sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

BELINHA

Elmara e Anita


Anita
Belinha

BELINHA

Elmar Carvalho

Pedi que a Elmara Cristina, que é a primeira dona da prima-dona Anita, me mandasse, por e-mail, fotos da Belinha e da Anita, nossas duas mimosas cadelinhas, mas quem terminou por enviá-las foi o João Miguel. Isto porque decidi, hoje, escrever sobre Belinha, coisa que já venho adiando há algum tempo, por razões diversas. Essa cachorrinha chegou a nossa casa faz alguns anos. Não podia ouvir fala masculina que ficava nervosa, se agachando, se escondendo debaixo dos móveis. Dizíamos que era traumatizada. Depois, soubemos que um homem, que fora seu dono, a maltratava.

Foi, em seguida, para uma outra casa, onde não era muito bem cuidada, embora não sofresse  maus-tratos, até que nos foi dada. No início, a Anita, que veio morar conosco desde recém nascida, e que desde então foi sempre bem-amada, travou uma verdadeira “guerra” contra a Belinha, apesar de que esta, conquanto também pequena, fosse bem maior que ela; suponho que por ciúme da sua família humana e porque achasse que a intrusa invadira seu território.

Mas Belinha, com humildade e paciência, evitava confrontos, e se afastava de perto da mandona e madona Anita. Parecia provida de uma verdadeira inteligência emocional, que lhe impulsionava para a diplomacia e para a resistência pacífica, talvez temerosa de novo abandono ou rejeição. Sendo a Anita menor, mais graciosa e a “dona do pedaço”, já que era a pioneira, Belinha passou a nos cativar e a nos atrair a atenção caminhando e dançando sobre as duas patinhas traseiras.

Com efeito, terminou por conquistar todos da casa. Mas, um tanto tímida e esquiva, muitas vezes procurava os lugares esconsos,  e se retraía ante a Anita, que sempre foi mais ousada e voluntariosa, já que sempre foi o mimo da casa, talvez por ser a “primogênita” e por causa de sua graciosidade miúda. Não resta dúvida, Anita sempre foi a prima-dona, sempre foi a predileta. Mas Belinha foi galgando posições, angariando simpatias, e ao que tudo indica foi se libertando de seus traumas, embora se mantendo humilde e cordata com a outra cadela.

A Pantica (Francisca Maria) passou a ser a sua “madrinha”, cuidando dela com desvelo e carinho, mas também a repreendendo, em certos momentos, como se estivesse lidando com um ser humano, coisa que a cachorrinha quase o é, mas sem os defeitos dos humanos. Houve correspondência nesse apego e afetividade. Contudo, tinha seu brio e seu amor próprio, e, certa vez em que a Anita foi muito abusada, reagiu, como para mostrar que sabia se defender e defender os seus direitos, apesar de não gostar de briga, futrica e intriga.

Com o passar do tempo, Anita, conquanto não morresse de amor por ela, foi deixando de implicar; passou a tolerá-la, e ambas passaram a ter uma coexistência pacífica. Recentemente, Anita, que tinha uma hérnia há algum tempo, passou a ter o seu problema agravado, e um dia sentiu fortes dores, pois gania/gritava de dor. Belinha, bela e boa cadelinha, foi solidária, e correu desesperada, subindo os degraus em desabalada carreira, para latir à porta do quarto onde estava minha mulher; latiu fortemente, até a Fátima abrir a porta.

Em seguida, desceu as escadas, como chamando minha mulher para socorrer a Anita. Somente sossegou quando a Fátima foi olhar o que estava ocorrendo. Felizmente, a cachorrinha foi operada pela médica Tita, e hoje está recuperada. Essas duas cachorrinhas, fofas e graciosas, de biografias e temperamentos tão díspares, como que se complementam e completam a plenitude de nossa família, pois nos amam e por nós são amadas. 


14 de abril de 2010

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

ACUSAÇÕES QUE TÊM O VENTO POR TESTEMUNHA DE DEFESA

Fonte: Google


ACUSAÇÕES QUE TÊM O VENTO POR TESTEMUNHA DE DEFESA

Antônio Francisco Sousa – Auditor Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)

                        Foi reportagem de jornal, assunto de televisão - possivelmente, com desdobramento jurídico-ambientalista provocado pelos defensores dos animais de estimação -, o resgate de um cão encontrado amarrado, faminto e maltratado em lugar ermo qualquer. Descoberto o proprietário, este falou, enfim, ter localizado o animal que, havia meses, fugira de casa.

 Quem sabe não estivesse falando a verdade o dono do arisco animal? A propósito, será que as tão preocupadas e diligentes pessoas ou autoridades que, se não aconselham, também não condenam a castração/esterilização como forma de evitar a proliferação de animais vadios nas vias públicas – não foi o caso do pet em questão -, deixados lá por indivíduos que não têm condições de cuidar deles, sugeririam àqueles prolíficos, mas imprudentes pais e mães de vários filhos, que não tendo como bancar a tantos, não evitam que alguns busquem as ruas, sucumbam às drogas, tornem-se párias sociais, submeterem-se à histerectomia ou outra forma de esterilização?

                        Evitar a superpopulação de animais de estimação que, bom que se diga, não nascem como o capim depois das primeiras chuvas, mas são fruto da conjunção carnal entre machos e fêmeas – como ocorre à maioria dos animais -, em vez de tentando educar criadores sobre a necessidade de dispensar-lhes os necessários cuidados, evitando que venham morar/viver nas ruas, ou sugerindo a esterilização e/ou castração – quem alimentaria os irracionais eunucos abandonados? –, parece algo dicotômico, contraditório, pois, ao tempo em que defendem a vida dos pais, quando apenas os castram, evitam a dos filhos que, um dia, os animais esterilizados poderiam ter.

                        Continuando na linha das intervenções desautorizadas, intempestivas. A jovem mulher, às costas do cidadão, porém, um tanto distante dele, de repente, começa a gritar por socorro. Ele se volta, assustado, mas somente percebe que seria o motivo do pedido de ajuda, quando a mesma, pondo-se a seu lado, começa a acusá-lo de assédio e tentativa de estupro.

                        O sujeito, atônito, não entendia a razão da acusação verbal, tampouco o desespero da moça.

                        -Foi ele! Foi ele! Gritava. Polícia! Queria me estuprar! Uma pequena multidão de curiosos já se formara em torno dos dois. Alguém a ajude, falou uma mulher, em meio à aglomeração, sem se dignar, sequer, a aproximar-se da “assediada”.

                        - Que é isso? Não te conheço, nem te dirigi a palavra, não te fiz nada! Andava à tua frente: estás maluca! Dirigindo-se à estranha samaritana, disse: eu nem sei que é esta cidadã! Deixa-me em paz, tenho mais o que fazer, criatura! Ele quer fugir, acusava a boquirrota salvadora. Nenhum de vocês - apontando para alguns homens - vai intervir? Por que – falou um deles -, se o rapaz disse que nem a viu ou tocou nela, pois seguia à sua frente? Ah, é? E ela, como fica? Vejam seu estado, coitada, desesperada! A propósito, quem é a senhora – manifesta-se o acusado - que toma as dores dela, sem ter certeza do que eu teria feito? Ela falou que o senhor tentou estuprá-la... E isso lhe pareceu suficiente para me condenar? Nenhuma marca ou arranhão! Não sou um tarado que ataca mulheres em plena via pública. Ela é uma desmiolada, ou coisa pior. Assuma, sujeito - não era mais a primeira benemérita que falava, mas outra que também se condoera da “coitadinha” -, você assediou a garota e agora quer tirar o corpo fora? Quem vai tomar providências? Não ouviram o que ela disse? Apontando para a moça - que, de repente, acalmara-se como se o efeito de algo ou de alguma ação esquizofrênica houvesse cessado.

                        Encurralado, então, pelas preocupadas senhoras donas da verdade, já temia por sua segurança. A multidão não diminuíra. A “vítima” não mais chorava, apenas soluçava baixinho, sempre que apontava o dedo em sua direção. Olhem, ou as senhoras perguntam-lhe por que ela achou que eu estava tentando estuprá-la, se eu seguia bem distante dela, ou vamos a uma delegacia policial registrar a ocorrência! Ora, ora, não se faça de sonso, moço: deixe de lorota – ela, a primeira senhora, com a anuência gestual da outra pia cidadã.

                        Eis que chega a polícia e, primeiramente, trata de afastar os curiosos; depois, um policial chama as senhoras, de lado, e lhes pergunta o que estaria acontecendo. Um estupro: este homem tentou currar aquela moça – apontando a “vitima”. Antes de olhar para ela, o militar virou-se para o acusado: é fato o que elas dizem, cidadão? Claro que não, é uma grande mentira, uma acusação grave. Antes que o senhor me pergunte: jamais vi essas mulheres. Ela deve ser louca, desequilibrada! Falou um monte de sandices e, depois, calou-se, emudeceu. E as senhoras, seriam parentes da vítima? Não. Viram, pelo menos, ele tentando estuprá-la? Não, em coro, as duas.

                        Naquele momento outro guarda, alertado pelos colegas que haviam examinado a moça, falou: senhores, esta jovem é nossa velha conhecida. Não é a primeira vez que ela acusa estranhos nas ruas de a terem tentado estuprar. Além de ter problemas esquizofrênicos, deve ter sofrido algum trauma, no passado Voltando-se para o acusado: sabemos que o senhor se sentiu bastante ofendido e, dirigindo-se às “boas samaritanas”: cuidado para não saírem por aí fazendo o mesmo que ela: acusando alguém por um crime que não o viram cometer; todavia, releve essa situação vexatória, cidadão, ela é doente e precisa de ajuda; quanto a essas senhoras, infelizmente, são duas falastronas. Não devia, seu guarda, mas vou aceitar seu conselho. Agradeceu-lhe e partiu, sem nem olhar para trás.

                        Fato é que, acusar, atualmente, é ato tão fácil de realizar, quão difícil é de ele defender-se; notadamente, quando, ou se, a prova da acusação forem palavras atiradas ao vento, que também seria a principal, senão única, testemunha de defesa.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

DEPOIMENTO SOBRE CANINDÉ CORREIA

Nos áureos e velhos tempos do Inovação: Reginaldo Costa, Canindé Correia, Vicente de Paula (Potência) e o entrevistado.
Membros do Jornal Inovação, sob o cajueiro de Humberto de Campos, vendo-se, da esquerda para a direita, no 1º plano: Bartolomeu Martins, Vicente de Paula (Potência), Elmar Carvalho e Canindé Correia; 2º plano: Danilo Melo, Francisco (Neco) Carvalho, Diderot Mavignier, Franzé Ribeiro, Sólima Genuína, Bernardo Silva, Reginaldo Costa e Paulo Martins; 3º plano: Jonas Carvalho, Israel Correia, Porfírio Carvalho, Wilton Porto, Alcenor Candeira Filho e Flamarion Mesquita. Percebe-se, nesta fotografia, a felicidade dos retratados com esse reencontro, posto que vários moravam em outros estados e municípios. Hoje, a maioria já não reside em Parnaíba 

Paulo de Tarso Mendes de Souza, Natim Freitas, Canindé Correia, Zico, José Hamilton Castelo Branco, Elmar e Fátima



DEPOIMENTO SOBRE CANINDÉ CORREIA

Alcenor Candeira Filho
Poeta, cronista e ensaísta

Com o falecimento de Francisco Canindé Correia em 24-01-2020, aos 76 anos de idade, perdi um dos maiores amigos que tive e um dos homens mais íntegros e coerentes que conheci em toda a vida. Era tido pelos intelectuais do Inovação como um verdadeiro guru.  Falava menos do que ouvia. Jamais tergiversava ao emitir opinião.

     Filho do professor Benedicto Jonas Correia e Berenice Correia, nasceu em Parnaíba em 1944.

     Na infância e na adolescência não tive convivência com  Canindé apesar de morarmos em Parnaíba.

     Tornei-me seu amigo no Rio de Janeiro, onde ele fazia o curso de ciências econômicas e eu o de direito e chegamos a fazer  com outros parnaibanos algumas edições do  jornaleco mimeografado O Liguinha, considerado o primeiro jornal marginal do Piauí e que viria a ser o tema da monografia de conclusão de curso de Licenciatura Plena em História, apresentada pela professora Camila da Silva Miranda à Universidade Estadual  do Piauí, sob a orientação do professor M.s Idelmar Gomes Cavalcante Júnior, com o título “Por uma Questão  de (Des): a Emergência da Imprensa Alternativa no Piauí a Partir do Jornal O Linguinha”.  O jornaleco fundado em Parnaíba em fins de 1971 estampava como epígrafe esta quadrinha de minha autoria:

                          O Linguinha é um jornal
                         que talvez não valha nada,
                         mas em tudo que vai mal,
                         quando pode, dá porrada.

     O gosto pelo jornalismo alternativo levou-o a escrever para o  jornal A Libertação, fundado em Parnaíba em 1977 por Francisco José Ribeiro e Reginaldo Costa, que durante as comemorações do 7º aniversário da fundação do jornal declarou:

                                “Num plano mais amplo, direcionamos nossos
                       olhos para o povo, para os marginalizados que
                       vegetam na periferia da cidade, apesar de pagarem
                       impostos de toda natureza. A visão dessa situação
                       nos estimulou a editar um jornal mimeografado,
                       desvinculado de qualquer força que viesse a nos
                       amordaçar. Hoje, por uma feliz coincidência,
                       Inovação entra no 8º ano de existência, de luta
                       Ininterrupta. Em nome do grupo Inovação gostaria
                       de homenagear aqueles que se empenharam, no
                       início, para que ideia frutificasse. Destacaria
                       Canindé Correia, Ednólia Fontenele, Olavo Rebelo,
                       Ana  Alice, Airton Meneses, Franzé Ribeiro, entre
                       outros.”  
                                              
                                          
     Durante os dez anos de existência o Inovação, o mais importante e o mais duradouro jornal alternativo do Piauí, cumpriu corajosamente a sua destinação denunciando mazelas e falcatruas administrativas na cidade de Parnaíba, além de divulgar a poesia, a música e o teatro da terra e colocar-se permanentemente ao lado dos fracos e oprimidos.

     Segundo o poeta Elmar Carvalho, que teve ativa atuação no Movimento Social e Cultural Inovação,  “se alguém algum dia escrever um ensaio isento e imparcial sobre a cultura parnaibana não poderá olvidar, jamais, o jornal Inovação.

     Inovação é atualmente para algumas pessoas de Parnaíba um jornal maldito. E incômodo,  muito incômodo. Mas vale ressalvar que não obstante isso, ou exatamente por isso, é mais vendável e discutido que a ‘grande’ imprensa de Parnaíba. Creio  que em virtude de  sua independência, de sua coerência para com a verdade, e de sua não omissão diante de fatos injustos e nocivos à comunidade” (Jornal da Manhã Teresina, edição de 28.08.1983).

     Por sua vinculação com o Inovação e posições políticas de  esquerda, Canindé era  taxado por alguns desafetos de comunista, o que não corresponde à verdade. Socialista e terceiro-mundista convicto sim; comunista, nunca.

     As principais funções que exerceu foram: superintendente do SESI-PI e secretário municipal  de educação na primeira administração de José Hamilton Castelo Branco (1993-1996).

     No período em que foi secretário de  educação foram muitas as  realizações, destacando a construção do CAIC-Escola Municipal Professora Albertina Furtado Castelo Branco e a grande ampliação da Escola Roland Jacob, justamente as duas maiores escolas da rede pública municipal.

     Até hoje não conheci uma pessoa mais desprovida de ambições materiais e de vaidade do que  ele. Quando sondado para integrar a Academia Parnaibana de Letras agradeceu a lembrança, mas ponderou que não poderia concorrer porque não era autor de livro, argumento frágil se se considerar que poderia sanar o óbice com a reunião em livro dos principais textos que escreveu em jornais e dos pronunciamentos feitos como secretário de educação e superintendente do SESI. Outro exemplo: presenciei na minha residência Canindé recusar convite feito por José Hamilton Castelo Branco na sua terceira administração para que assumisse importante cargo na Prefeitura. Justificativa para a recusa: já aposentado queria dedicar-se apenas à esposa Tânia Maria (minha irmã), às filhas Ivana e Maria de Fátima e aos netos Jonas e Felipe. Na época não tinham nascido ainda Gabriel e Mari Eduarda.

     Não obstante as considerações acima, Canindé compõe surpreendentemente o quadro de sócios efetivos do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba (cadeira nº 13).  

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Leônidas de Castro Mello e a subversão do tempo



Detalhe do convite de lançamento da segunda edição
Componentes da mesa: Elmar Carvalho, Maria do Socorro de Castro Mello Tajra (filha do autor), Nelson Nery Costa e Dílson Lages Monteiro. Fonte: site da APL


Leônidas de Castro Mello e a subversão do tempo

Dílson Lages Monteiro – da Academia Piauiense de Letras

A vida, como manifestação da linguagem, surge de narrativas e da relação delas com o tempo. As representações que se originam de sujeitos, inseridos no tempo e no espaço, materializam debates, controvérsias, sonhos e principalmente memórias. Sobre Leônidas de Castro Mello, um dos mais propalados homens públicos do Piauí, muitas narrativas chegaram aos dias correntes, inclusive, a que escreveu de si na autobiografia “Trechos do Meu Caminho”, clássico do memorialismo regional, agora reeditado pela Academia Piauiense de Letras.

Leônidas de Castro Mello, professor, médico, governador do Piauí entre 1935 e 1945, segundo os registros de vários historiadores, legou ao Estado um rol de conquistas de infraestrutura impactantes para a qualidade de vida dos piauienses na primeira metade do século XX. Entraria para a memória coletiva, entre outros registros, “como homem compromissado com seu tempo e de profundo senso humanitário”. Pontuaram historiadores que ele abriu estradas, construiu escolas e casas de saúde; modernizou Teresina; enfim, construiu, a seu tempo, “uma nova visão sobre o lugar do agente público”.

No dizer do historiador Wilson Carvalho Gonçalves, “Dr. Leônidas Mello consagrou à questão da educação e da saúde verdadeiro culto, que se corporificou na construção do Hospital Getúlio Vargas, em postos de saúde e grupos escolares nos principais municípios piauienses”. Consolidou-se com um líder nato, mantendo-se fiel aos princípios de seu pensar e agir.  

Os ares de Modernidade que Leônidas e o Estado Novo trouxeram ao Piauí, de acordo com os registros oficiais, não se limitaram a obras como o novo prédio da Escola de Aprendizes e Artífices (hoje Instituto Federal de Educação) e do Liceu Piauiense; ao Hospital Getúlio Vargas; à ponte metálica sobre o Rio Parnaíba. Germinavam as sementes da cultura, em um de seus sentidos mais amplos, o da preservação do patrimônio imaterial. É nesse período que se constrói o Arquivo Público do Piauí (Casa Anísio Brito), já reunindo documentos do século XVII e XVIII.

Em 1937, conforme relata o romancista e crítico literário João Pinheiro, configura-se, por lei, datada de 9 de julho, o apoio do interventor em forma de subsídio à APL, “para ocorrer às despesas da Academia Piauiense de Letras, especialmente com a publicação da sua Revista e de obras avulsas dos seus membros efetivos e de quaisquer piauienses vivos ou mortos de reconhecido valor nas ciências, artes e letras” (2015:72). Seria, pois, a ação de Leônidas uma das primeiras iniciativas públicas que se tem conhecimento de amparo à edição de livros no Estado.

A inquietação de Leônidas Mello em preservar a memória e versões de sua época se estendeu, também, para a esfera pessoal. Em 1976, a Companhia Editora do Piauí (COMEPI) trazia a lume a edição de Trechos do Meu Caminho, livro de memórias do ex-governador. Embora anunciasse que a obra se trata de uma simples revisitação dos fatos havidos consigo, o autor legou algumas das mais belas páginas do memorialismo na literatura piauiense. Passados 42 anos de sua primeira edição, o livro se apresenta agora às gerações de hoje pela Coleção Centenário (APL), permitindo não apenas a reavaliação de um período significativo da vida política e social, sob o olhar de um de seus principais líderes, mas também a possibilidade de reencontros ou descobertas da vida privada da aristocracia, de costumes e valores de modelo social fortemente marcado pelas tradições, em linguagem vazada de comovente lirismo.

Há em cada ser uma tendência natural de uniformizar o tempo, em processo de causa e consequência o qual deseja as horas lineares, palpáveis, concretas. Entretanto, o tempo pertence à memória e à percepção e, como lembra Benedito Nunes, ao revistar o projeto literário de Proust, “a revivência do passado no presente, retira o presente do fluxo do tempo” (2013:60), para favorecer o sentido da existência e adquirir, o momento, importância psicológica, filosófica e estética. Esse é o estado que alcança Leônidas de Castro Mello em “Trechos do Meu Caminho”: predominam em sua escritura “as intuições do sensível” para a sondagem do eu, do estar no mundo e da autoavaliação do belo, do bem, da virtude; ainda que, em linhas gerais, organize-se toda a narrativa, em sua superfície, pela constituição biológica da idade (infância, adolescência, juventude, maturidade), processo logo subvertido pelo leitor ao se deixar absorver pelo texto.

Assim, autoriza “Trechos do Meu Caminho” a recuperar explicações de kant sobre a relação entre o tempo e estado do sensível: “O tempo não é mais do que a forma do sentido interno, isto é, da intuição a respeito de nós mesmos e de nosso estado interior”(2000:104).  Acrescenta ele que “o tempo não pode ser uma determinação de fenômenos externos, ele não pertence nem a uma imagem, nem a uma posição etc., pelo contrário, ele determina a relação das representações em estado interno. E, precisamente porque essa intuição interior não apresenta imagem alguma, nós a procuramos suprir essa falha por meio de analogias e representamos o curso do tempo por uma linha que se prolonga ao infinito, e cujas diversas partes constituem uma série que não tem mais que uma dimensão; “ (idem)

(...) E conclui: “(...) A representação do próprio tempo é uma intuição, pois todas as suas relações podem ser expressas por uma intuição exterior” (ibidem).

Em suas memórias, infância, adolescência, juventude e maturidade, para Leônidas Mello, convertem-se no objetivo de revelar-se sincero, desnudando-se, a si e a seu tempo, da maneira mais natural possível, ora pela evocação da ingenuidade de ser criança, ora pelo atendimento das convicções pessoais. Isso se revela, inclusive, na materialidade da escrita, feita conscientemente em forma de diálogo, o que consuma tanto o anseio de expressar as verdades pessoais quanto de ser o mais claro e próximo possível dos eventuais interlocutores: “Recorro geralmente, à forma de diálogo para a narração dos episódios e ocorrências aqui revividos. Com isso, viso a tornar a exposição mais agradável; a leitura, menos pesada. Tais diálogos não reproduzem, é claro, as mesmas palavras ao tempo proferidas pelas pessoas mencionadas: correspondem, entretanto, a absoluta exatidão e fidelidade aos fatos” (2019, 34).

Toda a narrativa desenvolve-se em dois planos centrais: a evocação do amor à cidade natal, Barras do Marathaoan, e a história pessoal de superações, culminando na vitoriosa carreira no magistério, na medicina e, sobretudo, na política. Ao reconstruir a infância e a adolescência, minunciosamente, recupera pedaço precioso do cotidiano do chão de nascimento na primeira metade do século XX. Lê-se a geografia, as relações sociais e familiares, os costumes e o modo de fazer política em Barras, com destaque especial para a família, ponto de partida e de chegada da narrativa. Assim, inicia o texto com a devoção aos pais, principalmente, à dedicação e o rigor do pai Regino Mello ao trabalho: “Seu dia começava cedo, ainda escuro. Invariavelmente levantava-se entre quatro e cinco horas (...) No trato com a família, fazia questão de ser obedecido, de ser realmente o chefe. Nisso era exagerado. Nada se resolvia, nada se fazia sem a sua audiência, o seu consentimento. Fomos pois criados e educados em regime um tanto patriarcal, de austeridade e disciplina. (...) Era pai extremoso” (2019:41).

Na descrição da infância e da adolescência, ganha relevo o modo como eram “criados” e formados os filhos da aristocracia da pequena cidade, ao mesmo tempo em que se percebe um panorama da educação no lugarejo. A educação formal iniciava-se ali, nas primeiras décadas do século XX, em casa, estendia-se pela escola do mestre Freitas e, posteriormente, pela escola fundada pelo barrense Arimathéa Tito; então formado em Direito, estabelecera-se por lá. A formação religiosa era tida como vital. Recorda-se Leônidas como ocorreu:

“Aprendi as primeiras orações e primeiras noções de catecismo com minha madrinha Maroca Pires – moça da família Pires Ferreira, criada desde pequena por minha tia Cinó que a estimava como filha. (...) Todas as tardes, mais ou menos às quatro horas, minha mãe me lembrava:

-- É hora de ir pra “reza”. Lave seu rosto, as mãos e os pés bem lavadinhos, mude a roupa e vá.
(...)

Ensinava a duas turmas e considerava a aprendizagem realizada quando sabíamos cinco orações: Padre Nosso, Ave Maria, Creio em Deus Pai, Eu pecador e Salve Rainha. No dia de despachar-nos, chamava de uma por um e despedia-se com abraço e um beijo na testa. Recomendava:

-- Rezem por mim, rezem sempre pra eu ser feliz. É o pagamento que eu quero de vocês” (2019:62).

Ao concentrar-se em examinar a juventude e a adolescência, procura Leônidas Mello enfatizar cada passo decisivo de superação o qual projetou as vitórias. Infere-se que a dedicação aos estudos, a persistência, a honestidade e alguns momentos de sorte (leia-se oportunidade) formavam o contexto para que, por mérito, esforço e trabalho, construísse a história pessoal de sucesso. “Trechos do Meu Caminho” representa também oportunidade de (re)leitura da política piauiense na primeira metade do século XX, com o rico painel de partidos políticos, alianças e desdobramentos da história política do Estado e os reflexos na vida social piauiense.

O livro é todo ternura. Todo feito desse sentimento de quem procura na natureza, no convívio com afetos e pessoas que dão identidade e pertencimento à fisionomia humana, o profundo sentimento de carinho. A ternura é visivelmente recorrente todas as vezes que alude, por exemplo, ao Marataoã, poucas vezes tão bem descrito, em lirismo cativante, como o faz Leônidas em trechos como este:

“O rio do lado oeste passa tão perto da cidade que, nalgumas casas, as cercas dos quintais vão até alcançar as águas que penetram alguns metros a dentro. O rio fecha assim, servindo de cerca, o fundo dos quintais. Essa margem, na parte que corresponde à cidade, é inteiramente destituída  de vegetação e, por isso, de várias ruas, pode-se avistar o grande espelho de superfície d’água, sempre tranquilo, encrespado pelo vento que sopra manso a qualquer hora. Há pontos destinados a banho, outros à lavagem de roupas, outros à apanha d’água para usos domésticos” (2019:70).

Com esta edição, a Academia Piauiense de Letras devolve à sociedade piauiense uma obra basilar para se entender como pensava o Piauí nas cinco primeiras décadas do século XX. Obra significativa, porque escrita por uma testemunha ocular da história, já despida do poder, mas obstinada a entendê-lo em sua inteireza, a partir do lugar que é o distanciamento da esfera das decisões, de onde é possível autoavaliar-se sem receios ou limitações.  Escritas com o toque da emoção (e, portanto, mais próximas das verdades do autor), as palavras de Leônidas de Castro Mello, enraizadas no mundo real, configuram-se úteis ao leitor comum e aos especializados, reafirmando concepção de Robert Darton: “(...) não se pode calcular a média dos significados nem reduzir os símbolos a seu mínimo denominador comum. (...) a expressão individual ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar as sensações e a entender as coisas pensando dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura”. (2017:17)

Vasculhando a natureza do tempo em conferência realizada em Paris, em 2012, Étiene Klein, entre as mais diversas especulações sobre o tema, escreve que “quando vivemos momentos felizes e mágicos, queremos que eles durem muito tempo, até que as coisas permaneçam como estão eternamente” (2019:22-23). Parafraseando a si mesmo, diz o conferencista: “Gostaríamos que o tempo parasse de voar e de nos roubar os momentos de felicidade, apesar de isso não ser possível”(Ibidem). Lendo “Trechos do Meu Caminho”, de Leônidas Mello, contrariando o pensamento da conferencista, o leitor será tragado pela sensação de que os desejos são mais fortes que o tempo;  os sonhos, mais poderosos que a sucessão dos instantes. Os desejos e os sonhos de Leônidas de Castro Mello permanecem vivos entre nós.

Referências:
BOUTANG, Pierre. O tempo (ensaio sobre a origem). Rio de Janeiro: Difel, 2000.
DARTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
GONÇALVES, Wílson. Terra dos Governadores: fatos da história de Barras. Teresina-PI. Edição do autor, 1987.

KLEIN, Étienne. O tempo que passa (?). São Paulo: Editora 34, 2019.
MELLO, Leônidas de Castro. Trechos do Meu Caminho. Teresina: APL, 2019.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
PINHEIRO, João. Solar dos sonhos e outros escritos. Teresina-PI: APL, 2018.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Sr. Tempo



Sr. Tempo

Wilton Gutemberg da Cruz Pires Jr.

Ou seria ‘‘contei’’, dado que esse texto já foi escrito no momento em que você o lê? Ou ‘‘contarei’’, dado que você ainda não o leu ou tampouco eu, no momento em que escrevo, cheguei a terminá-lo? Ou ‘‘contaria’’, dado que o futuro é incerto e pode ser que eu sequer chegue a concluir essas palavras? Acuse-me de fazer complicações desnecessárias, mas não como o honesto acusa a desonestidade. Haveria nisso uma hipocrisia inconsciente, porque em verdade você sofre da mesma ansiedade em relação ao que foi, ao que é e ao que pensa que será. É sobre a desnecessidade desse comportamento que escrevo (escrevi; escreverei; escreveria).

O Sr. Tempo é um trabalhador constante, daqueles que nunca perdem o foco. Ao relógio, que tenta acompanhá-lo, olha com desdém. E por todo esse foco não dialoga conosco, ignora nossos pedidos e possui franca indiferença aos nossos lamentos. Nunca poderemos acusá-lo, entretanto, de nos deixar sozinhos. Ao que depender dele, nunca conheceremos a solidão. Mas eu entendo, você bem que gostaria de ter alguns momentos de privacidade. Entretanto, não adianta implorar; cá entre nós, acredito que Deus fez do Sr. Tempo surdo, impassível ao choro mais escandaloso.

A mitologia grega ensinou-nos duas formas de lidar com esse companheiro inafastável. Por um lado, os gregos antigos conceberam Chronos: o titã monstruoso que engole os deuses no café da manhã. Destrutivo, faminto e que a tudo consome. Esta é a representação do tempo que envelhece, desgasta e a tudo torna pó. Por outro lado, os gregos antigos conceberam Kairós: um deus jovem e gracioso, sempre nu. Rápido, estava em fuga constante dos outros deuses, que tentavam alcançá-lo como em um pega-pega e que dificilmente era capturado. Esta é a representação do tempo que é instante oportuno, um palco na existência em que performamos a história. É o momento presente, em que devemos agarrar o agora e fazê-lo nosso.

Das duas tentativas de ilustrar o Sr. Tempo, prefiro a segunda. O tempo como Kairós evidencia que o tempo é, mas nunca foi nem tampouco será. Veja, o passado não existe. O que se passou deixou de existir. Já o futuro, esse que ainda não é concreto, ninguém entre os homens pode garantir que existirá. Portanto, passado e futuro são abstrações, de modo que trocar o presente por lembranças e expectativas não costuma ser um bom negócio.

Infelizmente, a maioria de nós permite-se seduzir pelo incômodo do que foi, reinterpretando o passado à luz dos nossos sentimentos, encantada por nossos próprios dramas. Quando não, roemos as unhas pelo que achamos que virá. Em ambos os casos, surgem conjecturas feitas de imaginação e impressões de realidade. Ocorre que, enquanto isso, o Sr. Tempo continua a trabalhar, fazendo passar instante após instante, precisamente aquele que poderia ser usado para remediar erros do passado e condicionar o futuro desejado. O instante que poderia ser o remédio para nossas preocupações.

Certamente, fazer do presente uma oportunidade não é fácil. Ora, parte importante do mito é a dificuldade de agarrar Kairós, a mais fugidia das divindades. Estar ciente do agora é profundo exercício do domínio de si mesmo, talvez impossível de ser contínuo. Resta tentar.

Mas apresse-se, pois as oportunidades para isso são finitas. Por menos simpático que seja esse aspecto, preciso reconhecer que o Sr. Tempo também é Chronos. Significa que o tempo que escorre entre nossos dedos é a nossa existência carnal, que inevitavelmente terminará. Cada instante é um passo para mais perto da morte. E preparando sua chegada, o vigor do corpo se esvai, rugas aparecem e a mente enfraquece. Assim, tudo que os mais vaidosos amam desaparece, deixando-os viúvos entristecidos, ao ponto de que alguns até desejarão que a morte se adiante. Há ainda o fato de que não nos é permitido saber exatamente quantos desses instantes ainda nos restam, obrigando-nos a gastá-los sem saber se resta algo na conta.

Mas, pensando bem, não dá esse aspecto ainda mais substância ao se encarar o tempo como valiosa oportunidade? A existência de um termo final para nossas vidas enche o ofício do Sr. Tempo, abstrato, de uma escassez própria daquilo que é concreto. Os instantes, que um dia pararão de chegar, tornam-se cada um uma pepita de ouro, que ao passar por nossas mãos poderá escorrer em vão entre nossos dedos ou, para os mais atentos, ser investida em algo que a dê algum significado mais elevado. Eis o peso sobre nossas escolhas acerca do tempo.

Prometi que combateria preocupações desnecessárias, mas receio que posso ter, ao invés disso, aumentado a neurose em alguns leitores. Mas a prudência, ao invés de usar desse raciocínio como mais um motivo para lamentar-se e desperdiçar o momento, o fará lição para se deliciar com o presente, reconhecendo seu caráter determinante tanto para o passado quanto para o futuro, enxergando a oportunidade renovada a cada instante. Porque o Sr. Tempo pode não ser dos mais simpáticos, mas é qual um minerador generoso, presenteando-nos com pepitas de ouro extraídas do desconhecido. Cabe a você ser um ourives, forjando delas as joias mais preciosas.  

domingo, 26 de janeiro de 2020

O SEXO DOS ANJOS

Fonte: Google


O SEXO DOS ANJOS

Elmar Carvalho

Que temos a ver
com o sexo antisséptico
dos inatingíveis e intangíveis
anjos das hostes celestiais?
Que temos a ver
com os anjos machos e fêmeas
de falos decepados e de
vaginas obturadas?
(A ânsia por asas e
a sede de infinito.)  

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Caminhos de Leônidas Mello




Foi lançado ontem, dia 23/01/20, às 19:30 horas, o livro de memórias “Trechos do Meu Caminho”, de Leônidas de Castro Mello, em bela solenidade, em que o auditório da Academia Piauiense de Letras ficou lotado, tendo havido necessidade de cadeiras suplementares. A apresentação da obra, integrante da Coleção Centenário, editada pela APL, foi feita pela senhora Socorro de Castro Melo Tajra, filha do autor, pelo acadêmico e professor Dílson Lages Monteiro e por mim, com o texto abaixo. O evento foi presidido por Nelson Nery Costa e teve a presença dos prefeitos de Teresina, Firmino Filho, e de Barras, Carlos Monte. Barras, terra natal do autor, se fez representar por cintilante “comitiva”, composta, entre outros, por Antenor Rego Filho e sua esposa Nise, Manoel Monte Filho, Francisco de Paula Silva, Alcides do Rego Lages Filho e Chico Acoram. Tive a   honra de ter um exemplar autografado por dona Socorro, que ocupará lugar de destaque em minha biblioteca.

Caminhos de Leônidas Mello

Elmar Carvalho

A primeira edição de Trechos de meu caminho, de Leônidas de Castro Mello, data de 1976. Vi esse livro na casa de uns parentes barrenses de meu pai. Já não recordo se o tomei emprestado, ou se apenas lhe li algumas páginas. Morando numa pensão, perto da velha Casa Saló e da sede do Sambão, numa área intermédia entre o mercado velho e o Liceu, certo dia criei coragem, e me dirigi à COMEPI – Companhia Editora do Piauí, e lá, com certa timidez, pedi que me fosse fornecido um exemplar.

Quem me atendeu foi falar com o presidente da editora, que quis conversar comigo. Eu lhe expliquei, sem dúvida, por que tinha interesse em ter o livro e como dele tomara conhecimento. Devo ter dito que minha família, por parte de meu pai, era de Barras, terra natal do autor. O diretor que me atendeu deve ter sido Deoclécio Dantas; gostaria que tenha sido ele, cuja digna trajetória política e jornalística acompanhei, à distância.

Algumas décadas mais tarde nos tornamos colegas na Academia Piauiense de Letras, quando travamos amizade e passamos a nutrir recíproca admiração. O certo é que de lá saí com um exemplar, que li e reli com prazer. Recomendei a meu pai que também o lesse. Em virtude de viagens e mudanças residenciais, ou talvez por causa das devoradoras traças e goteiras, o perdi, mas nunca esqueci vários de seus trechos verdadeiramente antológicos. Vivia eu nessa época uma fase um tanto difícil de minha vida, pois em junho de 1975, aos 19 anos de idade, fora morar em Parnaíba, e em setembro desse mesmo ano viera assumir emprego nos Correios, em Teresina. Era inexperiente em emprego e nunca deixara a casa de meus pais.

Conquanto tenha dito Leônidas que escrevera suas memórias “sem qualquer pretensão a mérito literário”, até porque jamais se dedicara a estudos filológicos, devo dizer que as li com muito interesse e atenção, e até com muito gosto, mesmo sendo eu na época um leitor compulsivo de ficção e poesia. Alinho o seu livro entre as obras memorialísticas que mais admirei, entre as quais cito Memórias e memórias inacabadas, de Humberto de Campos, Confesso que vivi, de Pablo Neruda, Ensaio autobiográfico, de Jorge Luis Borges, Ensaio de autobiografia, de Boris Pasternak, e entre as várias escritas por Pedro Nava.

Apesar da restrição feita pelo próprio autor, como assinalei acima, considero ter o livro boas qualidades literárias, mormente no âmbito memorialístico e autobiográfico, além da importância que possui para a história recente de nosso estado, pelo seu teor confessional e por ser o  depoimento de uma testemunha presencial e privilegiada, conforme demonstro a seguir.

Advirto, de logo, que não irei, aqui, tratar das notáveis e inúmeras obras físicas que o professor, médico e político Leônidas de Castro Mello realizou em sua paradigmática e profícua administração, mormente no campo da medicina e da educação, nem tampouco das melhorias que ele implementou na prestação de serviços públicos.

Não bastassem as qualidades da redação, tais como concisão, objetividade, clareza, correção gramatical, há que se elogiar o seu estilo fluente, colorido, vívido, que dá ao livro certo sabor de romance, inclusive pelo fato de o autor ter intercalado às narrativas e descrições vários diálogos, em que tentou reconstituir, da maneira mais fiel possível, como ele fez questão de frisar, o discurso direto de vários personagens que lhe cruzaram o caminho.

Embora o livro seja um depoimento memorialístico, e que por essa razão pudesse ser muito subjetivo e pessoal, podemos lhe aferir a objetividade e mesmo a imparcialidade, porque algumas afirmativas são corroboradas por transcrições jornalísticas e de livros, e porque, do meu conhecimento, o seu livro nunca foi refutado e também porque o seu autor sempre teve uma reputação de homem veraz e honesto, tanto na vida pública quanto na particular, não obstante todos estejamos sujeitos a eventuais equívocos, ainda que circunstanciais ou diminutos.

A obra, enriquecida pelos textos preambulares de Dílson Lages Monteiro, Maria do Socorro de Castro Melo Tajra e Dirceu Arcoverde (1ª edição), tem um prólogo, em que Leônidas faz uma espécie de resumo de sua trajetória de homem público, e das principais razões que o levaram a escrever suas memórias, a que se seguem os trechos de seu caminho, de caráter pessoal, titulados: Meus pais, Infância, Um parêntese necessário, Adolescência e Juventude. A partir de Maturidade – vida profissional (ligeira referência) – Vida Pública – Política, as demais partes pouco se referem a sua vida privada, tais como vida de casado, paternidade, amizades pessoais, lazer, vida social etc. Ou seja, quase tudo que é relatado, após Juventude, diz respeito a sua vivência e embates políticos.

Muito me comoveu a parte Infância, em que ele narrou a sua profunda e pura amizade ao menino Zuza, que foi companheiro de brincadeira, estudos e escola. Nesse trecho, o leitor pode ter uma ideia de como eram os costumes, a infância, as brincadeiras, o lazer e o estudo numa cidade interiorana do porte de Barras. Esse capítulo é movimentado, cheio de diálogos, e nele são descritas as lutas de seu pai, o comerciante Regino Lopes de Mello, a sua postura de aluno exemplar, ante uma escola simples, de alfabetização, dirigida por um professor rígido, o Mestre Freitas, que não se escusava a fazer uso do “instrumento didático” palmatória, contudo eficiente nos limites de seu grau elementar de magistério.

São comoventes, como disse, certos episódios da amizade entre os meninos Zuza e Leônidas, especialmente os que se referem à doença e morte inesperada e precoce de Zuza. O trecho Infância, por certos detalhes, por certos pormenores dignos da boa romancística, me fez lembrar, sem que eu esteja exagerando, Menino de Engenho, de José Lins do Rego. Fico com a impressão de que Leônidas deve ter lido alguns bons romances ou ao menos algumas das melhores obras memorialísticas e autobiográficas.

Fiquei com a certeza, da leitura dessa e de outras partes do livro, de que poderia ter escrito um bom romance, se a isso tivesse se dedicado no outono de sua vida. Essa convicção me vem do seu estilo límpido, da sua habilidade na urdidura de diálogos e entrechos, bem como em várias descrições da paisagem, revestidas de beleza e emoção, em que não lhes falta o condimento de verdadeira prosa poética. Também não lhes falta uma dose bem medida de pitoresco ou pinturesco, como neste trecho:

“(...) eu me distraía também vendo as mulheres que iam apanhar água e voltavam com as latas na cabeça, equilibradas sobre rodilhas de pano. Voltavam sempre aos grupos, com os braços inteiramente livres, as latas em perfeito equilíbrio. Passavam conversando alto, às vezes gesticulando. Eu procurava distinguir a melhor equilibrista e escutava as conversas. Além das mulheres, havia a turma de moleque que passava tocando jumentos muito mansos com cargas de ancoretas. Todos iam buscar o líquido precioso para o abastecimento da casa no dia seguinte. Alguns assobiavam músicas que eu conhecia. Isso tudo me distraía.” 

Em 8 de março de 1912, quando tinha em torno de 15 anos, após insípida e incipiente experiência como balconista do comércio de seu pai, Leônidas foi prosseguir os seus estudos em Teresina. Relata as peripécias da viagem, em lombo de animais, em época de forte invernada, em que o Marataoã estava bravio e transbordara de seu leito, em alguns pontos se alargando por mais de dois quilômetros. Assim, já não acredito serem hiperbólicos os versos do poeta barrense Pedro Alves Furtado, quando comparou o Marataoã a um imenso mar oceano. É que o vate se referia ao rio na época das rigorosas chuvaradas. Seu pai, aconselhado a adiar a viagem, teria perguntado em resposta: “Eu já enfrentei as águas do Amazonas, como não enfrentarei as do Marataoã?”

Descreve, com perícia, beleza e emoção, as dificuldades dessas perigosas travessias, a beleza deslumbrante desses alagadiços e lagoas, dos tabuleiros e colinas, em que as matas e as carnaubeiras se refletiam no espelho das águas. Cita as fazendas e as casas em que pernoitou nessa longa e cansativa viagem. Mais de duas décadas e meia depois meu pai faria essa mesma viagem, quando foi ser aluno interno do Diocesano, numa época restritiva em que mui poucos piauienses conseguiam cursar o antigo ginásio.

Já me alongando em demasia, devo pisar no freio. Contudo, ainda algo desejo acrescentar. Como disse, senti falta de que o autor pouco tenha falado de sua experiência de marido e de pai, sem entrar, claro, em intimidades que só lhe dizem respeito.

Tendo ele tido a coragem e a sinceridade de falar de suas rivalidades e mesmo inimizades políticas; de abordar o rumoroso e controvertido episódio da aposentadoria compulsória dos desembargadores José de Arimathéa Tito, Esmaragdo Freitas e Simplício de Sousa Mendes e de relatar as suas dificuldades administrativas e políticas, e até mesmo as suas aperturas financeiras e decepções, era de se esperar que ele fosse esclarecer os episódios da queima de palhoças e casebres no período de seu governo.

Contudo, nada falou sobre esses “fogos”, que seus detratores lhe atribuíam, de forma direta ou indireta. Soube, já não me recordo se através de leitura ou de conversa, que ele chegou a anunciar a um seu parente que iria revelar a verdade. Mas depois voltou atrás, alegando que não queria magoar ou denegrir a memória de ninguém.

Também ouvi dizer que um dia, de forma inesperada, muitos anos após esses incêndios, o major Evilásio Vilanova, figura por muitos considerada um tanto sombria e sinistra, a quem esses crimes eram imputados, quando ele comandou a Polícia Militar do Piauí e a chefia de Polícia (Segurança Pública), o procurou em sua residência, e lhe pediu para conversarem em particular, sem o testemunho de ninguém.

Nada se soube dessa conversa, já que Leônidas lhe manteve o mais absoluto sigilo. Maria Genovefa de Aguiar Morais Correia, no seu livro memorialístico Genu Moraes – a Mulher e o Tempo, também estranhou o silêncio de Leônidas sobre esse assunto, que ainda hoje causa controvérsias e especulações, conforme se pode ler na página 363:

“Em seu livro Trechos do meu caminho, publicado em 1976, no governo Dirceu Mendes Arcoverde, pela Comepi – Companhia Editora do Piauí, extinta no governo Wellington Dias, o Dr. Leônidas de Castro Mello fala sobre praticamente tudo que aconteceu no período, primeiro como governador constitucional, eleito pela Assembleia Legislativa do Estado, depois como interventor federal, indicado pelo presidente Getúlio Vargas. Mas não toca no assunto dos incêndios.

O Deoclécio Dantas, que era presidente da Comepi na época da  publicação do livro, me disse que originalmente Trechos do meu caminho tinha um capítulo falando sobre os incêndios.

O livro estava sendo preparado quando, um dia, o Dr. Leônidas de Castro Mello entra em sua sala de trabalho, e pede para revê-lo. Ali, na sua frente, ele tirou o capítulo relativo ao assunto. Sobre seu ato, explicou que estava fazendo aquilo porque um dos acusados de ser mandante dos incêndios acabara de falecer e ele não queria atingir a memória do morto. Ora, quem faleceu na época, que poderia ser citado na obra, foi o Dr. José Cândido Ferraz. Ele foi a Cleveland, nos Estados Unidos, para se tratar, e lá faleceu em 23 de junho de 1975.”

Em suas memórias, Leônidas narra dois fatos curiosos, que, pela sua estranheza, podemos entender como pertencentes ao reino do sobrenatural. Talvez ambos possam ter contribuído para que ele tenha se tornado espírita. Um foi a profecia, feita pelo estudante Clodoaldo Martins Ferreira, ainda em sua adolescência, de que ele governaria o Piauí. O mais curioso é que o “profeta” nunca teve esse dom premonitório, nem antes e nem depois desse augúrio referente a Leônidas. E o outro, acontecido mais ou menos na mesma época, foi a visão do espírito de sua irmã, falecida precocemente. Acredito que os dois fenômenos possam ter aumentado a sua fé em Deus e na espiritualidade.

Sempre acreditei que Leônidas de Castro Mello foi um homem honrado, e o próprio Simplício Mendes, seu desafeto, veio a admitir isso anos mais tarde. Por isso, nunca acreditei que ele pudesse ser o responsável pelos incêndios dos casebres. Foi um homem honesto em sua vida pessoal e na condição de governante do Piauí, tanto que logo ao deixar o governo, sem o seu subsídio, passou a enfrentar dificuldade financeira, depois superada. E foi um homem bom, até porque a sua religiosidade a isso o induzia, assim como a sua índole.

Leônidas tinha muito o que contar, e contou. Tinha muito o que dizer, e disse. E, principalmente, soube contar. Assim, as suas memórias são quase o romance de sua vida, e podem ser lidas com prazer e emoção, porque vertidas em bela fatura literária.