterior.  Triste   contraste!  Esta  última, mais  cordial,  mais  acolhedora,  praticamente  em seu  estado  puro de  província com  problemas, sim,  mas  de  diferente magnitude  e, sobretudo, sem  as agruras   causadas  pela   super-densidade  populacional sem freios, sem  o trânsito   caótico, os  seus ciclópicos engarrafamentos,  os grandes males  sociais que  deslustram  as suas origens histórico-religiosa-culturais, o seu   progresso mais  ordenado, a potência de sua  indústria e comércio, sua vida  universitária, seus centros de estudos, seus museus, enfim,   a sua condição de carro-chefe da economia  brasileira.
             Todo esse imbróglio de   condições  positivas e negativas  perdeu seu controle original,  sua  estrutura   de  grande urbe,  mas  bem  administrada, com   políticos mais   conscientes  de suas funções  públicas  e não  frutos  dos conchavos, compadrios na seleção dos candidatos aos  governos  estadual e municipal  e  truques baixos da  política nacional.
          Além disso,   todos  esses  erros imperdoáveis  das instituições  públicas são  causas  que propiciaram  a invasão do crime galopante, de  marginalidade    certa de que  não será  punida, seja  por  ser composta de menores  meliantes, seja  por  ser  formada  de adultos    irrecuperáveis,  portadores de cérebros  degenerados que não  podem   estar  em  convívio com  a  sociedade.
      São   autores  de  crimes  hediondos,  abomináveis,  de  extrema crueldade  e  frieza de sentimentos. São  do tipo   que  acabou  com a vida  do jovem  professor de inglês,  deixando  uma  viúva  para sempre psicologicamente  destroçada a cuidar  de um bebezinho e de um  filho  pequeno. Mais um número na estatística  da cidade do crime e da  ausência  de punição  de uma espécie que recomendaria sem restrições: a  prisão  perpétua.      

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Valdemir Miranda: Enlace de famílias


Enlace de famílias. Esse é o titulo do novo livro do historiador, advogado e professor Valdemir Miranda de Castro. O livro trata dos imbricamentos familiares de Antônio Carvalho de Almeida e os Castello Branco. Ele traz novidades com registro de sesmarias e muitas novidades colhidas em fontes primárias. O autor consultou livros eclesiásticos, cartoriais e cemitérios de todo o Norte do Piauí, além de ter realizado pesquisas na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Já é possível adquirir cotas do livro, por antecedência pelo e-mail - valdemirmirandacastro@bolcom.br  ou pelo telefone 99059340.

Fonte: Portal Entre-Textos         

domingo, 26 de janeiro de 2014

Seleta Piauiense - Martins Vieira


Promessa Vã

Martins Vieira (1905 - 1984)


O Céu finge que ri; depois, fecha a carranca:

irado, amarfanhando o punho — a renda branca,

disfarça num muxoxo um fuzilar de raio.

O Sol se inclina mais, olhando de soslaio,

e, ouvindo o rataplã dos bombos do infinito,

oculta-se, a fugir, qual um Astro proscrito.





Na cúpula central da Sé da Eternidade

bimbalham carrilhões. Desaba a tempestade.

Mil raios a silvar, cor de aço, coruscantes,

soprando um pleno espaço os cebês trovejantes,

parecem pentear as crinas encrespadas

dos negros esquadrões das nuvens rebeladas.





Vêm elas a rugir. Um furacão sacode-as;

matracam mil trovões, fantásticas rapsódias

por entre o fuzilar de estranhos azorragues:

são raios cor de prata ardendo em ziguezagues,

avisos de Tupã, mostrando Tudo ou Nada

a força sem matéria, à frente da lufada! ...





Começa o crepitar de roucos alaridos,

metálicos, febris, soluços mal sustidos

uivando em derredor. Um arrastar de pesos

no sótão da amplidão vem sacudir retesos

os nervos a fremir, que esperam pela chuva.

Debalde! O Céu se opõe, arremessando a luva...        

sábado, 25 de janeiro de 2014

Disciplina, vitória nos estudos e concursos


José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

          Eu me dei conta da cartinha na gaveta, deixada pela minha filha, Marta Vasconcelos: “Pai, hoje, eu reconheço quanto o senhor tinha razão na sua rígida disciplina. Eu não entendia você, só lhe obedecia por temor: o senhor nos acordava cedo, tomávamos café e tínhamos de ouvir a leitura bíblica e seus chatos conselhos, depois é que íamos à escola; aos domingos, à missa. A gente só tinha direito de ir ao shopping ou a algum show, depois de ler três artigos da revista Veja e elaborar uma redação, sem olhar o texto da revista. Que sufoco!...” Marta, primeiro lugar em concurso no Maranhão, educadora, casamento e família abençoados, marido exemplar e empresário.
          Neste início de ano letivo, solicitei ao secretário de Educação, Átila Lira, que reproduzisse o artigo, “Bagunça Tóxica”, escrita pelo economista Cláudio Moura Castro, da revista Veja, 8 de janeiro, para ser debatido em assembleia de professores, alunos e  pais. Turbulência, licenciosidades, decantados constrangimentos por nonada, direitos e mais direitos vêm encurralando e atemorizando educadores, impossibilitando-os de exercer a autoridade, às vezes, vítimas de linchamento e ações judiciais, perda do emprego, desmoralização na mídia.
          Depois de publicados os resultados do ENEM, um grupo educacional encomendou pesquisa com os alunos classificados dos dez melhores colégios do Brasil. Todos, sem exceção, estudantes, além dos pais, louvaram as regras rígidas do colégio. Escolas religiosas, militares, umas públicas.  
          Na Escandinávia, Alemanha, Inglaterra e gigantes orientais impõem regras severas e punições. Resultado: uma safra de artistas, filósofos, escritores, cientistas, empresários, estadistas e políticos sérios. A palavra punição é proibida, nos projetos pedagógicos, pelo Conselho Estadual de Educação. Ex-seminaristas e estudantes, provenientes de centros católicos e evangélicos, também se destacam em todas as áreas do conhecimento. Segredo? Disciplina, punição, família presente. Minha experiência de sete anos, como professor no Colégio Diocesano, marcou-me enorme satisfação de ver, hoje, expressivos ex-alunos no alto da pirâmide social.
          Em 1968, estudantes universitários, em Paris, realizaram quebra-quebra, ergueram bandeiras, “É Proibido Proibir”, indignados com a severa disciplina escolar. Mais tarde, os baderneiros viraram professores, arrependeram-se do mau exemplo passado às novas gerações de indisciplinados. O movimento, de caráter marxista e ateu, contaminou a América Latina. Difundiu-se uma falsa psicanálise de bulling, constrangimentos, direitos individuais, não-me-toques, beligerância com as autoridades e pais. É o Brasil dos sem horários, sem entrada proibida, dos meus direitos, do “que é que tem?”.   
          Uma juíza processou a escola, porque expôs notas de seu filho no mural do colégio. E se fosse o primeiro classificado? É o ano de1968 rolando nas cabeças de uma esquerda que se impôs no país. Trouxe bons resultados sociais, porém exagerou no conceito de liberdade, ainda engasgado com o regime militar vivido.
          Cartinha, como de Marta, precisa ser escrita. Que tal os rolezinhos, enturmados e exibicionistas, produzirem a sua, distribuírem a cópias em shoppings e na escola? Difícil saber se já passaram da alfabetização.     

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

S. Sebastião, o dono da cidade


Fonseca Neto

Exprime certo tipo de “mito”, sem correspondência na realidade, a impressão de que a Igreja Católica é a grande latifundiária do Brasil. Nunca foi. No entanto, é decisivo o papel dessa antiga instituição na formação territorial urbana brasileira. Veja-se um exemplo, bom de tratar, hoje, dia de São Sebastião.

Lá em Passagem Franca, Maranhão, esta é data de grande festa católica, que até se tornou, também na esfera civil, o mais importante feriado municipal – os mais velhos chamam-no de “dia de preceito”. Tudo para honrar o santo-mártir, que é o padroeiro do lugar, e também, formal e legalmente, o dono da terra urbana e parte de seus arredores, chamadas “terras do santo”. Repita-se, dono (dominus), no sentido jurídico pleno.

Desavisados supunham que tal situação não mais existiria no Brasil desde a proclamação da República, quando se deu a separação do Estado em relação à Igreja. Houve, sim, a separação, mas foi negociada a intocabilidade das propriedades fundiárias da igreja romana. E Rui Barbosa foi o redator do decreto (07.01.1890) que assegurou os direitos eclesiásticos:

Art. 4º Fica extincto o padroado... Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus edificios de culto”.

A cidade de Passagem Franca foi fundada por gente católica e a formação territorial-urbana e municipal ocorreu em torno da igreja: em 1820 iniciou-se a construção da capela e para sua constituição, depois cabeça de freguesia/paróquia, sesmeiros-devotos doaram a São Sebastião parte de suas datas de terra, para verem aceita a postulação de viabilização de sua igreja particular. Assim, o padroeiro passou a ter cerca de meia légua de terras ao redor da capela (depois Matriz), nas ali chamadas “datas” Piaçava, Lagoa do Taboleiro e Saco do Paulo.

De posse de seu patrimônio em terras – excelentes, por sinal – o núcleo original (do que seria, anos mais tarde a cidade) foi crescendo, tornando-se freguesia em 1835 e sede municipal em 1838. E todos os seus moradores sendo habitantes da “terra do padroeiro” – espécie de servos da gleba de São Sebastião, pagando-lhe rendas das produções, esmolas, outros contributos. Transcorreu o século XIX, adentrou-se o século XX e somente em 1980 é que a zona urbana estendeu-se para além do perímetro do senhorio do Santo.

Portanto, desde sua criação, o município e sua vila-cidade, nunca possuíram patrimônio próprio: os milhares de moradores locais são uma espécie de “posseiros do santo”, nenhum tendo titulação definitiva do pedaço que ocupa, consoante os padrões e as solenidades escriturais regulares. Até há bem pouco tempo, a convivência foi totalmente pacífica sob a égide dessa propriedade de “mão morta”, tendo havido apenas (anos 1940) a judicialização de uma disputa com um confrontante e nos últimos dez anos, a prefeitura e particulares invadindo, e arbitrariamente se apropriando, das terras sobrantes do patrimônio da igreja.

Esse exemplo ora caracterizado é comum em muitas cidades brasileiras criadas antes de 1930, quando era obrigado o município ter seu próprio patrimônio para as cessões “de aforamento”. Nos casos em que a sede municipal – caso de Passagem Franca – foi erguida sobre o chão do santo, essa “terra sacra” substituiu, de fato, mas não de direito, a referida função no respectivo assentamento citadino-urbano. Até hoje, nas glebas do santo, quem dá “carta” de uso é o pároco e não o prefeito.

De tudo isso decorreu, historicamente, que muitos municípios simplesmente não seriam criados na época colonial e imperial por não terem patrimônio – por muito tempo dito “patrimônio da câmara”. Por quê? Porque os proprietários das terras dificilmente faziam doação para esse fim, preferindo doá-las, como se viu, para capelas, matrizes e ermidas.

Ao contrário do que um equivocado “iluminismo” prega, “terras de santo” constituem um chão de uso coletivo e espaço de forja da organização urbana e da cidadania no Brasil.  

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Um comentário sobre o texto O Imortal


Um comentário sobre o texto O Imortal

Cunha e Silva Filho

Elmar, acabo de ler seu texto "O imortal" e me pergunto se o mesmo seria um conto. O que sei é que o texto se inscreve na linha de alguns que você tem classificado de composições impulsionadas pela mágica e pelo mistério dos sonhos.

Os sonhos são ora indecifráveis, ora tendem a se associar a alguma coisa que antes consideramos ocorrências e experiências ao nível da realidade empírica.

Entretanto, o seu texto, escrito com tantos detalhes e perfeição, sobretudo na descrição visivelmente plástica, me surpreende como peça literária.

Se você diz que não é um crítico de arte, o texto nega a sua afirmativa, já que a força de sua escrita equivale àquela capacidade que o observador-artista possui na possibilidade de fazer uma leitura objetiva do que vê diante de si.

Esta argúcia do olhar do escritor-poeta diante do analisado, seja um objeto qualquer, seja a figura humana, é que, repito, me deixa intrigado.

Não sei se em alguma parte afirmei que a habilidade de um verdadeiro ficcionista está no seu talento descritivo-narrativo e o texto em exame o demonstra. Você sabe empregar, em doses certas, o que se movimenta (ação narrativa) e o que permanece ou está estático (traço essencial da descrição).


Os poeta, como você e outros (Da Costa e Silva, por exemplo) a meu ver, têm um interesse enorme pelo pormenor, pelo nome das coisas, objetos, cores, sentidos das palavras, mundo animal, vegetal, mineral, o Cosmo enfim. Sem tais talentos, não pode haver ficção genuína, convincente, viva, palpável, visível, que não só a técnica auxilia, mas principalmente o talento e a capacidade de querer o artista, o poeta, o escritor em geral superar-se ao longo de sua experiência com o texto literário, com o conhecimento em geral e com a leitura dos grandes escritores e a experiência haurida na criteriosa observação das obras de artes.   

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O IMORTAL


O IMORTAL (*)

Elmar Carvalho

Eu olhava fixamente para a escultura que encimava o mausoléu. Fora feita à imagem e semelhança do morto ali inumado. A estátua era uma reprodução perfeita do célebre membro da Academia Brasileira de Letras. Parecia uma peça do Museu de Cera de Londres, tal a perfeição como o escritor e laureado poeta fora esculpido. Entretanto, eu podia notar que o material era resistente, podendo ficar exposto de forma contínua à chuva e ao sol. Embora não seja eu um crítico de arte, tinha a certeza de que o artista adotara o estilo e os materiais usados pelos hiperrealistas.

O fardão acadêmico aparentava haver sido feito com um tecido de verdade, tanto pela cor como pelas dobras, assim como também pelo bordado, costura, embainhados, arremates e botões. O espadim acredito fosse o verdadeiro, que o morto orgulhosamente empunhara no dia de sua solenidade de posse. As unhas pareciam de verdade, tal a imitação perfeita da consistência, cor, textura e transparência das verdadeiras. Os olhos aparentemente haviam sido extraídos do defunto, e implantados cuidadosamente na obra de arte.

A estátua fora posta em decúbito dorsal sobre a lápide de granito preto, mas como se estivesse deitada em um estrado mortuário. Dava a impressão de haver sido esculpida de modo autônomo, para somente depois haver sido deitada sobre o leito lapidar. Contudo, ao ser deposta na lápide, ganhara o contorno, formato e deformações que um corpo humano e suas vestes tomariam. Cheguei a pensar que ali estava o próprio cadáver do acadêmico, devidamente mumificado.

Em certo momento, quando fixei o rosto da escultura, admirando-lhe mais uma vez a perfeição do contorno, das feições e órgãos, inclusive das rugas, dos cílios e das sobrancelhas e de um sinal que o morto tinha no canto esquerdo da boca, tive a nítida sensação de que os grandes olhos azuis piscaram. Depois, como não os tenha visto piscar novamente, mentalizei que eu sofrera uma ilusão de ótica ou uma alucinação momentânea.

Porém, quando percebi que o corpo se mexera levemente, como se estivesse procurando uma posição mais confortável, tive um arrepio de medo e deixei o local. Para não correr o risco de me transformar numa estátua de sal, como no episódio bíblico, ou mesmo de outro qualquer material, não olhei para trás, nem mesmo de soslaio. Concluí que talvez a alma do morto tivesse se incorporado na estátua de que fora modelo.


Ou talvez o imortal acadêmico fosse literalmente imortal e a (suposta) estátua fosse o seu corpo.   

(*) Este conto faz parte do livro Arte-fatos oníricos e outros, a ser publicado em formato impresso, oportunamente. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A moça do livro


Cunha e Silva Filho

Estava numa das muitas  filiais de uma  grande  farmácia na Praça  Saens Peña, na Tijuca, velho e  super-povoado   bairro da Zona  Norte do Rio de Janeiro.  Era domingo  de sol a  pino. O relógio digital da  praça registrava  38 graus. Calor  infernal. Até parecia que  andava  pela Av.  Frei Serafim, em Teresina  em pleno  meio-dia de verão brabo.

Dentro da farmácia,  com ar-condicionado, aquele  calor  insuportável. Desde criança,  quando  com mamãe ia ao Mercado  Velho, na Teresina da  primeira metade dos anos cinquenta do século  passado,  me  queixava do “calor  danado.”

Que caiô  danado”!  -  repetia quase  virando  um  estribilho  pra mamãe que nem  estava  ali  para  o meu  desabafo  de  criança irritante. O verão  carioca  semelha, na temperatura, ao calor  infernal  de Teresina. Só de uma  coisa  gosto  do calor: ele me permite  tomar  um  banho  de chuveiro demorado, gostoso,   refrescante, animador e sem ter que ligar  a água  quente.

Enquanto  Elza e Alexandre  compravam  remédios enfrentando  duas filas,  uma para  ser atendido e outra  para  aguardar a chamada  da vez  no caixa, eu  olhava  tudo  ao meu  redor,  pessoas,  as prateleiras  de remédios  bem arrumados, As  molduras  das fotografias em tamanho médio  perspectivando instantâneos de  diversas  décadas  do  século  passado  mostrando  como  era a  Praça  Saens Peña. E como  era diferente em tudo: nos prédios, hoje  desaparecidos,  no coreto  que lá havia em  décadas passadas, nas linhas de trilhos de bonde que  cortavam  ruas  tão   tijucanas  como  a Conde de Bonfim,   a Barão  de Mesquita,  a Avenida  Maracanã, os prédios  onde  se localizavam  cinemas,  os bondes cheios de gente  de  roupas    de  épocas   atrás,  algumas sentadas,  outras,  em pé  nos estribos   dos bondes,  uma  multidão de  anônimos hoje talvez   “dormindo  profundamente”  como  no  belo  poema   de Manuel Bandeira(1886-1968).

Com um olhar apurado,  procurava  divisar  alguma  pessoa  em particular,  a fim de poder  tirar alguma   impressão  do  olhar  dele ou dela. Nas ruas  daqueles   tempos  passados,  viam-se  outras  pessoas  como se delas quisesse eu  também extrair  alguma  informação  do que  pensavam  no momento  em que foram   fotografadas  sem serem  notadas,    anônimos seres  que  jamais  conhecemos  de quem   nunca saberemos   o que foram, o que fizeram,  como  viveram aquelas épocas, o que fizeram  de bom  ou errado,  o que pensavam  da vida e do  futuro. Jamais saberemos.

 Entretanto,  sinto  uma grande e misteriosa  atração  por  esses anônimos de  anos  passados: 1910, 1915, 1927 (Papai,  neste ano ainda  estava no Rio de Janeiro),   1950, 1970. Casas,   contornos das ruas,  formas  de vida,  sociabilidades   diversas, modas,    estilos   de vida, estilos diferentes   de música,  de  dança,  de  teatros,  de filmes. Tudo  passou, ou  melhor,  quase tudo  passou,  pois ainda  alguns traços  de  alguma coisa do passado   teimam em  sobreviver  no  presente.

Inopinadamente,  meu pensamento  suspendeu-se e comecei a   olhar para uma moça  pequena,  clarinha,  de  cabelos  em estilo   dos anos  30 daquelas atrizes    do cinema americano ( ao mesmo tempo, em imagens sobrepostas, aquela moça    me lembrava alguma coisa, não exatamente   pelo corte de cabelo,   das   atrizes  da era  do cinema  mudo,  dos primeiros   filmes de Chaplin, 1889-1977),  por sua vez, copiado  pelas  brasileiras  da mesma época. É só olharmos   para nossas  avós, claro, da minha geração   pelo menos.

Aquela  moça  mignon,  parecida  com uma francesinha   da “Geração  Perdida,” ali  entrava  na farmácia. Mas, entrava  com um arzinho  desconfiado,  alheado de tudo e de todos. O mais  curioso  que nela   observei  foi que andava com os olhos grudados num  livro  pequeno  e aberto pela metade.  Caminhava,   com passo  leves,   e não deixava  de ler  parágrafos   do livro.  Acredito que  era um   romance,  ou  um livro de contos. Pela disposição que  mal   avistei das páginas abertas,   não era  poesia  não, nem tampouco  poesia  concreta,. Era um livro que  segurava com   muita atenção  e com muito   cuidado.

Seu vestido era fino, bem discreto, multicolorido e lhe caía bem  no corpinho  frágil. Ao  reparar no seus  olhos,   vi que não era tão  novinha e tinha  olhos cansados   e   meio arregalados, o que  lhe tirava um  pouco de sua   meiguice geral. O diabo era que ela não dava  bola pra ninguém, mesmo  quando  eu  tentei fixar meus  olhos   nos seus. Ela fingiu que não me viu, ou talvez  não me  viu  mesmo. Não obstante, continuei  seguindo-lhe os passos e ela  prosseguia  lendo o livro  e  andando por boa  parte da farmácia, que,  por sinal,  é ampla  e elegante. Passou  pela  filha  de compra,  pela de pagamento, mas sempre lendo o  livro  absorta,  alheia a  tudo. Parecia aquelas  menininhas   vidradas   nos   livros de  Harry Porter que não  o largam  enquanto  não terminam de ler  a última  página.  

Tendo   pago  a conta com  cartão, tendo  digitado a senha,  ainda  pude  ver que sua atenção maior era  o livro e não os números  do cartão  que  digitou  mecanicamente.  A moça do livro,  então, encaminhou-se – lendo avidamente, sofregamente,  o livro até  sair  da farmácia  e  perder-se na multidão.     

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Sebastião, santo mártir ou mito?


Sebastião, santo mártir ou mito?

José Maria Vasconcelos
Cronista
Josemaria001@hotmail.com

            Sou cético a muitas manifestações milagrosas de santos. Pior, à divinização de mitos e lendas.
             Major Carlos Sales, sacerdote, capelão da Polícia Militar do Piauí. Vozeirão de espantar até microfone: “O Senhor esteja convosco” no  modesto templo da Polícia Militar, acolhe média de cem fiéis. Para minha surpresa, nenhum policial presente. Do altar, o celebrante acena com voz de comando: “Zé, escreve uma crônica sobre São Sebastião!” Claro, major, você merece continência. E assembleia camarada aprovou a ideia.
          20 de janeiro, São Sebastião, festa de arromba e feriado mundo afora: Rio de Janeira, Parnaíba dos capuchinhos da Igreja de São Sebastião, Uruçuí. Centenas de cidades, paróquias, vilas e ruas dedicadas ao jovem, cravado de flechas, amarrado a um poste. Terreiros de Umbanda capricham na homenagem, e homossexuais têm-no padroeiro.
          No império romano, a religiosidade voltava-se para idolatria a deuses-padroeiro de chuva (Júpiter), sexo (Vênus), força física (Marte), bebedeira (Baco), artes e poesia (musas), enraizada em crenças e superstições populares. Com o avanço do cristianismo, pregou-se a fé no Deus invisível. Muitos cristãos convertidos, entre o segundo e terceiro séculos, não se libertavam da idolatria pagã. Substituíam deuses pagãos por heróis e mártires cristãos, em cujas devoções prevaleciam excessos de aclamação, superstições que atravessaram séculos, via cultura popular, e continuam até hoje. Papas, como Sixto IV, tentaram eliminar centenas de santos do calendário litúrgico. João XXIII, pelo Concílio Vaticano II, cassou dezenas, permitindo apenas homenagens regionais. Em respeito a tradições e à cultura popular, certos vigários estimulam a devoção, erguem santuários a mitos, alguns produzidos pelas lendas e fetichismo, a exemplo de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte.
          São Cristóvão, a lenda do homem que teria ajudado uma criança a atravessar o rio e descobriu que era menino Jesus. Nem João XXIII engoliu o xarope, retirando-o do calendário litúrgico. Fantástica lenda de São Jorge, que enfrentara um dragão que engolia gente. Santo Erasmo ou Elmo, bispo de Fornia, Itália, outra lenda. Perseguido, torturado e preso pelo imperador Maximiano. Conta-se que foi libertado da cadeia pelo arcanjo Miguel. Novamente preso, cortaram-lhe os intestinos, virou protetor dos doentes de estômago e de parto. Outro mito, famoso na Itália, São Januário ou Genaro, cujo sangue do martírio se encontra solidificado em duas ampolas conservadas na Catedral de Nápoles. Colocadas ao lado da cabeça do santo, o sangue borbulha, segundo autoridades eclesiásticas. Tentei assistir ao fenômeno, mas me informaram estar fora de época.      
          São Sebastião, francês, residiu na Itália, soldado do exército romano, pela fé em Jesus foi martirizado. Sabe-se sua história através das atas do martírio, que foram escritas só dois séculos mais tarde. Em quase todas as atas de santos, os escribas tinham ordens do imperador para colocar muitos detalhes do martírio e dar pouca ênfase ao martirizado, a fim de assustar futuros cristãos, visto que as atas eram colocadas na cidade onde ocorria o martírio.
          Sebastião, cristão convicto, mesmo cumprindo tarefas militares, não tomava parte nos sacrifícios nem nos atos de idolatria. Sempre que podia, visitava os cristãos encarcerados e ajudava os mais fracos, doentes e necessitados. Soldado dos dois exércitos: o de Cristo e o de Roma. O imperador ordenou uma perseguição e morte aos cristãos de seu exército. Sebastião foi amarrado a um poste, sofreu flechadas dos algozes e abandonado. Irene, sua amiga, vendo-o agonizar, levou-o para casa e lhe tratou as feridas. Curado, regressou ao imperador e assumiu a condição de cristão. Foi executado, imediatamente. Transformou-se em padroeiro dos enfermos; dos homossexuais, por assumir, publicamente, sua condição cristã.

          Mártires e benfeitores sociais despertam condão de simpatia popular, às vezes, sagrada e divinizada. Motorista Gregório, em 1927, involuntariamente, acidentou e matou um filhinho de tenente, o qual, irritado, o amarrou a uma árvore, às margens do Poti, sem comer nem beber, executando-o em seguida. A crença e superstição popular ainda lhe devotam orações e votos. Já já, vem  por aí canonização, santuário e feriado.  

domingo, 19 de janeiro de 2014

Seleta Piauiense - Martins Napoleão


O Poema da Forma Eterna

Martins Napoleão (1903 - 1981)


(Ó infinito sonho!

O grande céu azul desfolhado no espaço!

O homem pequeno e louco

E o barro úmido às mãos do oleiro cego!)





Expressar cada um

O seu minuto culminante de beleza,

O seu instante de bondade extrema,

O seu momento de heroísmo,

Na subitânea íntegra pureza

De uma forma imperecível!

Como o coágulo de luz no diamante sem jaça,

Qual se a gota de orvalho, porventura,

Imagem matinal do sorriso da luz,

Se condenasse repentinamente.





Não a forma perfeita,

Porém aquela, exata e duradoura,

De um ápice de síntese.





Forma que se transfunda, num jato, a substância

De um momento imortal entre dois limites inúteis do tempo fugaz.





Uma forma que seja — nos limites do vário e mutável — perene.

E possa traduzir a integração, a plenitude e a culminância

Do glorioso momento da vida:

O desejo de fixar o efêmero para o tornar eterno.

Como o oleiro inocente, com as mãos carregadas de sonho,

Procurar transmitir ao barro paciente,

Numa manhã feliz em que os deuses se vestem de luz,

O movimento, a vida, a elástica e nervosa agilidade

Da asa de um pássaro voando...





E o pintor, com os olhos impregnados de cores viventes,

Anseia revelar, numa combinação imprevista de tintas,

Em que a luz e a névoa se misturem,

E a virgindade da manhã se case

À difusa tristeza do crepúsculo,

Num tom maravilhoso,

O úmido olhar do amor que pecou por prazer...





E o músico, de coração sangrante de harmonias,

Tenta subjugar, num acorde que encerre

O resumo de todas as únicas notas supremas

Arrancadas das cordas soluçantes

Dos violinos de todos os artistas

Que morreram em êxtase de sonho.





A expressão musical das primeiras estrelas

Que iluminam o silêncio da tarde,

Como lágrimas de adolescentes...





E o atleta, que tem o sentido dos ritmos nos músculos submissos,

Busca perpetuar, numa imagem que esplenda

Clara e vibrátil como uma ode pindárica,

E tenha a assustadora beleza da vitória sobre a morte,

Ao pasmo olhar da multidão de fôlego suspenso,

O salto sobre o abismo.





E o herói, que mede o valor da vida pela beleza oportuna da morte,

Ambiciona cunhar, numa imagem que ostente

O soberano orgulho do desprezo

E a coragem consciente do perigo,

O simbólico exemplo

Do primeiro soldado que tombou

Com um sorriso nos lábios e uma rosa de sangue no peito.





E o santo que transcende as leis humanas

Aspira a eternizar, numa imagem que seja,

A própria infinitude de todos os êxtases

E todas as bondades sem nenhuma recompensa

O gesto irrepetível

Do instante de humildade e de renúncia

Em que se debruçou para beijar o leproso na boca,

Como um lírio num charco...





E o poeta, flauta cheia do sopro divino

Quer reunir, a um acesso instintivo de forças genésicas

Num canto absoluto

o irrelevado espírito das coisas,

A harmonia que ninguém ousou captar,

A beleza invisível para os outros.





E o lavrador, que espera a bendição de Deus,

Deseja aprender, numa imagem que vibre

Como a entranha da agreste companheira

Sob as primícias da maternidade,

A alegria da terra,

Rasgando o próprio seio sem doer

Para as eclosões das primeiras sementes.





Como o oleiro o seu momento de inocência criadora,

E o pintor, o seu momento de domínio incomparável da matéria plástica,

E o músico o seu momento de cósmica integração,

E o atleta o seu momento de vitória espetacular,

E o santo o seu momento de êxtase supremo

E o lavrador, o seu momento de esperança milagrosa

E o poeta o momento de seu canto absoluto

Todos aspiram a perpetuar-se

Moldando o grande sonho em forma eterna.





Todos desejam essa alegria perfeita

Da forma em que se transfunda, num jato, a substância

Do momento imortal, único, entre os dois limites extremos e inúteis do tempo fugaz.   

sábado, 18 de janeiro de 2014

Comentário ao livro Amar Amarante


Carlos Said
Jornalista e professor

O extraordinário Elmar Carvalho (José Elmar de Mélo Carvalho: Campo Maior, Piauí, 1956) ao publicar o livrete: “Amar Amarante”, vem comovendo o seu coração de poeta. Encantando os dias doirados de sua existência.

Fã incondicional do poeta maior da terra piauiense, Elmar reconhece no formidável Da Costa e Silva (Amarante, Piauí, 1885 – Rio de Janeiro, 1950), a realeza da sentimentalidade pelo chão que poderia proporcionar os “sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho”.

Após receber o título de cidadão amarantino, o nascido em Campo Maior cercou as recordações “dacostianas” empolgado pela publicação e divulgação do livrete “Amar Amarante”.

Na verdade, a obra d' arte do Elmar é a própria alma da “terra dos carnaubais”. Uma perfeita ode sincronizada com versos sublimes do amarantino Da Costa e Silva afogado nas saudades: “A minha terra é um céu, se há um céu sobre a terra; / É um céu sob outro céu tão límpido e tão brando, / Que eterno sonho azul parece estar sonhando / Sobre o vale natal que o seio à luz descerra...”

Daqui para frente, eis Elmar empolgado com a benfazeja Amarante: “Ainda hoje escuto a música encantatória dos maracás daquelas faveiras e a dança requebrada do arvoredo. E ainda perpassa em minha pele o afago daquele vento, que ninguém sabe de onde veio, que ninguém sabe para onde foi...”  


(Texto extraído de sua coluna, publicada no jornal Meio Norte em 03/01/2014)