quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Natal Sertanejo


Natal Sertanejo

José Pedro Araújo
Escritor e historiador

Se o Natal é uma festa cristã – e essa deve ser a sua verdadeira essência -, não é menos verdade que é também a festa do comércio, período em que os empresários vendem como em nenhuma outra época, momento para troca de presentes e de grande felicidade. Atestam os historiadores que o dia 25 de dezembro foi escolhido pelo Papa Júlio I, aí por volta do Século IV, para comemorar o nascimento de Jesus Cristo, transformando uma festa que nasceu pagã em um ato religioso. Inicialmente realizada para coincidir com a Saturnália dos romanos e com as festas germânicas e célticas do Solstício do Inverno, viu a igreja uma oportunidade de ouro para comemorar e divulgar o nascimento do Filho de Deus. E a figura do Papai Noel recaiu sobre uma personagem que, dizem, de fato existiu: o Bispo São Nicolau, nascido na Grécia no século III.

Transitando um pouco pela história, vamos encontrar que a fama de bom velhinho do bispo foi ganha quando ele ficou sabendo que um certo cidadão da sua cidade, que possuía três filhas, por não ter condições de pagar o dote do casamento delas, resolveu vendê-las à medida que iam atingido a idade própria para o casamento. Constrangido e penalizado com aquela situação, o tal velhinho foi até lá, incógnito, e arremessou pela janela uma pequena bolsa de couro cheia de moedas de ouro que caiu justamente sobre uma meia que havia sido posta para secar na lareira. Procedeu da mesma forma com a segunda filha. E o pai das moças, profundamente agradecido por aquele gesto humanitário, ficou na espreita  para descobrir quem era o benfeitor que havia impedido que ele praticasse aquele ato que tanto lhe feria o coração. Descoberto a figura de São Nicolau, saiu ele a divulgar o nome desse generoso bom velhinho. Assim, por esse tempo, a imagem que se tinha era a de um velhinho vestido de bispo e não com as vestes em vermelho brilhante como hoje o conhecemos. 

Foram os holandeses, no século XVII, que levaram para os Estados Unidos a tradição de distribuir presentes para as crianças usando a lenda de São Nicolau(Sinter Klaas). Depois disso, dois escritores americanos se encarregaram de impulsionar a fama do bom velhinho, por eles chamado de Santa Claus. O primeiro, Washington Irving, em 1809, escreveu um livro em que enaltecia as qualidades de Papai Noel, um velhinho bonachão, que montava um cavalo branco voador e arremessava presentes pelas chaminés. O segundo escritor, poeta e professor, Clement Moore, em 1823, além de enaltecer ainda mais a aura mágica descrita e popularizada por Irving, trocou o cavalo de Papai Noel por um trenó puxado por renas voadoras. 

Mas a figura de Papai Noel, só foi de fato definida quando o desenhista, também americano, Thomas Nest, fez a primeira ilustração do bondoso velhinho descendo pela chaminé, mas ainda do tamanho de um duende, tal qual vinha sendo divulgado desde muito tempo. Somente anos mais tarde, a imagem foi mudando, crescendo, e ficando mais barriguda, com cabelo, barba e bigodes longos e brancos, e a aparecer no pólo norte. Mas, o Papai Noel como nós conhecemos hoje, foi inspirado pelo artista Habdon Sundblon, que se inspirou em um velho vendedor aposentado para realizar uma campanha para a Coca-Cola em 1931. 

Aqui em terras do Curador, o nosso Natal começou a ser comemorado de maneira simples e sem muita pompa. À falta de nozes e castanhas, do panetone e do peru de natal, as famílias se serviam de iguarias simples baseadas em produtos da terra, como o porco e a galinha caipira. Sem a iluminação feérica das grandes metrópoles, por nos faltar lâmpadas e energia elétrica, tínhamos que nos contentar com a luz dos candeeiros e, mais tarde, com a do potente Petromax. Assim, como realizar uma autentica ceia de natal?

Lembro-me que quando criança, eu ficava maravilhado com os cartões de natal enviados para a minha família por alguns missionários americanos e canadenses. Mostravam paisagens belíssimas, com a neve cobrindo as casas e os vastos pinheirais, e com Papai Noel voando em seu trenó puxado por renas, cheio de presentes embrulhados em papel brilhante, amarrados por belíssimos e multicoloridos laços de fita. Os cartões vinham com mensagens impressas em inglês, com palavras para mim desconhecidas (Merry Christmas, Santa Claus, Christmas Tree, Jingle Bell, Candle, Candy Cane, Christmas Pudding, Stocking, Gift, Presents, Sleigh, Star, Light e Happy Holydays – tudo escrito com letras em vermelho e verde brilhante).

Na minha casa não tínhamos o hábito de realizar a ceia à meia noite. Seguíamos todos para a Igreja Cristã para participar de um culto especial, com a apresentação de um auto de natal, que muito nos emocionava. A árvore de natal, ao invés de um pinheiro, planta inexistente em nossas florestas, era substituída por um frondoso galho de pitombeira cheio de cachos com o fruto maduro (o enorme galho só era trazido no dia da festa, para manter as suas folhas vivas e brilhantes). O galho trazido era decorado com luzes e enfeites natalinos. Era uma festa belíssima, bem ensaiada e que, com o tempo, virou atração para a cidade inteira, ocasião em que a comunidade enchia o templo para assistir à linda apresentação que os membros da Igreja Cristã Evangélica de Presidente Dutra dedicavam anualmente aos seus concidadãos na noite de Natal. 

O Natal continua a ser, sim, uma festa cristã, onde as famílias se reúnem para louvar e festejar o nascimento de Jesus Cristo, o Filho de Deus. É também um período para reflexões e de redirecionamento das nossas vidas, substituindo tudo de ruim e mal feito que fizemos no ano que passou, por coisas novas e voltadas para o bem. Tempo para louvar Aquele que deu a Sua Própria vida para salvar nós pecadores e redirecionar o nosso futuro. Tempo, enfim, de Paz, Amor e Alegria no seio das famílias.


Feliz Natal a todos e Um Ano Novo Venturoso e Cheio de Grandes Realizações e Muita Paz no Coração!!!!!!!  

Fonte: Blog Folhas Avulsas

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A propósito do artigo "Gênese dos meus 'Poemas Inéditos', de Elmar Carvalho"

Cunha e Silva Filho

A propósito do artigo "Gênese dos meus 'Poemas Inéditos', de Elmar Carvalho"

              Cunha e Silva Filho
        
         No texto   acima referido no título deste artigo, à feição do que fez Manuel Bandeira, no conhecido  e indispensável  ensaio autobiográfico,  “Itinerário de Pasárgada, o poeta  piauiense Elmar Carvalho, expõe,  em muitos passos de forma bastante lírica, evocativa,  as razões das origens  de seus chamados "Poemas Inéditos.” O texto é abissal, e direi  por quê.
         O artista do verso tanto os de maior  grandeza quanto os de menor  qualidade,  no Brasil ou no exterior, em muitos ângulos, são autênticos críticos e intérpretes de suas obras. Poderia citar vários deles, entre os quais,  T.S.Eliot, Coleridge, Murilo Mendes,  Ezra Pound, Goethe, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Otávio Paz.
         A visão da poeticidade que esses  artistas  da palavra têm, como se vê, é a do conhecimento  "interno" da estrutura do verso,  inclusive dos “mistérios’ que ultrapassam  o plano da lógica. E é Bandeira, exímio artífice do verso, que nos ensina: poemas há de sua lavra que só podem ser explicados pela tão denegrida  “inspiração, de fundo romântico. Por isso,  ele fala tanto em  alumbramentos.”
     Outros não, são frutos  do domínio  do verso, de seus segredos, de seus fundamentos  teóricos.  Para Ferreira Gullar,  os poemas, muitas  vezes, nascem provocados  pelo “espanto”  diante da vida, diante de algumas singularidades  que se colocam  ante a atenção do  artista.   Para o autor do Poema sujo (1976)  a vida não  basta no que é, ela necessita de um  complemento que justamente  está na Arte, enfim,  em  quaisquer de suas  manifestações. Em outros termos, seria  impensável viver-se sem   os valores artísticos. A vida seria uma esterilidade,  um vazio  enorme , irrespirável.
     A visão do  exegeta,  do crítico  militante ou não,   parte de fora para dentro do texto. É  uma visão alicerçada na experiência e convívio  das leituras  intensas e extensas da palavra  poética.
    Seu ponto de apoio analítico se assenta na teoria, no estudo da linguagem e da "competência literária"( Vítor Manuel de Aguiar e Silva).  Ou seja,  não é a dos poetas que passaram  da ideia de um tema  para fins  de compor um poema, do influxo vibratório da "inspiração,"  para um trabalho   lúcido da transformação  do verso em poesia, visto que poesia pode estar igualmente na prosa, na ficção,   num belo discurso oratório e até na leitura em voz alta de uma emocionante   mensagem, quase silenciando  quem lê o texto  em virtude  da carga sonoro-semântica   de sua tessitura, porquanto   a nossas voz fica embargada, entrecortada, soluçante,  a ponto de chorarmos,  numa mutação psicofisiológica  tamanha que   o efeito do movimento da leitura   se transforma em quase impedimento de sua continuidade.   Não é isso  um momento  de  extremo  lirismo?
   A poesia no verso  é resultado de uma proficiência de conhecimentos  técnicos implícitos ou  explícitos (metapoesia, metalinguagem  literária)). Além disso,  poesia  é  um produto  da tradição com  a atualidade, não havendo nunca  um ruptura total com o passado, ou com os passados,   a não ser no caso  da poesia antidiscursiva, do poema concreto, ideográfico, exclusivamente  verbo-voco-visual, que não se sustentaria  por muito tempo porque a discursividade, nos limites do lirismo, do poético de qualidade, é base de toda expressão  do  pensamento  poético contemporâneo.
    Os vanguardismos são úteis na medida em que  dão uma "mexida" nos exageros  da discursividade  do poema feito com palavras,  frases, que não se renovam, que se congelam esteticamente. Novas formas  poéticas,   novos temas, visões do mundo de hoje   são bem-vindos. Os  vanguardismos foram  , em  muitos pontos, fecundos e deixaram marcas  na comunicação poética, porém foram   passageiros, por demais tecnicistas.
   Suponho que o lirismo  da linguagem   na sua sintaxe poética nunca vai  desaparecer,  porquanto o homem se cansaria  se continuasse a ler  poemas absolutamente  sígnicos, icônicos,  geométricos,  matemáticos, cifrados, tipográficos, perfomáticos,  tendentes a ultrapassar  a linguagem  literária e trocá-la por outras linguagens de outras artes, o que  por si só,  aniquilaria   a condição da obra  poética nos seus fundamentos intrínsecos e irrecusáveis.
  O homem precisa   da estrutura sintática, da linguagem  literária,  do que antes se chamava "conteúdo," algo a ser dito  poeticamente com palavras e não com  sugestões   grafemáticas que afastariam  cada vez mais os leitores    do pequeno   número de aficionados da grande poesia  de todos os tempos.
  Elmar Carvalho  recorda as várias  circunstâncias,  no tempo e no espaço,  que ensejaram  a fatura de alguns de seus poemas, alguns  urdidos depois de muito tempo, de muito suor, outros  surgidos na mente do poeta  em forma  quase  perfeita para  serem  impressos.
   Aquilo que o homem comum  pensa ser assim tão  simples ou mera inspiração -  elaborar  um poema  - não espelha a verdade e a paciência  que os  poetas tiveram  na composição  de seus versos.
   Alguns poemas, ou   senão quase todos os poemas de  uma obra,  têm  histórias curiosas  e jamais  pensadas por seus leitores, precisamente  porque  a escrita  de um poema pode tanto vir  de dentro  de sua  imaginação diante dos apelos  do mundo quanto  pode  vir de uma incidente ou fato  exterior,  cuja matéria  é retrabalhada  pelo  artista do verso  a fim de  o plasmar  em  poema.
   O que me leva a pensar  que,  nesta  ordem,   guardam  semelhanças todos os escritores em geral,  os romancistas, os contistas,  os  dramaturgos, os cronistas, até mesmo os  articulistas. É do  mundo  externo,  do momento  histórico,   do imprevisto de um  instante que pode nascer a ideia-máter  de uma obra, seja um romance, seja apenas um  poema.
  Por todas essas considerações, vejo como muito oportunas  que poetas  possam  indicar  as inúmeras fontes de como se originaram  seus  poemas.
  No texto de Elmar  pude  perceber  que os poemas   por ele elucidados, ganham  dimensões  novas,  auxiliam analistas,  repropõem outras leituras, corrigem, revelam e desvelam     camadas insuspeitadas  pelo  seus analistas. 
 Quer dizer, servem a  críticos,  ensaístas,  professores de literatura que, ao compararem  o poema  feito com   as motivações  circunstanciais que   os deflagraram como peças literárias, complementam  gaps  com que   por vezes  se deparam o analista e crítico no tocante a  algumas nuanças hermenêuticas  que o texto poético, mais do que o  ficcional,  sinaliza: opacidades, elementos de alta voltagem estética  sempre  presentes e resistentes  ao   entendimento do leitor, mesmo do leitor  especializado nos meandros da poíesis.
     O artigo-ensaio de Elmar Carvalho   renova a  minha    percepção  de que os poetas são os usuários da língua que mais,  talvez, próximos estejam  dos segredos e riquezas  multifárias do idioma.

      No poeta nada escapa da profundidade e dos  pormenores de língua literária, nos poetas  a língua  seria uma forma inusitada de como   melhor  estabelecer a passagem  da nossa existência tão  cumulada de referencialidades para um mundo, um cosmos que aos poetas se abre como   uma entrada  privilegiada no reino das palavra-imagem-símbolo, uma  espécie de ludismo  fecundo em tensão com o  imenso  potencial  da linguagem somente a eles  acessível e por eles melhor  compreendida.      

domingo, 27 de dezembro de 2015

EM TRANSE


EM TRANSE

Elmar Carvalho

Superando a relatividade
do tempo e do espaço,
quero não estar ao mesmo tempo
no tempo e no espaço.
Indo além
da barreira do tempo e do espaço,
eu galguei o infinito
ao ficar infinitamente
pequeno.
Projetando-me
além do tempo e do espaço,
eu vi o caos
do nada.
Perdido no
tempo parado
e no espaço desfeito,
vi sangues azuis,
cobras multicores,
lagartas de fogo
e outras alucinações
girando vertiginosamente
em apocalíptica
coreografia.
E eu para sempre
fiquei perdido no
tempo e no espaço
perdidos em vão.


           Pba. 22.09.77

sábado, 26 de dezembro de 2015

Confraternização com sabores proféticos


Confraternização com sabores proféticos

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

  
         Festins, confraternizações, papai noel, amigo oculto, lembranças, presentes, boa comida, mesa farta. “Não só de pão vive o homem”, adverte o aniversariante divino. Nessas horas de badalos inebriantes, vale a pena um instante de silêncio, um mergulho no espírito, uma sobresa de mensagem bíblica. Que tal um apanhado de profecias, sobre a vinda de Jesus, encarnado, para montar sua tenda no meio de nós?

         Adão e Eva, depois de abusarem do livre arbítrio, envergonhados e nus, cobrem-se com galhos de figueira. Porém, Deus os veste com peles de cordeiro. Figueiras produzem uvas, que se transformam em vinho. Peles de cordeiros para esconder a vergonha da nudez do pecado. Ambas as metáforas expressam a vinda do Messias, milhares de anos depois, simbolizado pelo cordeiro pascal, acompanhado de pão e vinho de seu corpo: “Isto é meu corpo, meu sangue...tomai e comei!”

         Ainda no livro de Gênesis, Deus se dirige ao Maligno representado pela serpente: “Porei inimizade entre ti e a mulher (alusão à futura mãe de Jesus), entre tua descendência (alusão à descendência de Eva, contaminada pelo pecado) e a descendência dela (referência à descendência do Filho de Maria e graça dos batizados com o sangue do Cordeiro). Tu lhe ferirás os pés, mas ela pisará a tua cabeça (segundo teólogos, Maria não foi maculada pelo pecado original). Disse também à mulher (Eva): ‘Multiplicarei os sofrimentos de teu parto...’

         No capítulo 49 de Gênesis, o patriarca Jacó, vinte séculos antes de Cristo, à beira da morte, reúne os filhos e os abençoa. Ao colocar as mãos sobre a cabeça de Judá, exclamou, cheio do espírito de Deus: “Não se apartará o cetro (reinado) de Judá, até que venha aquele (Messias), a quem pertence por direito e a quem devem obediência os povos... Lavará com o vinho suas vestes, com o sangue das uvas...”. Os reis de Israel descendiam de Judá. Jesus descendeu de um deles, rei Davi.

         O profeta Miqueias, 700 anos antes de Cristo, proferiu fotográfica e lindíssima profecia: “Tu, Belém, pequena entre os clãs de Judá, é de ti que sairá aquele que é chamado a governar Israel. Suas origens remontam aos tempos antigos, aos dias de longínquo passado”. Observe, agora, a analogia do  João, iniciando o seu evangelho: “No princípio era o Verbo (Messias), e o Verbo estava perto de Deus, e o Verbo era Deus... E o Verbo se encarnou e estendeu suas tendas no meio dos homens.”

         Como se vê, não só as mesas se fartam de comidas, bebidas, presentes e papai noel, quase sempre promessas voláteis como a digestão e as gloríolas de um mundo meio paganizado, quando não se dá tempo para vasculhar nossa trajetória na Terra. Centenas de passagens bíblicas vão fundo nas nossas origens e sentido da vida. Basta reservar tempinho do cotidiano, até mesmo das confraternizações e banquetes, para alimentar o espírito. Testemunho que nunca me arrependi desse tempo perdido em vão.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Minha coluna de Natal


Minha coluna de Natal

Rogel Samuel

Eu adoro Natal.  Apesar de não ter família, ou por causa disso.
Minha família é o mundo.
Lembro-me de quando ainda morava em Copacabana, na noite de Natal saí para jantar, bem tarde, num restaurante próximo que eu sabia aberto.
Bebi champanhe, saudei os meus mortos, desejei feliz Natal para a humanidade.
No fim, mandei embrulhar numa “quentinha” o meu jantar quase inteiro, que quase nada comi.
E vim andando pela Barata Ribeiro deserta em direção à minha rua.
Poucos carros passavam.
Pessoas gritavam e riam em alguns apartamentos.
Gritavam da alegria do Natal.
Súbito eu vi um velho mendigo do outro lado da rua, sentado na calçada, como que dormindo.
Com quem sonhava aquele homem?
Eu me aproximei e ele acordou rapidamente assustado, mas alegre ao receber aquela sua ceia natalina.
Por isso, adoro o Natal.
As pessoas ficam inspiradas. As estrelas brilham. O mundo respira uma atmosfera nova.
Acredito que, não existisse o Natal, o mundo já se teria autodestruído.
No Natal a humanidade do mundo se renova.
Voltamos a ser compassivos, bondosos, pacíficos.
Purificamo-nos.
E sempre há de aparecer um mendigo na calçada para ser nosso parente, nossa família, e receber nossos melhores presentes.
O nosso sorriso.

Fonte: Portal Entretextos 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

GÊNESE DOS MEUS “POEMAS INÉDITOS”



24 de dezembro   Diário Incontínuo

GÊNESE DOS MEUS “POEMAS INÉDITOS”

Elmar Carvalho

Faz poucos dias publiquei em meu blog o ensaio Elmar Carvalho – poemas inéditos, em que o arguto e percuciente crítico literário Cunha e Silva Filho, pós-doutor em Literatura Brasileira, comentou os poemas que enfeixei na seção Poemas Inéditos de meu livro Lira dos Cinqüentanos. Estimulado por essa matéria, passarei a falar sobre a gênese desses textos, na esperança de que isso tenha algum interesse literário, mormente para os raros leitores de poesia.

Durante muitos anos desejei escrever sobre chuva, fenômeno natural que me dá a sensação de uma maior proximidade de Deus, sobretudo quando escuto os trovões longínquos, de sons graves, cavernosos, como saídos das entranhas da terra. Imaginei fazer um poema um tanto longo, com metáforas e onomatopeias, imagens de barcos de papel, rumores de pingos d’água e coaxar de sapos, além de outros ingredientes. No já distante ano de 2002, na cidade de Ribeiro Gonçalves, finalmente o escrevi. Após longa viagem, em ônibus da Princesa do Sul, cheguei a essa cidade numa manhã chuvosa. Fui da agência até o prédio do fórum debaixo de um chuvisco. Choveu durante a semana toda, sem tréguas. Eu morava e trabalhava nesse edifício da Justiça. Com o frio e o dedilhar da chuva no telhado, além da infindável cantoria dos batráquios, de diferentes ritmos e tonalidades, com sopranos, barítonos e tenores, escrevi o poema no dia 13 de janeiro do referido ano. O texto contém todos os componentes citados e outros. Mais de década após, ainda sinto com intensidade a lembrança dessa semana tão pluviosa, em que passei o sábado e o domingo trancado no fórum, em solidão digna de um asceta, e não de um poeta.

Canção pastoril de um urbanoide foi esboçada na rodoviária de Uruçuí, em um guardanapo de papel, que peguei na lanchonete. Muitas vezes, antes de a cidade ter a sua estação rodoviária, eu passeava pela cidade, enquanto aguardava a saída do ônibus. Andava pela praça da matriz de São Sebastião e me dirigia até a margem do Parnaíba, de onde eu contemplava, do outro lado, a cidadezinha maranhense de Benedito Leite, então ainda acanhada e bucólica. Via, à boca da noite, as estrelas fulgurando no infinito. Como eu me encontrava em trânsito, pois viajava de Ribeiro Gonçalves a Teresina, via a paisagem dos cerrados e as grandes roças de soja, e delineei o contraste entre uma vida bucólica e pacata e a vida agitada de uma cidade grande. Às vezes via grandes bandos verdoengos de periquitos e ouvia a sua algazarra festiva, e outras vezes me sentia saudado pelo canto mavioso do sabiá do poeta.

O poema Guernica, embora não tenha sido feito sob encomenda, coisa que nunca soube fazer, de certa forma foi escrito por influência do professor Manoel Paulo Nunes. Certa feita ele me pediu para organizar uma espécie de pequena antologia de poemas de repulsa às guerras, para publicação na revista Presença, editada sob sua responsabilidade, em virtude de ser o presidente do Conselho Estadual de Cultura. Escolhi os textos, de diferentes autores, e como eu desejasse participar dessa coletânea me determinei produzir o meu Guernica, que já era um projeto antigo, mas que nunca tive o ensejo de realizar. Para fazê-lo me baseei, sobretudo, nas imagens do filme O Pianista, que mostra toda a miséria e crueza de uma guerra, mormente a desorganização do abastecimento e da vida civil, fora a dramaticidade das relações sociais, com doenças, fome e morte.

O deputado Humberto Reis da Silveira, que foi um excelente amigo, me contou a história de um palhaço eslavo, que morrera e fora sepultado em Jaicós, sua terra natal, muitas décadas atrás. Imaginei como seria a vida de uma pequena cidade do semiárido naquela época. Pensei na ironia do tédio de um palhaço no ostracismo de uma urbe pacata e insulada nos sertões do Cabrobó, uma vez que sua profissão se destina a proporcionar a alegria da plateia. Sem dúvida esse clown deveria viver saudoso de sua frígida terra, a sentir o bafo da canícula sertaneja. Associei esse artista à mortal melancolia do palhaço do poema de Heine, e lhe dei a necessária dramaticidade. Portanto, o meu texto nasceu da história contada por Humberto Reis, que por sinal era um grande leitor e admirador da melhor poesia piauiense.

Da janela do apartamento, em Parnaíba, eu via uma fileira de grandes árvores, semelhantes a pinheiros. O dono da casa em frente os plantara para formar uma espécie de empanada, que impedisse a visão de sua piscina. Eu não gostava dessa situação, porque isso me impedia de contemplar a paisagem ao longe, principalmente as dunas e as palmeiras. Mas, ante o inelutável, tentei admirar a beleza dessas plantas. Passei a vê-las como flexíveis bailarinas, dançando ao sabor do vento, em suaves requebros e meneios. Também as via como altos mastros e velas. Simulava um veleiro, no qual eu navegasse pela magia da imaginação. Por vários meses tentei elaborar um poema que retratasse o que acabo de pintar, mas a musa se mantinha arisca e arredia, por mais que eu a cortejasse. Um dia, ao tomar alguns goles de cerveja, a contemplar com paciência essas árvores, o poema me surgiu de forma dócil e integral, e quase não precisei retocá-lo.

Entre os poemas inéditos [em livro] havia dois antigos, ainda do final da década de 1970: Autoantropofagia e Simbolismo. O primeiro, mantive-o íntegro, tal como o escrevi originalmente, mas fiz duas ou três pequenas modificações no segundo. Autoantropofagia é um texto dito engajado, de conteúdo político, social, mas muito sintético, e que contém algo dos chamados poemas piadas, em que tentei cultivar meu senso de humor. Na verdade ele seria o paroxismo da fome e da autofagia. Já Simbolismo é mesmo o que o título indica; é um poema simbólico, cheio de imagens, mas revestido de pequena dose de surrealismo.

Creio que tentei escrever o Teia de Te(n)tação no começo dos anos 1980, quando ainda morava em Parnaíba. A ideia era colocá-lo em camisas de meia, que seriam vendidas para custeio de um projeto cultural, do qual já não me recordo. Mas a pessoa que faria o trabalho de silkscreen não levou à frente o seu projeto, e eu terminei perdendo o texto. Muitos anos depois, suponho que em 2006, o reescrevi. Conquanto seja um poema discursivo, que bem pode ser recitado, contém recursos do concretismo, em que os negritos e os parênteses provocam polissemias e duplos sentidos, mormente te(n)tações e ações libidinosas provocadas por belas e empinadas tetas.

No meu livro Confissões de um juiz expliquei a origem do poema A um ganancioso morto, e por que o escrevi. Por comodidade e para não me repetir, transcrevo o que foi dito em Confissões:

“A caminho de Várzea do Simão, à beira da estrada, sempre procurei ver o túmulo de um homem que fora muito rico, mas que parecia insaciável, sempre desejoso de mais terras, algumas delas, segundo comentavam, adquiridas de forma ilegítima, através de logro ou fraude.
Durante muito tempo ele tentou conseguir uma pequena gleba pertencente a meu sogro João Rodrigues, dito João Simão. Chegou a simular uma falsa diligência policial para pressioná-lo a assinar um documento que ele forjara, mas o velho, por insistência de sua mulher, dona Filomena, não o assinou. Ante a negativa, ingressou com um processo judicial contra o pai de minha mulher, que demorou muitos anos, até meu sogro vencer a lide, através de seu advogado Luís da Graça, que ainda cheguei a conhecer.
Eu via o túmulo e ficava a meditar na ambição de certas pessoas. Aquele homem desejara terras e mais terras, e finalmente poucos palmos de terra lhe eram mais do que bastante. Nascemos sem nada trazermos, e quando morremos nada podemos levar, para onde quer que possa ir a nossa alma imortal, segundo acredito.
Nas audiências assistia a muitas discussões por coisas miúdas, por pequenas importâncias, por parte de pessoas que bem poderiam passar sem esses bens, sem essas moedas. Embora eu reconheça ter certa habilidade para mediar as conciliações, entretanto vi muitas vezes um acordo deixar de ser feito por intransigência, por birra, por ganância, por apego demasiado aos metais.
Por causa dessas reflexões e meditações, escrevi o poema A um ganancioso morto. Mandei fazer um belo banner com este texto e uma pertinente ilustração. Emoldurei e o afixei nas salas de audiência dos fóruns de que fui diretor, com o objetivo de predispor as partes aos acordos, às transigências, ao desapego de bens materiais.”

Por fim, falarei do poema Viagem. Ele, como o nome sugere, foi estimulado pelas dezenas ou centenas de viagens que fiz, nos 17 anos em que exerci a magistratura em cidades interioranas. Sempre gostei de contemplar o céu da janela dos ônibus em que viajei. Nesses deslocamentos ruminava algumas ideias para a concepção desse texto poético. Mas ele é fruto também de pesquisa, das várias leituras que fiz sobre astrofísica e mecânica quântica. É uma viagem do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, das abissais profundezas oceânicas às vertiginosas refulgências do espaço sideral.


Com muita propriedade observou Cunha e Silva Filho, com cuja “chave de diamante” encerro este registro metapoético: “No último poema da seção “Viagem”, o poeta, mais uma vez, escreve um longo e denso trabalho de dimensão cósmica, universal. Poema abrangente, de andamento épico - recurso por ele já testado com sucesso mais de uma vez – no qual o sujeito lírico empreende uma “viagem” que vai dos elementos minimamente divisíveis da matéria física, dos átomos, dos minúsculos recantos da natureza animal, vegetal e mineral, das superfícies da Terra às profundezas oceânicas, da solidão do nosso planeta às culminâncias planetárias, do profano ao sagrado, da realidade histórica aos mitos. Não satisfeito, o poeta adentra o universo misterioso e encantatório da astrologia, criando magníficas imagens para cada signo do Zodíaco.” 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

DAS AMIZADES PERDIDAS


DAS AMIZADES PERDIDAS

Cunha e Silva Filho

                                              
                                             [...]  
                                  Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
                                  O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
                                  A mão que afaga é a mesma que apedreja.
                                                         [..]
                                  Augusto dos Anjos,  Eu e outros  poemas
                                                       

        Poder-se-iam  citar a  mancheias as causas  das perdas das amizades. Não vou esgotar o tema,  principalmente porque este não é objetivo  dos comentários que farei neste artigo (crônica, sei lá, chamemos apenas “texto” para ficar  ao lado do poeta, tradutor,  ensaísta e crítico  José Paulo Paes (1926-1998).
        Menciono algumas is facilmente me   à tona, a que se situa no domínio da política, da literatura e mera convivência social, a que pode  estar no condomínio de um prédio,  no açougue,  na loja, na banca de jornal, no trabalho,  na família, entre familiares, nas instituições  culturais, nos clubes   nas academias  de letras e assim por diante.
       Vejamos a primeira, que é muito comum em nosso pais  e desde tempos bem recuados quando, numa cidade do interior,  dois partidos  dividem  as ambições de assumir a liderança  política local. Inúmeros são os desdobramentos  que de ordinário  surgem em meio às refregas: as famílias da situação e as da oposição  se tornam  inimigas,  por vezes chegam às vias de fato,  por vezes  cometem  desatinos entre si e até ao extremo de  cometer  atos  in desejáveis, como crimes.
     No campo amoroso,  membros das famílias não podem  namorar outros cujos pais lhe são  desafetos políticos. Daí pode  ressurgir, em alguns casos,  tragédia do tipo  Romeu e Julieta,  de William  Shakespeare (1564-1616). Nos anos 1920, 1930, 1940 1950, só para dar  um recorte no tempo,   eram  comuns  familiares  se tornarem  inimigas  quando  seus membros  escolhiam  seguir a  carreira política e se candidatavam a cargos eletivos, prefeitos,  deputados, vereadores. A política no  interior desse mesmo  país, pelo menos  antigamente, assim me contava meu pai,  começava a ser assunto mesmo entre   crianças, de adolescente, os quais  discutiam  suas posições, naturalmente  influenciados pelos adultos.
        Para espíritos muito  inclinados à política  militante,  não necessariamente aquela  voltada para  exercer  mandatos, e meu pai era um exemplo disso,  o fato   era bem  observado  pelos adultos.
    Uma tia-avó materna, a Aurora Cunha e Silva, há muito falecida, a quem chamávamos  carinhosamente de tia Lolosa, professora  primária  muito  respeitada na época em que  lecionou em Amarante, PI, e em Teresina,  certa feita me fez um comentário:  “Não sei, Francisco,   como você  não é chegado à política, seu pai foi, desde bem jovem,  tão interessado por   política, e você não me parece gostar  da discussão política”
      Razão tinha ela,   pois meu pai foi  tão um    jornalista  visceralmente político a vida inteira. Olhei para ela e apenas lhe sorri, sem lhe dar uma resposta   nem lhe apresentar argumento algum.
      Isso ficou  na minha  cabeça por muito tempo.  Só com a maturidade me veio  o interesse  político,  não para  ingressar  na política, mas como  campo de  análise, de discussão,  de reflexões  que me levaram logo a  escrever sobre assuntos,  os quais não eram  estreitamente  de cunho  político, no sentido técnico, de aprofundamento nas questões fundamentais  da vida política nacional, contudo estavam  muito  intimamente   conexionados com ela.Ou seja, os problemas que diziam  respeito  à vida do brasileiro, da nossa sociedade começaram a me  chamar a atenção e se tornar  até   temas  recorrentes  meus, o mesmo se estendendo para a situação  do mundo  político internacional, que passou a ser  objeto de minhas   discussões em jornais do Piauí e, depois,  em  meu blog “As ideias no tempo,”   sempre que  afetavam   as condições  injustas  vividas por países tanto das Américas  quanto do mundo em geral.
   Em resumo,  a opção minha  de estimar  o debate político visando à defesa de minhas ideias e posições me custou  a perda de amizades que  supostamente  pensava que fossem verdadeiras,  visto que, quando são genuínas,   profundas,  elas não se   acabam   meramente  por  motivos  ideológicos, os quais – com somos tolos! -  não vão beneficiar nem a mim nem as minhas amizades  perdidas.
    O único beneficiário das polêmicas  entre  contendores é o próprio sistema dominante ou a oposição,  ambos, ao contrário dos humildes  discutidores  de política, ao final e ao cabo,   só lucrando com isso, ao receberem seus votos. Os briguentos – cá no espaço anônimo e  terra-a-terra – de lucros  só tiveram  prejuízos e a perda da amizade. Confuso mundo o nosso.
   Na  perda da amizade por motivações  literárias, o país tem uma longa tradição, sobretudo nos anos 1940, período em que  pipocaram  inúmeras combates nos jornais, muito acirrados dividindo escritores a favor ou contra  determinadas práticas  de visões literários. O  mais célebre, a meu ver, foi o travada entre o crítico Álvaro Lins (1912-1970) e o crítico  Afrânio Coutinho (1911-2000),  ambos  com  propostas  de militância  na crítica  inteiramente  diferentes, o que redundou  em  discussões  violentas entre eles, sobretudo  da parte  de Afrânio Coutinho, espírito mais    apaixonado  pelos seus ideário de   abordagem  do fenômeno literário, sobretudo  porque  Coutinho  almejava atingir um  alvo: o de  desalojar  da liderança  da crítica de rodapé o  famoso  autor de Os mortos de sobrecasaca(1963)
       Em várias obras, debatendo os seus pontos de vista no tocante à judicatura crítica,  Coutinho defendia   a crítica universitária,  através da qual  os estudos  literários poderiam  encontrar o seu locus  principal  de desenvolvimento  e de atualização  dos estudos  literários entre nós. Afrânio Coutinho saiu, de certa maneira,  vencedor; Álvaro Lins, desgostoso,  foi aos poucos se afastando  dos meios literários,  inclusive da Academia Brasileira de Letras de que era ilustre membro. Para ainda piorar sua vida de escritor, ainda morreu  antes de completar sessenta anos. A polêmica entre os dois  foi  o núcleo central  de minha pesquisa de pós-doutorado na UFRJ concluída em  2014.
       Mesmo tendo pessoalmente me  envolvido em curta polêmica no Piauí,  deploro certos arroubos das polêmicas sobretudo um lado que reputo deplorávael: os ressentimentos  que deixam marcas e que, a meu ver,  só prejudicam  o conjunto da vida literária entre pessoas que,  de outra forma,  poderiam  até, quem sabe,  terem feito boas amizades a fim de  tocar a marcha dos estudos da literatura  em nosso país. Para a literatura, sobretudo quando entram em jogo a objetividade  e seriedade da vida acadêmica,  o uso das citações  bibliográficas tendem a  subtrair  as obras de nossos   inimigos  no campo  teórico e vice-versa, o que é uma perda e um desserviço à mentalidade imparcial que deve presidir  o  trabalho acadêmico. Essa situação assim criada se me afigura uma violência, espécie de  tácita e desonesta   obnubilação do  espírito científico   na investigação  acadêmica. Espécie, em suma,  de crime capital  que ainda grassa  no meio  intelectual  e universitário brasileiro. 
    Quanto às inimizades convencionais que possamos  ter ao longo da vida,  elas também  não trazem  nenhuma vantagem a nenhuma das partes, malgrado reconheçamos que   algumas delas  devam  se manter no  ponto  em que as deixamos  por  absoluta incompatibilidade entre as partes. Outra podem ser refeitas, dependendo dos condicionamentos   que as geraram, os quais, podem, de repente,  por uma circunstância ou outra, se reabilitarem.     

     Porém, é muito pouco provável que haja reconciliações entre as pessoas, dado que o ser humano  é imprevisível,   rancoroso,   preferindo não abrir a guarda,  a qual   seria  a possibilidade da  volta da amizade.  Repito: é quase impossível  que as amizades  perdidas  refaçam o caminho da volta, tão necessário à vida em sociedade, à vida comunitária. A realidade, todavia,  é outra e nada tem a ver   com as nossas  específicas  subjetividades  tão arraigadas estão  ao  nosso  universo afetivo interior ultrajado.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O FIEL DE JUNQUEIRO


O FIEL DE JUNQUEIRO

Jacob Fortes

Em linguagem ornada de eruditismo robusto, portanto de difícil assimilação por quem se houve em leituras fortuitas, o escritor Guerra Junqueiro (1850 – 1923) narra, por meio do soneto intitulado “O FIEL”, a comovente história de um cão que vivia nas ruas e delas retirava o seu sustento. Aliás, as ruas, no dizer do escritor “João do Rio”, são “a mais niveladora das obras humanas”. É que as ruas tudo admitem: o bem e o mal, o evangelho e o crime. As ruas são igualitárias, socialistas, agasalhadoras, ignoram a erudição, transformam o significado dos termos, criam o chulo e o baixo calão, impõem aos dicionários as palavras que inventam. Mas voltemos ao cão, do Abílio Manuel Guerra Junqueiro; a dissertação das ruas fica para 2016.

Era um reles cão, sem coleira, acostumado ao vento e ao frio.  Para alimentar-se garimpava sobejos nas lixeiras e monturos. Durante as chuvas fortes ou frios rigorosos, abrigava-se nos portais, nos vestíbulos, mas ao menor ralho levantava-se e saía — envergonhado — pedindo desculpas, com os olhos, por haver ocupado um lugar que não lhe pertencia. Inofensivo, jamais mordera uma criança indefesa, sequer ladrara com quem quer que fosse mesmo com os molambentos de sujidade sem par. Porém, não faltava quem o fizesse correr à pedrada.

Certa feita um mísero pintor, boêmio, deparou-se com o solitário cão. Ao vê-lo, de olhar plácido e acolhedor, disse-lhe o pintor: — "O teu destino é quase igual ao meu, eu sou como tu és, um proletário roto, sem família, sem mãe, sem abrigo, e quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto, eu não irei achar o meu primeiro amigo? Tu és o meu amigo e eu sou o teu irmão; partamos, pois, juntos. O sofrimento a dois minora a dor”.

Depois de anos ombreados, dividindo, por igual, privações e dores, o pintor, por obra desses acasos agenciadores de bons e maus sucessos, fora contemplado com a glória, que o libertou da miséria.  Ambos, libertos de tantas vexações, passaram a desfrutar de vida lauta. O cão dormia em confortável tapete à borda do leito do pintor. Ao despertar, de manhã cedo, cuidava de acariciar festivamente o seu amo. Mas o pintor, inebriado de abastança, desandou pelos caminhos da luxúria, das paixões e da esbórnia, circunstância que o afastava cada vez mais do seu leal rafeiro, de quem, aliás, já não tolerava as carícias, aborrecíveis. A indiferença do pintor imprimia ao cão um sentimento de desgosto, cujos olhos, lânguidos e doces, se tornavam melancólicos ao feitio da melancolia da imensidão oceânica. Velho, preterido e negligenciado, muitas vezes se via castigado, até batido pelos criados que lhe davam pontapés quando se punha a ganir chorando o seu destino. Por se haver nojento e pelos em queda, o dono impunha-lhe a detenção para que não o acompanhasse às ruas. 

Certo dia, pressentindo a morte disse a si: "Não morrerei sem antes despedir-me do meu amo; quiçá seja em seus pés o meu último gemido”. Ao meter-se no quarto do pintor, este bradou colérico contra o cão.
— Que fazes aqui, ó sórdido animal? Hei de pôr fim à tua impertinência!
Mas, simulando amizade, consertou.
—Ó meu pobre fiel, tão velho e tão doente, acompanha-me, ainda que te custe.

E partiram os dois, no breu da noite, em direção ao cais, que ficava perto.   Aquele proceder, àquela hora, inspirou no cão um pressentimento nefasto. Enquanto o cão, pensativo, lançava o olhar sobre as trevas mudas recebia à face, com a imperturbável amargura do Nazareno, ósculos de Judas. E, resoluto, disse a si: “se este é o meu fadário pouco importa, foi ele que me abriu um dia a sua porta; morrerei se lhe dou com isso algum prazer.". Subitamente o pintor arremessou o cão nas águas profundas e geladas, mas junto, se foi o gorro de memoráveis recordações. De regresso a casa o pintor exclamava irado: “Por causa do cão perdi o meu estimado adereço, antes o tivesse envenenado; daria riquezas a quem pudesse reaver o meu gorro”.  Deitou-se, mas, inquieto, manteve-se insone durante o resto da noite pensando no gorro. E quando o clarão da manhã já era vívido ouviu bater à porta. Ergueu-se e foi abrir. Cheio de espanto recuou: era o fiel cão que voltara: arquejante, exânime, encharcado, a tremer, trazendo à boca o gorro do pintor. E tendo, com esse gesto, erguido para si o altar do sacrifício apenas tombou desfalecido! No plano terreal imolara as suas ilusões, mas restava o amparo da Celestial luz Santíssima.

Essa história de Junqueiro, real ou fabulosa, levará o leitor, inexoravelmente, a muitas ilações acerca da natureza dessas duas espécies que Deus engendrou e fixou sobre a terra: o homem e o cão.   

domingo, 20 de dezembro de 2015

Seleta Piauiense - Da Costa e Silva


A ARANHA

Da Costa e Silva (1885 - 1950)

Num ângulo do teto, ágil e astuta, a aranha
Sobre invisível tear tecendo a tênue teia,
Arma o artístico ardil em que as moscas apanha
E, insidiosa e sutil, os insetos enleia.

Faz do fluido que flui das entranhas a estranha
E fina trama ideal de seda que a rodeia
E, alargando o aronhol, os elos emaranha
Do alvo disco nupcial, que a luz do sol prateia.

Em flóculos de espuma urde, borda e desenha
O arabesco fatal, onde os palpos apoia
E, tenaz, a caçar os insetos se empenha.

Vive, mata e produz, nessa faina enfadonha;
E, o fascinante olhar a arder como uma joia,
Morre na própria teia, onde trabalha e sonha.

sábado, 19 de dezembro de 2015

No Caminho de Volta pra Casa Ninguém se Perde


No Caminho de Volta pra Casa Ninguém se Perde

José Pedro Araújo
Cronista e historiador

Vivi menos de quinze anos na minha terra, na minha querência, dos mais sessenta que tenho hoje. No mais, minha convivência com o velho Curador tem sido menor do que eu desejava. A necessidade de batalhar pelo pão de cada dia me levou para longe da singeleza que tanto aprecio, lugar em que vi a claridade do sol pela primeira vez.

Todavia, mesmo para passar fugazes momentos, começo a sentir aquele friozinho gostoso na barriga desde o dia anterior ao da partida. Aliás, preciso fazer um parêntese aqui para justificar porque uso tão frequentemente o nome Curador no mais das vezes em que me refiro à terrinha. Querem mesmo saber? Porque tem maior sonoridade, é mais palatável, deixa sabor na língua. Acho-o mais poético até. Sinceramente, experimentem falar Presidente Dutra ao se referirem à terra querida. Depois, empreguem o termo Curador. Sou de Presidente Dutra. Sou do Curador. Gosto mais da segunda frase. Entretanto, não discuto com quem ache o contrário. Trata-se, apenas e tão somente, de um jeito de ver as coisas, de sentir gosto ao pronunciar o topônimo das duas maneiras. Já quanto ao gentílico, tenho dúvidas se presidutrense não é mais gostoso de pronunciar do que curadoense. Mas, voltemos à estrada que trafegávamos antes de investir por este atalho.

Falei que já sinto um friozinho leve na barriga ao se aproximar o dia da minha viagem à minha querência. Esse sentimento aumenta à medida que ultrapasso os chapadões de Caxias e começo a ver os coqueirais de Codó, ali bem antes do Dezessete. Notem que estou trafegando pela estrada habitual e de melhor condição, a BR-316. Em Peritoró então, já me sinto em casa. Pouco mais de uma hora depois já avisto a torre da matriz de São Sebastião, ai então o friozinho se transforma em pura adrenalina. A alegria de voltar para casa me faz entrar em profundo êxtase, em um estado de felicidade total.

Certo pensador inglês, George Moore, cunhou a seguinte frase: Um homem percorre o mundo inteiro em busca daquilo que precisa e volta a casa para encontrá-lo. É como me sinto ao voltar para casa. Tal alegria só encontro lá. Caminhar pelas ruas da cidade é como reviver um passado que sempre teima em voltar à memória. Sinto-me andando pela minha casa de morada. Não preciso da claridade para andar firme e seguro pelas ruas por onde sempre andei, corri, tropecei e aprendi a me erguer a cada tombo.

Estar com os meus, abraçar a minha mãe e os meus irmãos e amigos, é um aditivo a mais nesse alegre exercício de voltar no tempo. Claro, a falta que meu pai me faz, não pode ser substituída por nenhum outro sentimento. Do mesmo modo, sinto a falta daqueles parentes e amigos que já nos deixaram. Consolo-me ao adentrar em  alguma das casas onde moraram. Requer forças redobradas para impedir que as lágrimas me toldem os olhos. Somos recompensados com a imagem dessas pessoas nas fotografias pregadas nas paredes ou postadas sobre os móveis na sala. Sei que eles ainda estão ali, em espírito, mas, estão e sempre estarão.

Tenho procurado, nos últimos anos, conviver diariamente com as coisas do meu querido torrão, através das pesquisas. Tudo o que aconteceu no passado me interessa. Quero reviver os acontecimentos que nortearam a nossa caminhada para recontar a todos que se interessam pela história de um povo que precisou superar todos os tipos de dificuldades para tornar aquela região deserta e insalubre em um lugar bom para se viver. Deste modo, todos os dias estou em contato com o meu passado. O presente também me interessa sobremaneira. E as novas tecnologias tem facilitado isso. A internet e o telefone são instrumentos que me ligam diariamente ao meu velho e querido Curador. As tristezas e as alegrias são vividas quase em tempo real. Portanto, estou sempre retornando ao meu pedaço de chão.

Como agora quando tento passar para o papel o presente texto.     

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

POEMAS EM GARRAFAS AO MAR


Livro artesanal editado por Edson Guedes Moraes


17 de dezembro   Diário Incontínuo

POEMAS EM GARRAFAS AO MAR

Elmar Carvalho

No dia 27 de novembro, cedo da manhã, cheguei à portaria do prédio onde mora o poeta Rubervam Du Nascimento, meu amigo e conhecido desde o final da década de 1970, quando nos conhecemos, em Parnaíba, conforme já registrei neste diário. O vate não se fez esperar, e logo seguimos para Luzilândia, onde participaríamos do II Festival Literário das Águas – FLIÁGUAS. Eu faria uma palestra sobre o tema “A poesia no contexto das novas linguagens e recursos tecnológicos” e o Rubervam discorreria a respeito de “O Lugar do Poema”, em que ele aplicaria uma oficina poética. 

Embora nossa amizade tenha se mantido sempre firme, sem nenhuma espécie de arranhão, nos encontramos raramente, mas sempre que isso acontece a alegria e o congraçamento são efusivos, de sorte que a viagem de mais de quatro horas, posto que fui sem pressa, foi entremeada de histórias e de “causos” pitorescos, jocosos, anedóticos. Recordamos algumas conversas anteriores, mas surgiram muitas novidades, tanto minhas como dele.

Há muitos anos li texto, no qual o escritor Eduardo Galeano dizia que publicar livros é como meter uma mensagem numa garrafa e lançá-la ao mar; a possibilidade de que alguém a leia é muito remota. Exatamente por causa dessa frágil perspectiva, fiquei admirado de três, digamos, coincidências que Rubervam me relatou.

Disse-me que nos idos de 2003, numa viagem de fiscalização do Ministério do Trabalho, encontrou na cidade de Paulistana a professora Tânia Rosado Paranaguá, que lá se encontrava em trabalho de pesquisa sobre a oralidade de quilombolas da região. Ela lecionava na Universidade Federal de Pernambuco – Campus de Arcoverde, em cuja cidade residia. Ela lhe revelou apreciar minha poesia. Por que meios misteriosos alguns de meus poemas chegaram a seu conhecimento não posso imaginar, uma vez que nossas edições são pequenas e precárias, e sempre circunscritas a algumas poucas pessoas de Teresina e de duas ou três cidades interioranas.

O nosso poeta, em outra viagem a serviço, em 2004, encontrou em um restaurante da longínqua Parnaguá um rapaz de nome Evangelista de Lima, que se encontrava, sozinho a uma mesa, a ler um livro de poemas de H. Dobal. Por ser um fato raro, chamou a atenção de Rubervam, que entabulou rápida conversa com ele. Descobriu tratar-se de um leitor contumaz de literatura, que disse gostar de nossa poesia. Como meus versos foram esbarrar em plagas tão distantes e cair em terreno tão fértil também me é outro mistério, que prefiro não decifrar, para entender esse fato pouco provável como algo um tanto enigmático.

Rubervam também me falou que muitos anos atrás, ao participar de um debate sobre poesia na desvairada Pauliceia, encontrou o poeta José Almino, nascido em Pernambuco, que se referiu a minha poemática de forma elogiosa. Disse que a conheceu através do festejado poeta e sociólogo Clóvis Moura, que me incluíra na seção Quatro Poetas (do Piauí) da revista LB – Revista da Literatura Brasileira, número 6, na qual me encontro na agradável companhia de Da Costa e Silva, H. Dobal e Clóvis Moura. Aproveitei para ler e reler o grande poeta José Almino, que é a melhor maneira de se render homenagem a um literato, sobretudo numa época em que poucos leem os escritores e poetas nacionais.

Ainda na esteira dessas surpresas agradáveis, contei a Rubervam que havia recebido, alguns meses atrás, um e-mail do poeta e contista Edson Guedes Moraes, no qual ele, de forma elegante, me pedia “desculpas” por somente agora haver conhecido minha poesia. De forma surpreendente, no mesmo bilhete eletrônico, o poeta, que é também editor, anunciou-me que faria uma edição artesanal, de exemplar único, contendo o meu poema Noturno de Oeiras. Guedes foi além do anunciado, e poucos dias após me enviou um volume primoroso, verdadeira obra de arte, com o referido texto, devidamente ilustrado, em papel couchê de altíssima qualidade, e mais alguns exemplares artesanais (diria louçanias gráficas) de uma bela antologia de meus poemas. Sem dúvida, o escritor e poeta Edson Guedes Moraes recebera uma das garrafas lançadas ao mar, cujo conteúdo era alguns de meus textos poéticos.

Quando menos esperei, ante a agradável conversa que tivemos, eu e o poeta Rubervam chegamos a Luzilândia, onde fomos recebidos, com toda fidalguia pelo escritor e poeta Ivanildo Di Deus, que todos os anos, há mais de duas décadas, promove encontros literários e culturais em sua bela terra da luz, à beira do Velho Monge erguida.

Entre outros, lá estavam os poetas, escritores e historiadores Dalila Teles Veras (da qual tive a satisfação de receber os livros Solidões da Memória, estranhas formas de vida e Retratos Falhados), Adrião José Neto e João Renôr Ferreira de Carvalho. Em Luzilândia, Rubervam me autografou seu livro Espólio, vencedor do VI Prêmio Literário Livraria Asabeça 2007 – Categoria Poesia. Aliás, nos últimos anos o vate de A profissão dos peixes arrebatou importantes prêmios nacionais com a sua poesia sempre carregada de novidades estéticas e estilísticas.

À noite, em esplêndida homenagem, recebemos (Dalila, Adrião, Rubervam, Francisco Miguel de Moura, Hardi Filho (in memoriam), Cícero Brito, Glayds Castro e este cronista) o honroso Título de Cidadão Luzilandense, concedido pela Augusta Câmara Municipal de Luzilândia, em que todos os vereadores, o vice-prefeito Oliveirinha e os homenageados proferimos breves e comovidas palavras.       

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Latim de Michel Temer para Dilma


Latim de Michel Temer para Dilma

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

          Vice-presidente Michel Temer, em carta explosiva à presidente Dilma, inicia com provérbio latino: “Verba volant, scripta manent”. A presidente, que mal arranha o idioma pátrio, entendeu pela tradução: “As palavras voam, mas os escritos permanecem.” Um sacerdote, no sul do país, já havia utilizado, dias antes, a mesma frase latina, em blog, para detonar, violentamente, um colega padre.

Provérbios e princípios enriquecem o discurso, condensam o pensamento em reduzidas palavras, os latinos, especialmente, com agradável efeito sonoro. E caem na memória coletiva, citando-os na hora oportuna. Teólogo Santo Agostinho, mestre em frases de efeito e trocadilhos, imortalizou esta pérola sonora: “QUI CREAVIT TE SINE TE NON SALVABIT SINE TE”. Aquele (isto é, Deus) que te criou sem sem ti (isto é, sem tua vontade) não te salvará sem ti ( sem tua colaboração). O uso repetido desses recursos estilísticos não deve servir de exibicionismo retórico, especialmente nas peças de defesa, acusação, condenação e teses acadêmicas, recheadas de juridiquês intoleráveis.

Pilatos, governador romano, apresentou Jesus à multidão vociferante, depois de açoitado e coroado de espinhos: “ECCE HOMO” - eis aqui o homem. O termo HOMO significava indivíduo desprezível, em vez de  VIR, isto é, varão respeitado. Mandou escrever na cruz debochada frase: “IESUS NAZARENUS, REX IUDEORUM” - Jesus Nazareno, Rei dos judeus. Adversários não concordaram. Pilatos reagiu: “QUOD SCRIPSI SCRIPTUM” – o que escrevi está escrito. Autoridades adoram repeti-la.

O cônsul, general e imperador romano, Júlio César, ao ver o exército inimigo nas Gálias, soltou : “ALEA IACTA EST” – a sorte está lançada. Retornou a Roma, aplaudido no senado, pronunciou a famosa frase: “VINI, VIDI, VICI” - vim, vi, venci.

Nas escolas do passado não muito remoto, estudava-se latim, grego e francês. Veteranos ilustres ainda guardam na memória frases, principalmente latinas, extraídas de obras clássicas. Estudantes eram cobrados nos exames orais e as declamavam no recreio.

No seminário, o futuro músico Belchior e eu  disputávamos quem soubesse mais frases decoradas. Nos eventos, enchia meus textos com citações, vaidosamente. Amigo radiomador, nos encontros no shopping, dispara um clássico latino a cada cinco minutos de conversa. Demais!


Nas velhas escolas, a leitura obrigatória de clássicos latinos e gregos  enriquecia o vocabulário português, originado daqueles troncos linguísticos. Como me esquecer das Catilinárias, de Marco Túlio Cícero, tribuno de brilhante retórica, político e filósofo romano do início do cristianismo? A primeira frase de um de seus quatro discursos no senado, acusava Lúcio Sérgio Catilina, cônsul romano, de pretender derrubar o governo republicano e apoderar-se do poder e das riquezas, juntamente com os apaniguados: “QUOUSQUE TANDEM ABUTERIS, CATILINA, PATIENTIA NOSTRA?” - até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Sentença bastante utilizada nos meios acadêmicos e jurídicos, para refutar alguém teimoso, que insiste em abraçar tese vencida, superada, sem chance de prosperar. Que sirva de reflexão à atual elite brasileira no poder.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Caetano José Teixeira


Caetano José Teixeira

Reginaldo Miranda
Da Academia Piauiense de Letras

Um dos maiores negociantes do Maranhão na passagem do século XVIII ao XIX foi o português Caetano José Teixeira, dono de empresas que negociavam por todo o império colonial português, sobretudo nas praças de São Luís, Belém, Lisboa, Porto e em Guiné, assim como nos outros domínios da África(AHU–CU–009, Cx. 75, D. 6495).

Nasceu cerca de 1760, na velha cidade do Porto, em Portugal, filho de Francisco José Teixeira e de sua mulher Francisca Gonçalves Teixeira, comerciantes de grosso trato, naturais e residentes na mesma cidade do Porto.

Embora mantivesse empresas na cidade do Porto, cedo veio para o Maranhão, estabelecendo-se em Alcântara, onde casou-seem 1790, com dona Rosa Maria Serra(n. 1770), filha de Bertolo de Deus Dourado, e fundou filiais de suas casas comerciais. Com o tempo amealhou grande fortuna, tornando-se “um dos principais comerciantes de escravos, importante credor do erário e representante do Banco do Brasil no Maranhão”(GALVES, Marcelo Cheche. Política em tempos de Revolução do Porto: constitucionalismo e dissenso no Maranhão. Passagens – Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro. Vol. 4. N.º 1. Jan-abril 2012. P. 4-38).

De sua vida localizamos algumas passagens na documentação histórica do período colonial. Em 23 de fevereiro de 1788, recebeu sesmaria de uma légua de comprido e três de fundo, no rio Mearim, a fim de estabelecer lavouras. Parece que acabara de chegar à colônia porque disse em seu requerimento que ainda não possuía terras(AHU–CU–009, Cx. 81, D. 6882).

Em 19 de outubro de 1799, obteve licença real e remeteu para estudar em Lisboa, seu filho Honório José Teixeira, de nove anos de idade, seguindo na galera Ninfa do Mar, do capitão Joaquim Adrião Rosendo.

Encontramos referências às apreensões dos grandes comerciantes com relação à remessa de mercadorias para Lisboa em 1807, diante do ultimato francês para que Portugal fechasse seus portos aos navios ingleses. Então, é intensa a correspondência do comendador Caetano José Teixeira com seus sócios de Lisboa e do Porto, buscando inteirar-se dos fatos; e daquele com o sócio Francisco Pedro Ardasse, de Belém do Pará, para quem repassava as informações privilegiadas que recebia do reino, orientando que continuasse a negociar, porém evitando a remessa imediata para o velho continente(LOPES, Siméia de Nazaré. As relações comerciais do Pará no início do século XIX. IV Conferência Internacional de História Econômica & IV Encontro de Pós-Graduação em História Econômica – USP).

Foi também um filantropo, concorrendo de boa vontade em 1810, “para as urgências do Estado, com diferentes donativos e ofertas de valor”, em razão da qual o príncipe regente D. João concedeu-lhe o hábito de Cristo com 12$000 réis de tença(ANRJ, Cód. 15. Graças honoríficas, v. 2, fl. 10). 

Em 18 de julho de 1815, doou a importância de quinhentos mil réis, para resgate de cidadãos portugueses que se encontravam cativos em Argel(Gazeta de Lisboa, n.º 284, de 20.11.1815).

Nesse mesmo ano protocolou petição cobrando dos herdeiros do governador e capitão general do Maranhão, Aires Carneiro Homem de Souto Maior, que faleceu com dívidas ao requerente(PT/TT/JIM-JJU/002/0113/00012).

Era também grande latifundiário, chegando a fundar no Maranhão, 36 feitorias, onde trabalhavam dois mil escravos. Quem assim informa é o deputado maranhense Francisco Gonçalves Martins, em discurso na Assembleia Geral do Império, em julho de 1826, a título exemplificativo, na defesa de um ponto de vista:

“Ainda há poucos anos faleceu um grande proprietário da província do Maranhão, que deixou um casal de mais de 4 milhões de cruzados; e tendo este homem feito um grande estabelecimento de lavoura, apenas conseguiu cultivar 36 feitorias e nisso empregou 2.000 escravos; e de certo que semelhantes estabelecimentos lhe absorveram mais de seiscentos contos de réis, e talvez oitocentos contos; eispois um exemplo prático, e de um proprietário bem estabelecido na província, qual foi Caetano José Teixeira” (Diário da Câmara dos Deputados a Assembleia Geral Legislativa do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia do Império, 1826 – 1829. P. 901).

De sua atividade comercial são vários os registros, a exemplo do “Bergatim S. Ana, que saiu do Porto para o Maranhão com carga da praça a Caetano José Teixeira”(Jornal do comércio, vol. 4).

Faleceu esse rico negociante em 1818, na cidade de Alcântara, no Maranhão, onde residia. Deixou descendência, entre os quais: comendador e coronel de milícias Honório José Teixeira(1790 – 28.9.1849), um dos baluartes da Independência no Maranhão, estudou em Lisboa e Londres; e, Maria Teresa Teixeira Vieira Belfort, que foi casada com o coronel José Joaquim Vieira Belfort (4.3.1770 – 28.9.1838), pais de Antônio Raimundo Teixeira Vieira Belfort (Barão de Gurupi).


Com essas notas resgatamos algumas informações sobre esse importante líder do comércio no império colonial português e iniciante de ilustrada família no Maranhão.