quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Uma lembrança antiga do Fonseca Neto


Moto em que dei carona ao Fonseca
Fonseca nos velhos tempos


Uma lembrança antiga do Fonseca Neto

Elmar Carvalho

Após sua concorrida festa de posse, encontrei ontem, na APL, o novel acadêmico Fonseca Neto. Perdi o posto de “benjamim” para ele, que fica agora na extremidade dos modernos, enquanto a professora Nerina Castelo Branco continua na extremidade dos mais antigos, ocupando o decanato. Seu longo discurso, foi bastante encurtado pela emoção e beleza do conteúdo, que nos prendeu a atenção e nos arrancou aplausos. Tive a honra e a satisfação, na qualidade de 1º secretário da Academia, de ler o seu termo de posse, e fiz questão de fazê-lo em alto e bom som.

Conheço-o faz mais de trinta anos, quando ele esteve na solenidade em que tomei posse do cargo de presidente do Diretório Acadêmico “3 de Março”, em Parnaíba. Depois, o apoiei em sua campanha vitoriosa para o Diretório Central dos Estudantes – DCE-UFPI. Em 1979, encontrei-me com ele na praia de Atalaia, oportunidade em que sorvemos umas cervejas, e entramos em altos “papos”, de conteúdo cultural, político, ideológico, histórico, que a nossa ardente e emotiva juventude impulsionava.

Estiveram conosco outras pessoas, que as brumas do tempo já diluíram em nossa memória, mas, eu e ele, achamos que poderiam ser, entre outros, o Reginaldo Costa e o Bernardo Silva, do jornal Inovação, e talvez o poeta Alcenor Candeira Filho. Afinal, assim já se passaram mais de trinta anos. No calor e empolgação da conversa – e por que não confessar? – da libação etílica, perdemos a noção da passagem do tempo, e o fato é que o nosso bravo e novel acadêmico Fonseca Neto perdeu o bonde (no caso, o ônibus que o transportara ao litoral), mas não perdeu a esperança, como Drummond, em seu poema.

Seguiu comigo para Parnaíba, em minha motocicleta CG-125. Mas, para novo infortúnio do Fonseca, quando nos aproximávamos da cidade, minha moto parou de funcionar por falta de gasolina. Para atenuar a minha culpa, pela possível imprevidência, devo esclarecer que esse modelo de veículo não possuía, na época, mostrador de combustível, mas apenas um dispositivo manual para colocação na reserva.

Quando nos sentíamos desamparados, eis que um automóvel Brasília parou ao nosso lado. Era o deputado Elias Ximenes do Prado, meu conhecido, que nos oferecia carona. Aliás, em muito boa hora, pois o Fonseca conseguiu embarcar em ônibus da extinta empresa Marimbá, cuja agência ficava na avenida Capitão Claro, quase no cruzamento com a Álvaro Mendes. Consta que no outro ônibus, que trouxera o Fonseca, os seus colegas voltaram entristecidos, achando que ele teria se afogado ou teria sido arrebatado por alguma entidade marinha, e ido para as encantadas terras do sem fim.

O deputado Elias me levou a um posto de combustível, onde adquiri gasolina, e me conduziu até onde ficara minha motocicleta, que voltou a funcionar a pleno vapor. E voltei a varar o tempo e o vento, parafraseando um poema de Alcenor, dos nossos bons tempos de motociclistas.   

7 de março de 2010   

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

FILÓSOFO OU DEMAGOGO?



FILÓSOFO OU DEMAGOGO?

Antônio Francisco Sousa – Auditor Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)

                Ao que parece, não só o guru do atual presidente da república, de seus familiares, amigos, simpatizantes e maria vai com as outras é um cidadão havido por filósofo, ainda que, segundo se soube, nunca  haja concluído curso de graduação, pós-graduação, especialização ou doutorado em Filosofia, nem precisava, porque, segundo professor de português dos idos de nossa adolescência, “Filosofia é a ciência (?) – assim mesmo, interrogativamente - das causas e dos porquês”; logo,  não há como se concluir algo que sempre está em fase de criação, renovação, atualização, enfim, vivo, evoluindo;  também nosso ministro da Educação, ex-professor, colombiano, ilustre desconhecido até ontem, diz-se filósofo, nos moldes concebidos pelo velho mestre, uma vez que, a despeito da investidura em função pública de tamanha importância, faz o ministro questão de valer-se dos porquês, sem se preocupar, mensurar ou ponderar os possíveis efeitos de sua fala a respeito do que considera educação, matéria que, no mínimo, mereceria zelo e valorização de sua parte, por motivos óbvios: é seu mister cuidar dela.

                Pois bem, alardeou o ministro filósofo – não ouvimos nada que contrariasse a informação publicada, ou que viesse a transformá-la em notícia falsa, inverdade, pós-verdade – que as universidades públicas deveriam ser reduto ou espaço destinado às elites intelectuais. Se isso não é uma digressão filosófica, provavelmente, não seria também uma metáfora, mas uma falácia, asnice, uma demonstração de demagogia. Fechem-se, então, as universidades estatais – como aconselhou aqueloutro professor fosse feita às portas de delegacias voltadas ao atendimento da população feminina, em razão de situações absurdas por ele descritas -, porque, certamente, as intelectualidades elitizadas melhor se revelam quando passam a conviver em um mesmo – público e/ou privado - espaço cultural ou instrucional, com os não excepcionais gênios da inteligência e do saber. Cercear, de cara, o direito de ocupar tais recintos ao suposto proletariado intelectual é uma aberração somente digna de ser pensada por alguém despreparado para assumir um ministério governamental do quilate do da educação; ou, quem sabe, talvez, por um indivíduo que nutra pretensões – se sua intenção não é outra senão apenas agradar àquele que o indicou ao cargo – de desconstruir todo o arcabouço pedagógico, filosófico e educacional construído por um brasileiro havido como um dos maiores pensadores da Educação – mero arrivista, na visão míope do governante federal. Aliás, tivesse inepto ministro  dedicado um pouco de seu tempo em examinar quem são os componentes, aqueles que, de fato, conseguem chegar até elas, perceberia ou concluiria que eles não são parte de uma elite intelectual, mas a própria, porque não se chega aos campus e campi universitários públicos -- mesmo se levando em consideração específicos grupos de indivíduos que recebem incentivo legal extra, na forma de cotas, como justa paga de uma dívida histórica para com seus ancestrais -,  sem razoável bagagem intelectual, cultural, instrucional e educacional; claro que, nem sempre, fornecida ou dispensada por entidades públicas de ensino fundamental e médio; portanto, já são as instituições públicas de ensino superior, habitat temporário de nossa elite intelectualizada. Se essas organizações não conseguem ter ou manter parte dela em seus recintos ou sob sua orientação, que se reinventem, para não permitirem fugas ou perdas dos melhores cérebros para instituições mais sérias e competentes.

                Se o conceito-tese que quis dar o ministro da educação em relação ao que considera elites intelectuais foi de que elas não são o conjunto formado por aqueles indivíduos mais bem preparados para absorverem e disseminarem conhecimentos e informações, mas aquela clientela composta de cidadãos com melhor e maior poder aquisitivo, mais bem aquinhoada economicamente, dir-se-ia, então, que ele agiu não como o filósofo que se soube seria, mas como um demagogo, talvez hipócrita. Menos mal, que a figura é um tanto desconhecida, ainda.

                Parece insofismável que quanto mais bagagem intelectual e cultural acumula o indivíduo, mais isso o torna capaz de adaptar-se às diversas e adversas situações existenciais; entretanto, naturalmente, tais virtudes, por si sós, não transformam quem as possui em competentes governantes, conselheiros, nem em irretocáveis servidores públicos; para que isso ocorra, não raro, faz-se necessário aliar a essa fortuna pessoal boa dose de humildade, de modéstia, seriedade e de comprometimento.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Gancho de tirar balde

Fonte: site da APAL


Gancho de tirar balde

Pádua Marques
Escritor e jornalista

No tempo que a Parnaíba era feito um buraco e nesse buraco não havia água que prestasse pra se beber, porque não havia água encanada, quase todo mundo, quase toda família tinha um poço no fundo do quintal. Poço que dava água da boa, limpinha e cristalina que quando trazida pra dentro do pote ou do filtro pra se beber, era coisa de causar refrescância na garganta e nos peitos.

Água pra lavar fundo de rede e roupa de todo mundo, lavar penico, prato, caneca, cozinhar, fazer café, tomar banho, aguar planta e até de vez em quando jogar no cachorro pra espantar as pulgas, molhar a pasta antes de escovar os dentes e outras tantas coisas, que se eu pego a contar não saio mais daqui hoje.

Em casa onde havia muita criança a mãe corria era estreito na hora de lavar tanta roupa e as redes na beira do poço. E pra quem um dia foi menino, a hora de encher os potes era uma missão dolorida quando se era preguiçoso. Porque nesse tempo ninguém sabia o que era água encanada e se ninguém sabia como era que a água passava dentro dos canos, calcule só conhecer uma torneira.

Eu vim conhecer uma torneira já quando havia trocado os dentes, quando fui um dia na casa de uma minha professora, dona Evangelina, filha do doutor João Silva. Foi uma maravilha aquela coisa de ferro saindo água por aquele bico fino. Aquilo só podia ser coisa de americano ou de gente que tinha muito dinheiro. Mas a história hoje é outra. Naquele meu tempo tudo que não agradava a gente ganhava logo um apelido. E um apelido pra quem era muito magro era gancho de balde.

Toda casa que tinha poço tinha que ter um gancho de tirar balde. Ou mais de improviso, um arame de tirar balde. Era feito de ferro ou de arame grosso e servia pras emergências quando o balde por qualquer razão caia no fundo do poço. Lá estava aquele monte de gente falando ao mesmo tempo, uns dando ordens, outros alarmando, outros falando nome feio, as mulheres botando os meninos pra dentro. Porque descuido em beira de poço é coisa de esfregar um olho e se está lá no fundo!

Gancho de tirar balde era assim feito aquele último recurso, um SAMU de poço. Caiu um balde e lá se corria a mão atrás dele na cozinha, na oficina ou na despensa. Vivia enferrujado, esquecido, todo danado, mas era cair um balde e lá estava ele, pronto. E o pior era quando o balde caia de borco. Danação. Horas e mais horas naquela tentativa de desvirar o bicho, botar a boca do balde pra cima. A paciência se esgotando.

Até que se resolvia de alguém, um menino desses bem danados de preferência, haveria de descer e desemborcar o balde e subir com ele. Descido e feito o serviço, lá subiam ganhando palmas e mais palmas, o menino, o balde e o gancho de balde. A gente espera daqui de cima e de fora, que não seja necessário, quando alguns prefeitos caírem no poço da gastança dentro de mais alguns meses, usar o arame de balde. Porque dá um trabalho danado tirar governo ruim do fundo do poço.   

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

JOVITA FEITOSA - AS GLÓRIAS E OS INFORTÚNIOS DE UMA HEROÍNA

Fonte: Google


JOVITA FEITOSA - AS GLÓRIAS E OS INFORTÚNIOS DE UMA HEROÍNA

Chico Acoram Araújo*

A orfandade

                A cearense Antônia Alves Feitosa, morando em terras piauienses, tornou-se uma das figuras mais importante e emblemáticas que o Brasil já conheceu. Ficou conhecida nacionalmente como Jovita Alves Feitosa, a heroína da Guerra do Paraguai, tendo inclusive seu nome inscrito, por força da Lei nº 13.423/2017, no Livro dos Heróis da Pátria, que se encontra exposto no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília.

Narremos, então, a vida e morte de Jovita Alves Feitosa que se tornou célebre em todo o Brasil, no ano de 1865, ao se alistar como voluntária da Pátria na Guerra do Paraguai, causando perplexidade e admiração de todos os brasileiros. Foi aclamada heroína da Pátria.

                Em Inhamuns, hoje Tauá-CE, um surto de cólera grassava implacavelmente nos anos de 1862 a 1864. O Ceará foi um dos estados do Nordeste mais castigados por essa terrível doença. Na época, Inhamuns tinha uma população de 14.060 habitantes. Do total da população, 510 pessoas foram infectadas, e dessas, 216 vieram a óbito.

Na localidade chamada Brejo Seco, nos confins de Inhamuns, uma família que ali residia chorava a perda de um ente muito querido, uma das 216 vítimas do surto de cólera. Morria d. Maria Alves Feitosa, deixando viúvo o senhor Maximiano Bispo de Oliveira e três filhos, sendo dois homens e uma moça de idade intermediária aos dois irmãos. Seu nome de batismo era Antônia Alves Feitosa, conhecida apenas por Jovita, apelido que recebeu desde quando ainda era criança. Esta nasceu a 8 de março de 1848, no mencionado lugar. A genitora da jovem, segundo os historiadores, era pertencente ao ramo pobre da destemida família dos Feitosa, sobrenome que Jovita recebeu ao ser batizada.

A história do Ceará conta que, durante muitos anos, o sertão de Inhamuns tornou-se palco de sangrentas guerras entre famílias latifundiárias em disputa por terras, notadamente entre os Monte e Feitosa, os Araújo e Maciel, Viriato e Calango, além dos confrontos entre os Cunha e os Pataca.

Nesse ambiente de contínuos conflitos, bem como das dificuldades existentes na obtenção dos meios de sobrevivência em terras com características de semiárido, sempre atingidas por longas estiagens, conviveu Jovita até os seus 16 anos de idade.

Assim, é razoável supor que aquela jovem tenha aprendido com seu pai e os irmãos o manejo adestrado com as armas de fogo com a finalidade defender a família e também sua pequena propriedade, uma vez que na região onde residiam verificavam-se, como foi dito acima, constantes brigas pela posse de terras.

O piauiense Fernando Lopes Sobrinho, jornalista, jurista e poeta, em uma sua crônica intitulada de “JOVITA ALVES FEITOSA, A HEROÍNA FRUSTRADA” (publicado na Revista PANÓPLIA Nº 6, de setembro de 1955, órgão oficial da Associação Profissional dos Jornalistas do Piauí) nos relata que aos 16 anos de idade, falecendo sua mãe, Jovita deixa seu lar, no Brejo Seco. Com as bênçãos do pai, a filha foi residir na cidade piauiense de Jaicós, distante 48 léguas, em companhia de um tio, Rogério Alves Feitosa, conceituado professor de música, que desde muitos anos residia daquela cidade do Sudeste piauiense. Dias antes, o Senhor Rogério chegara a Brejo Seco para uma visita aos parentes. Na ocasião, o pai, em comum acordo, decidiu que Jovita fosse morar com o tio em Jaicós.

No livro 10 MULHERES ANTES DA HORA, organizado pelo conceituado jornalista Fenelon Rocha, a jovem de Inhamuns é reverenciada no capítulo JOVITA FEITOSA -  a guerreira esquecida. Nesse capítulo, em coautoria com a jornalista Katya D’Angelles, Fenelon destaca que, em Jaicós, o professor Rogério Feitosa e sua esposa, sem herdeiros, fazem de Jovita uma verdadeira filha. Do tio, recebeu os ensinamentos da alfabetização e das notas musicais, e até mesmo alguns incentivos no manejo das armas. Com a tia, aprendeu a costurar e passou a ganhar algum dinheiro advindo dos serviços com costuras de camisas, vestidos e outras utilidades domésticas.

A Voluntária da Pátria

 Por cerca de um ano Jovita morou em Jaicós até que, em meado do ano de 1865, tomou uma decisão que viria mudar radicalmente sua vida. Perto de completar seus 18 anos de idade, a jovem resolveu se alistar como voluntária do exército brasileiro para lutar na Guerra do Paraguai. Sobre esse inusitado e nobre gesto patriótico, um jornal maranhense da época publicou uma crônica com o título Jovita Feitosa:

“Jovita Alves Feitosa é um exemplo que mais honra a história heroica dos filhos do império de Santa Cruz. Frágil pelo sexo mas forte e invencível pelo patriotismo, sentio também bater-lhe no coração o apelo da pátria, convocando seous filhos a defendel-a e honral-a.

Lopes Sobrinho enfatiza em sua crônica acima já mencionada que Jovita Alves Feitosa se sente muito entusiasmada ante à notícia de que o Tenente-Coronel José Lustosa da Cunha estaria recrutando homens residentes na vila de Santa Filomena para comporem o 2º corpo de Voluntários da Pátria, com destino à campanha do Paraguai. O maior desejo de Jovita era de participar nas frentes dos combates uma vez que manejava bem as armas de fogo. O jornalista diz ainda que certa noite, às escondidas, a jovem cearense, em companhia de um grupo de rapazes de Jaicós, foge da casa do tio rumo à Teresina, trajando roupas masculinas, cabelos cortados rente, os seios disfarçados com bandagens, e um chapéu de vaqueiro na cabeça. Era 20 de junho de 1865.

                Fenelon Rocha lembra também que, após uma longa e exaustiva viagem de 72 léguas, travestida domo um jovem rapaz, Jovita chega em Teresina no dia 9 de julho de 1865, onde se alista na circunscrição militar do 2º corpo de Voluntários da Pátria, sob o comando do Tenente-Coronel José Lustosa da Cunha, recebendo o registro de combatente com o nome Antônio Alves Feitosa.

Muito feliz por ter sido admitida na corporação, Jovita e outros alistados tiveram a ideia de visitar alguns lugares da nova capital da província do Piauí, fundada no ano de 1852 por Conselheiro Saraiva, então presidente da Província do Piauí. Foram conhecer o mercado da cidade, e quando o cortejo chegou à então Casa da Feira, uma senhora de olhar atento, que por ali estava a fazer compras, observou que um dos soldados era diferente dos demais. Desconfiada, a curiosa mulher aproximou-se um pouco mais daquele militar. Observou que o rapaz tinha altura média, pele morena, de feições indígena, o peitoral um pouco empinado, gestos calmos, e olhos negros brilhantes; de um olhar algo feminino.

Os traços fisionômicos daquele jovem soldado seriam semelhantes aos descritos no livro “Traços Biográficos da Heroína Brasileira Jovita Alves Feitosa”, de autoria do escritor e jornalista José Visconti Coaracy, publicado em setembro de 1965. Fenelon destaca ainda que esse escritor entrevistou Jovita, em 9 de setembro de 1965, quando do seu desembarque no Rio de Janeiro, vinda do Norte a bordo do vapor Tocantins. Nesse livro biográfico, o escritor fluminense descreve a jovem cearense como uma figura de “estatura mediana, maneiras simples e sem afetação”.

O ilustre escritor do Rio de Janeiro acrescenta ainda a respeito da jovem heroína brasileira: “seus olhos negros, cheios de luz, a tornam simpática; seus lábios fechados com alguma graça ocultam dentes alvos, limados e pontiagudos”. Finalizando a descrição biográfica da jovem sertaneja cearense, o escritor destaca: “Uma serenidade d’alma estende-se pelo seu todo, e mesmo lhe assegura uma confiança que a tranquiliza”.

Oportuno lembrar que a José Visconti Coaracy é atribuída também a autoria do livro romance-histórico com o título “JOVITA, A VOLUNTÁRIA DA MORTE”, que narra a vida e a morte trágica de Jovita Alves Feitosa, a grande heroína nacional. Quando foi publicado no ano 1967, o livro apresentava apenas as iniciais J.C. como autor.

Ainda sobre os traços da fisionomia de Jovita Feitosa, o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro de 10 de setembro de 1865, publica uma carta particular de um remetente de São Salvador, de 5 setembro daquele mesmo mês, onde em um dos seus parágrafos descreve a nossa heroína assim:

“A sargenta Jovita não é uma beleza, nem a conquistar esse título, mais próprio das pretenções femininas, se distina a sua expedição voluntária para os arraiaes do deus Marte; é porém um typo dessas sympathias raras que se recommendão pela idéa, sem desmerecer pela forma.”

  Mas retornemos então ao incidente ocorrido na Casa da Feira de Teresina. De acordo com a narrativa de Fenelon Rocha, a astuta senhora que bisbilhotava a nossa personagem verificou também que esta tinha as orelhas furadas.  Foi o estopim de uma grande confusão. Apalpando de forma audaciosa os seios do suposto soldado, a indistinta senhora gritou bem alto, dizendo: “esse aqui nunca foi homem; é uma mulher!” Num instante, em torno da acusadora com seu dedo-duro apontando para a acusada, uma multidão se formou. Sobre esse episódio, o notório jornalista complementa:

“A confusão cresceu e dois soldados receberam ordem para levarem Jovita até a polícia, onde chegou acompanhada por uma multidão – mas “livre de ferros sem coação, conforme registrou a imprensa teresinense da época. Foi recebida pelo próprio chefe de polícia, José Manoel de Freitas. O Dr. Freitas convocou o escrivão Raymundo Dias de Macedo para tomar o depoimento do soldado – isto é, da soldado. ”

Chorando copiosamente, a pobre sertaneja declarou que, na verdade, seu nome era Antônia Alves Feitosa. Falou que decidiu vestir-se de homem para ingressar, como soldado, no corpo de Voluntários da Pátria, e lutar nos confrontos da guerra do Paraguai, uma vez que sabia atirar com arma de fogo. Disse ainda, que não queria exercer funções apropriadas às mulheres, como por exemplo no atendimento aos feridos no Hospital do Sangue.

Vendo o seu iminente e sumário desligamento da corporação em razão da sua condição de mulher, Jovita recorre ao então Presidente do Piauí, Dr. Franklin Américo de Menezes Dória - depois Barão de Loreto - que governou a Província do Piauí de 28 de maio de 1864 até 3 de agosto de 1866, suplicando-lhe que a mantivesse como soldado do corpo de Voluntários da Pátria. Sobre esse pedido, o jornalista Fernando Lopes Sobrinho nos conta em sua mencionada crônica:

“A ele, Jovita pede para alistar-se como voluntária da Pátria, dizendo, segundo nos conta Pereira da Costa, na sua “Cronologia Histórica do Estado do Piauí”, “ser o seu maior desejo bater-se com os monstros, que tantas ofensas tinham feito ás suas irmãs de Mato Grosso, e vingar-lhes injúrias ou morrer nas mãos desses tigres sedentos”.”

O Presidente Franklin Dória, muito sensibilizado com as súplicas daquela jovem sertaneja, percebeu que esta poderia, como a primeira mulher a entrar em uma corporação militar no Brasil, servir de exemplo de patriotismo na defesa do país contra os ataques covardes de Solano Lopes, o ditador do Paraguai. Com essa estratégia, Franklin Dória imaginou que Jovita poderia servir como uma espécie de garota propaganda de uma campanha de motivação para aumentar o contingente de voluntários da pátria da Província do Piauí. Sabe-se que na época, ao contrário daquela jovem mulher, muitos rapazes fugiam do alistamento militar, assim como o diabo foge da cruz.

O Presidente Dória não teve dúvidas. Além de autorizar a reintegração de Jovita Alves Feitosa no 2º Corpo de Voluntários, ainda lhe concedeu as divisas de 2º Sargento daquela corporação.

O futuro mostraria que Franklin Dória tinha razão em alistar pela primeira vez uma mulher na corporação militar piauiense. Jovita Feitosa, em pouco tempo, tornou-se célebre em todos os lugares aos quais passava, recebendo manifestações de louvores e admirações. Os jornais de todo o país não paravam de publicar matéria sobre essa valente guerreira, com destacadas manchetes. Os fotógrafos esmeravam-se para conseguir reproduzir a imagem da jovem soldado, e ganhar algum dinheiro com a venda das suas fotos.

Em razão disso, a adesão dos piauienses no corpo de voluntários da Pátria foi bastante significativa, chegando a mais de 400 militares. Destes, cerca de 200 advieram da vila de Parnaguá, no Sul do Estado, transportados para Teresina em várias balsas de buriti e um velho bote de madeira; os demais eram oriundos de diversas localidades piauienses.

Sobre isso, dois anos depois, o próprio Franklin Dória confirma a importância que Jovita Alves Feitosa teve, como grande incentivadora, no êxito do processo de recrutamento dos voluntários da Pátria no Piauí.

 “(...). Tolerei, é verdade, que ella usasse das insígnias de 2.º sargento; o que alias, acedendo o enthusiasmo publico onde quer que ella se apresentou, contribuiu para facilitar a aquisição de muitos voluntários.”

O trecho supra consta da carta que Franklin Dória dirigiu aos piauienses, divulgada no jornal “A IMPRENSA”, no ano de 1869, em resposta a um discurso maledicente proferido pelo Deputado piauiense Coelho Rodrigues na Câmara do Deputados, no Rio de Janeiro, e publicado no Jornal do Comércio (RJ), onde este parlamentar manifestava dúvidas sobre as despesas realizadas, em 1865, com o 2º corpo de voluntários do Piauí, bem como a respeito da nomeação da Jovita Alves Feitosa como 2º Sargento, quando Dória ainda era presidente daquela província.

Heroína, celebridade e glórias

No dia 10 de agosto do ano de 1865 esses bravos guerreiros seguiram rumo ao Rio de Janeiro. Descendo pelo rio Grande dos Tapuias, o nosso Parnaíba, o 2º corpo de voluntários do Piauí chega ao litoral, onde embarcaram no vapor Gurupy. Da Parnaíba o batalhão segue para São Luís, onde o mesmo é recepcionado com muita alegria e satisfação. Jovita Feitosa foi a mais festejada. No grande teatro São Luiz lhe foi preparado um espetáculo de honra e foi lhe oferecido um camarote especial enfeitado com a bandeira nacional. Ali, a heroína recebeu as maiores ovações e ramalhetes de flores, além de um grosso cordão e crucifixo de ouro. Sobre a estadia de Jovita na capital maranhense, um jornal local publica a seguinte notícia:

“Traja calça e saiote,com  fardeta e boné, e o cabelo cortado a escovinha.”

“Os maranhenses tem prestado á heroina todo o apreço e consideração de que ella é credora. A Exm.ª família do Sr. tenente Campos ajudante de ordens da presidencia, em cuja casa se hospedou, tem dado á heroína distincto agasalho, e ahi tem sido a mesma comprimentada por innumeras pessoas. ”

Em São Luís, a tropa piauiense embarcou no vapor Tocantins, embarcação de grande porte, com destino ao Rio de Janeiro, fazendo escalas nos portos de Recife e Salvador, além de outras cidades do Nordeste. Em Recife, o presidente da Província de Pernambuco, o piauiense, Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá, recepciona em Palácio do Governo seu irmão e comandante do 2º corpo de Voluntários do Piauí, o tenente-coronel José Lustosa da Cunha, acompanhado da oficialidade do corpo de voluntários e também da 2º sargento Jovita Alves Feitosa, que recebeu todas as considerações de apreço e respeito. Na ocasião, a jovem militar foi muito festejada por uma multidão que ali a esperava. Em Salvador e Paraíba, também não foi muito diferente de São Luís e Recife.  O povo recebeu Jovita com muito entusiasmo e aplausos. Na Paraíba, segundo Fernando Sobrinho, uma comissão de senhores foi a bordo do vapor Tocantins para prestar homenagens à voluntária vinda do Piauí, presenteando-lhe com um rico anel de brilhantes. 

No dia 9 de setembro de 1865, após um mês viagem desde que partiu de Teresina, o 2º corpo de Voluntários do Piauí, a bordo do vapor Tocantins, chega finalmente ao Rio de Janeiro, a então capital do Brasil. Por esse tempo, Jovita já se tornara célebre em todo o país. No cais do porto, uma multidão aguardava a jovem militar. A curiosidade era enorme. Com o desembarque da tropa, muitas pessoas, acotovelando-se, corriam em sua direção para conhecer e cumprimentar a famosa heroína da Guerra do Paraguai. 

Alguns dias depois da chegada à Corte, convicta de que iria para o front de batalhas combater os inimigos paraguaios, Jovita teve uma grande e dolorosa desilusão. O Ministro da Guerra encaminha uma correspondência, datada de 16 de setembro de 1865, ao tenente-coronel José Lustosa da Cunha, comandante do 2º Corpo de Voluntários do Piauí determinando que Jovita Alves Feitosa não acompanhasse seus companheiros rumo às regiões onde ocorriam os confrontos armados, por entender não existir nas leis e regulamentos militares disposições que permitissem as mulheres sentarem praça nos Corpos do exército, e tampouco na Guarda Nacional, ou de Voluntários da Pátria.
 Entretanto, a citada carta permitia que Jovita embarcasse com as tropas para prestar serviços compatíveis com a natureza do seu sexo, como por exemplo, nas atividades de enfermarias, no apoio aos doentes feridos em combates, “cuja importância podem tornar a referida voluntária tão digna de consideração, como de louvores o tem sido pelo seu patriótico oferecimento”, finaliza o Ministro.

Sobre o alistamento de Jovita no Corpo de Voluntários, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, publica em setembro de 1865 um texto com o “A heroína brasileira” de autoria de um cidadão que assina apenas com iniciais J.M.C., onde faz severas críticas ao Presidente da Província do Piaui, Dr. Franklin Dória, exigindo-lhe que dissesse “em que se firmou para fazer semelhante aceitação e conferir-lhe o posto que lhe mencionamos” [2º sargento]. Complementa ainda o texto apócrifo:

“Nos exércitos em campanha, muitas mulheres, quer de soldados ou não, acompanhão e prestão reunidas á eles, serviços uteis como sejão, lavar, cozinhar e engomar a roupa dos praças. (...); mas não poderá jamais lançar mão de um sabre e bater-se quando se apresentão as ocasiões. ”

Apesar do tom conciliatório da correspondência do Ministro da Guerra, a brava sertaneja cearense não aceita a proposta de atuar como enfermeira junto ao Corpo de Voluntários, e sim pegar das armas e combater os inimigos na Guerra do Paraguai. Jovita não desistiu do seu objetivo.  Por mais de uma vez, solicitou ao Ministro da Guerra que reconsiderasse tal decisão. Não logrou êxito. Com o seu afastamento da corporação militar do Piauí e a perda da sua insígnia de 2º sargento, sem o devido amparo do Governo, a pobre moça se viu completamente abandonada em terras estranhas. O mundo desabou aos seus pés. Seus sonhos e ideais, tudo acabado. Desiludida, Jovita decidiu voltar para o Piauí. Mas retornar como, se não tinha dinheiro para comprar suas passagens de volta?

Vendo o estado de desolação e penúria em que se encontrava Jovita Feitosa, um grupo de admiradores da valente nordestina, e com o apoio de empresários do setor de teatro do Rio de Janeiro, consegue realizar alguns dramas e espetáculos com a finalidade de arrecadar fundos para ajudar a incompreendida voluntária da Pátria na aquisição de passagem e outras despesas no navio que a levaria de volta para província do Piauí.

A decadência

Em meados de outubro de 1865, Jovita Feitosa, tendo recebido o dinheiro arrecadado por aquela generosa gente, retorna para o Piauí a bordo de um vapor que partia com destino aos portos do Norte. Nos primeiros dias de outubro, Jovita desembarca em São Luís para, em seguida, embarcar no vapor Camossim rumo à cidade de Parnaíba no Piauí. Por motivo ignorado, a ex-voluntária não pode tomar aquela embarcação, tendo a mesma que viajar por terra para o Piauí. Sobre esse acontecido, o jornal PUBLICADOR MARANHENSE, de 16 de novembro, publica um expediente do Governo da província do Maranhão, datado do dia 13 do mesmo mês, com os seguintes termos:

“ – Ao Exm. Presidente da província do Piauhy. – Comunico a V.Exc. que Jovita Alves Feitosa, de que trata o meu officio de 9 do corrente não poude seguir no vapor Camossim para a Parnahiba, com destino a essa capital. Segue porem para Caxias, afim de transportar se d’aquella cidade para essa.”

Chegando em Teresina, Jovita hospeda-se na residência do Sr. Fernando Costa Freire, inspetor da tesouraria de fazenda, em obséquio especial ao Sr. Presidente da Província do Piauí, Dr. Franklin Dória. Aí permaneceu até o dia em que recebeu uma certa quantia que estava aguardando do Rio de Janeiro, como parte do dinheiro arrecadado em campanha a seu benefício. Nesse mesmo dia, a ex-voluntária, a bordo do vapor Paranaguá, parte para o porto de São Gonçalo, hoje cidade de Amarante. De lá, Jovita Feitosa segue, por terra, até a casa de seu tio Rogério Alves Feitosa, em Jaícó-PI. 

Entretanto, a jovem sertaneja cearense não se conservou em Jaicós por muito tempo. Com seu espírito determinado para aventuras, deslumbrada ainda pelas luzes de uma cidade grande, e vendo que os seus dias, na casa do seu Tio Rogério, tornavam-se intensamente monótonos e intermináveis, observa que sua família denotava incompreensões sobre sua conduta recente. Então decide morar em definitivo na Corte. A 18 março de 1866, chega no porto do Rio de Janeiro o vapor “PARANÁ” trazendo a bordo vários passageiros, dentre os quais a nossa célebre heroína Jovita Feitosa. Ao descer do navio, Jovita observou que as poucas pessoas que estavam ali no local, apenas cumprimentavam seus próprios parentes que acabavam de desembarcar. Não houve vivas, aplausos ou louvores para aquela ex-voluntária. Sequer um olhar de curiosidade recebeu. Se recebeu, foi um olhar de indiferença. Jovita Feitosa, o mais que depressa, saiu correndo dali a procura de um lugar para ficar.

Os infortúnios e a tragédia

Daí em diante, quase nada se sabe a respeito Jovita Feitosa, com exceção de outra chegada sua ao porto do Rio de Janeiro, a bordo do vapor “Galgo”, vinda de Montevidéu, capital do Uruguai.

Segundo José Alves Visconti Coaracy, no seu livro “Jovita a Voluntária da Morte”, conta que o motivo da viagem da jovem cearense era empregar-se nos hospitais de sangue, como expiação de suas culpas. Não conseguindo o emprego nessa Capital, Jovita parte para Buenos Ayres. Lá também não obtém êxito. Bastante resignada e com tantas contrariedades, a ex-voluntária volta para o Rio de Janeiro.  Esse retorno, na realidade, ocorreu em 8 de janeiro de 1867, conforme registros de saídas e entradas dos postos da Corte, publicados na edição do dia seguinte do jornal CORREIO MERCANTIL (RJ).

Na metrópole, Jovita viveu alguns amores fortuitos, até conhecer um homem que pensava ser o grande amor de sua vida.

Sobre a vida de Jovita daí em diante, alguns jornais da época fazem graves insinuações a seu respeito. Por exemplo, há citações que Jovita “balda em recursos, sem amparo, deixou-se transviar-se”; ou “era uma das elegantes do equívoco”. Ou ainda “arremessou-se no caminho da perdição e da amargura”, como disse o historiador Pereira de Vasconcelos (Seleta Piauiense).

Entretanto, também se verifica notícias veiculadas em jornais defendendo a honra da sertaneja. Veja, por exemplo, um editorial publicado no jornal A IMPRENSA (PI), do mês de setembro de 1865, que contesta com veemência um artigo do jornal MODERAÇÃO, sob o título de “Escandalo”, onde um jornalista chama a cearense de prostituta sem, contudo, mencionar-lhe o nome. Diz o editorial da A IMPRENSA:

“O artiguista da Moderação, a quem cabe a gloria de ter-lhe substituído a consagração popular de heroína pelo apitheto afrontoso que se cospe na face da mulher perdida, não ignora que a Jovita, aqui chegando ultimamente, de volta do Rio, foi logo hospedada, em obséquio especial ao Exmo. Sr. presidente, em casa do honrado pae de família, o Sr. Fernando Costa Freire, inspector da tesouraria de fazenda”.

 O personagem-autor do já citado livro romance-histórico, o amigo e confidente da nossa heroína, narra que Jovita passou por diversos episódios e se afeiçoou muito a um amante. Na verdade, apaixona-se loucamente por um homem, mesmo sentindo da sua parte  habitual indiferença. Na vida real, o amante chamava-se William Noot, um engenheiro inglês que veio trabalhar temporariamente na companhia de esgotos do Rio de Janeiro. Nesse tempo, Jovita morava com uma amiga na rua das Mangueiras nº 36. Já o amante residia em um quarto alugado em uma casa situada na praia do Russel nº 43, não tão distante da casa de Jovita.

Esse cavalheiro da Inglaterra, tendo terminado o contrato com a companhia do Rio, partiu de imediato para a sua pátria. Quando soube da notícia que seu homem tinha retornado para Inglaterra, Jovita, muito surpresa, entrou em estado de choque e comoção; uma profunda tristeza lhe abateu, levando-a a pensar até mesmo tirar sua própria vida. Correu mais que depressa para a casa do amante. Lá chegando, por volta de 3 horas da tarde, foi informada por uma empregada que de fato o rapaz havia mesmo retornado para a pátria distante. Jovita pediu a empregada da casa para entrar no quarto que até então servira de dormitório para o amante e também para seus encontros amorosos. Jovita pede também à empregada papel e tinta. Chegando no quarto, senta-se na cama, e começa a escrever alguma coisa.

Dois dias depois, lê-se no Jornal do Comércio (de Sexta-feira, 11 de outubro de 1867) a seguinte manchete:

"Suicídio"

 “Suicidou-se ante-hontem de tarde, na casa da praia do Russel n. 43, Jovita Alves Feitosa, natural do Ceará, a mesma que viera para esta côrte com o posto de sargento de um batalhão de voluntários d’aquella província, e que tendo depois tido baixa aqui ficou residindo. ”

O Correio Mercantil (RJ) também publica matéria sobre o suicídio de Jovita Feitosa, acrescentando dentre outros detalhes, o seguinte:

“Ante-hontem pelas 6 horas da tarde, a chamado do Sr. tenente-coronel João Frederico Russel, dirigiu-se o Sr. subdelegado da freguesia da Gloria, a uma das propriedades daquelle senhor, na praia do Russel n. 43, [...] e, penentrando, acompanhado do respectivo escrivão, peritos e testemunhas, em um dos quartos da casa, que até á véspera daquelle dia servira de dormitório ao engenheiro da companhia de esgotos William Noot, o qual seguira no último paquete para a Europa, encontrou atravessada sobre uma cama de ferro, com as pernas pendentes ao chão e a face voltada sobre o lado direito, o cadáver da infeliz Jovita, tendo implantado obliquamente da esquerda para a direita e de cima para baixo, na região precordial, um canivete em forma de punhal, com cabo de madreperola.”

Diz ainda a citada matéria que no bolso do vestido de sarja preta que trajava a pobre moça foi encontrado um bilhete, duas fotografias de Noot, alguns escritos deste, entre os quais uma carta em inglês que comunicava à Jovita que estava partindo para a Inglaterra, e também várias poesias manuscritas. A carta do amante nunca foi Lida por Jovita, uma vez que esta não dominava o vernáculo inglês.

No bilhete deixado por Jovita, assim estava escrito:  “Não culpem a minha morte á pessoa alguma. Fui eu que me matei. A causa só Deus sabe”.

Sobre esse suicídio, o Jornal CORREIO MERCANTIL acrescenta em sua notícia que se não fosse a ação de um caridoso senhor de mais de 60 anos, empregado do depósito da Santa de Misericórdia do Rio de Janeiro, ganhando um irrisório salário, o corpo de Jovita Feitosa teria sido enterrado na vala comum do cemitério do Caju. Esse senhor, em cujo peito carrega uma medalha da Independência, chamava-se Francisco Mendes de Araújo, combatente da campanha da Bahia, onde foi ferido nos combates. Esse velho soldado foi quem com suas benfazejas mãos pedira a diversas pessoas uma esmola para que a infeliz ex-voluntária tivesse uma sepultura, embora humilde, mas em cova separada.

“Por mais degradante que tenha sido a existência de Jovita nos últimos tempos, a história de sua vida torna-se digna de compaixão”, finaliza a notícia do o jornal Correio da Manhã, de 11 de outubro de 1867.

Para as considerações finais sobre essa valorosa mulher que veio dos sertões de Inhamuns-CE para transformar-se em um belo exemplo de patriotismo, recorro ao conceituado jornalista e escritor oeirense Bugyja Britto que, com muita propriedade, disse a respeito da sofrida heroína cearense: “Jovita Alves Feitosa, com a sua história triste e épica, deve ser considerada com a mais alta expressão de civismo e de bravura da mulher nortista-brasileira. ”

(*) Chico Acoram é funcionário público federal, contador e cronista

Fonte: blog Folhas Avulsas   

domingo, 27 de janeiro de 2019

Seleta Piauiense - Danilo Melo

Fonte: Google


Noite

Danilo Melo (1965)

Noite na cidade
O coração vagabundo de um poeta do terceiro mundo
Bate e bate
Esqueletos em volta de surfistas de esgoto
Contemplam a lua cheia de farsa
Ratos no porão entoam Bach
O poeta traz a barriga cheia e os olhos encharcados
De poesia
A história de seus olhos é viva
A história de seu olhar é pálida.

Fonte: A poesia parnaibana, 2001   

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Brejo de Santo Inácio


Brejo de Santo Inácio

Reginaldo Miranda

No último sábado pela manhã(19/1) visitamos a antiga fazenda Brejo de Santo Inácio, hoje cidade de Santo Inácio do Piauí, que fora sede jesuítica no vale do rio Canindé, durante a primeira metade do século XVIII. O fizemos na companhia de diversas pessoas gradas de nossa sociedade, como integrante da Expedição Sertão Colonial.

Foram aqueles sertões conquistados a partir de 1671, quando da entrada pioneira dos irmãos Domingos Afonso e Julião Afonso, os mafrenses, que mais tarde por fruto dessas conquistas seriam alcunhados, respectivamente, Sertão e Serra. Pois bem, cada um deles foi agraciado com dez léguas de sesmarias no vale dos rios Canindé e Piauí. Outras tantas sesmarias foram concedidas aos seus sócios Francisco Dias d’Ávila e Bernardo Pereira Gago. A estas, que foram concedidas em 1676, se seguiram muitas outras concessões.

No entanto, aquelas terras de que nos reportamos ficaram pertencendo a Domingos Afonso Sertão, que as arrendou a prepostos, nelas situando os primeiros rebanhos de gado curraleiro ou pé-duro. Falecendo aquele rico nababo em 18 de junho de 1711, legou todo o seu patrimônio para os padres da Companhia de Jesus, que logo se assenhorearam dos bens. É sabido que foi o padre Manoel da Costa, o primeiro jesuíta que veio inventariar os bens, tomar posse e administrar o imenso patrimônio que lhes foi legado pelo moribundo defunto. Ao que consta estabeleceu-se inicialmente na fazenda da Torre, no vale do rio Canindé. Entretanto, logo percebeu que aquela localização não lhe era adequada.

Foi, portanto, há cerca de trezentos anos que ele e seus irmãos de fé descobriram ali mesmo naquele vale canindeense, local mais apropriado para situar a sede de seus negócios na bacia parnaibana. Fundaram fazenda no alto de uma colina circundada por baixões e brejos, a que denominaram Santo Inácio, em homenagem a Ignácio de Loiola, patrono de sua ordem. Ali no vale ribeirinho separaram três olhos d’águas a que circularam com pedras, sendo um designado para o banho, outro para o consumo humano e, por fim, um terceiro para os animais. No alto da colina construíram casa, capela e curral que, embora ruindo com a ação do tempo foram reconstruídos os dois primeiros sobre os antigos escombros e ali estão para testemunhar três séculos de história da fundação de nossa sociedade.

Percebemos que a sede fora construída em terreno elevado que se atira sobre o vale ribeirinho. Certamente, foi primordial para a escolha do local questões de segurança, pois dali podiam os religiosos surpreender visitantes que se aproximassem desde relativa distância; e naquela época em que ainda perambulavam tribos indígenas, assim como malfeitores e cavaleiros solitários, não é de se desprezar essa hipótese; também, o ponto elevado servia para fiscalizar o rebanho que pastava no vale ribeirinho; certamente, questões de estética e arejamento ajudaram nessa escolha. Por outro lado, as nascentes que rumorejavam no terreno embrejado que circunda o pequeno planalto foram primordiais para os jesuítas ali assentaram a sua sede administrativa. Por fim, no brejo que se avizinhava podiam plantar suas lavouras e apascentar os cavalos de montaria e as vacas paridas para a ordenha matutina. Era um oásis no sertão semiárido. E o Canindé em seu percurso temporário distava cerca de meia légua.

Dali administraram suas fazendas, mandando vender anualmente os bois excedentes nas feiras de Pernambuco e Bahia, até quando, em 1758, foram expulsos da colônia por ordem do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, todo poderoso conde de Oeiras, depois marquês de Pombal. Nesse período o Brejo de Santo Inácio foi uma fazenda que se fez notar. Depois, seriam todas as fazendas confiscadas e passariam à coroa. Em pouco tempo foram divididas em três inspeções, Piauí, Nazaré e Canindé, cabendo ao Brejo de Santo Inácio sediar essa última. Então, na antiga sede jesuítica passaram a morar e administrar as fazendas daquele vale os inspetores nomeado pelo governo colonial. Eram as fazendas do Real Fisco, depois Fazendas Nacionais. Com a Constituição de 1946, por proposição do deputado constituinte Adelmar Rocha, nosso parente, passaram ao domínio do Estado, ficando conhecidas por Fazendas Estaduais. Mas já não eram nem sombra do que foram no passado.

Todavia, com a casa e capela restauradas sobre as antigas ruínas, perdurou por todo esse tempo o Brejo de Santo Inácio, produzindo bois para abastecer a região de Oeiras e cidades que iam nascendo naquela região. Com o ciclo da maniçoba e carnaúba, fixaram-se novos moradores e pequena feira foi se fortalecendo a partir do segundo quartel do século passado, assim se formando pequeno povoado. O velho Brejo de Santo Inácio, testemunho vivo da história piauiense e da conquista dos Sertões de Dentro, resistiu ao tempo, fez-se povoado e hoje é uma bela cidade, chantada em estreito planalto, entre brejos e baixões que deságuam no rio Canindé. Foi elevado à categoria de cidade pela Lei estadual n.º 2550, de 9 de dezembro de 1963, instalando-se oficialmente em 30 de abril do ano seguinte. O nome. Ah, o nome mudaram para Santo Inácio do Piauí. Para nós, melhor seria o velho topônimo colonial. Fica esse registro como testemunho de nossa visita e homenagem àquele povo ordeiro e trabalhador. Queira Deus, possam ser revitalizados os “banheiros dos padres”, preservada a história e inserida aquela bela cidade no roteiro turístico do Brasil. É o nosso desejo.

Fonte: Portal Entretextos
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* REGINALDO MIRANDA, escritor e advogado, é membro da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Preside a Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí(AAPP).   

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Expedição ao Sertão Colonial


Na foto, vê-se, entre outros: Márcio Freitas e seu filho, Dilson Tavares, Elmar Carvalho, Rubens Luna e o prefeito de Amarante, Diego Lamartine Teixeira
A fábrica de laticínios do Engenheiro Sampaio, quando ainda estava bem preservada. Fonte: Google

Expedição ao Sertão Colonial

Elmar Carvalho

1. AMARANTE

Na quinta-feira, dia 17, recebi telefonema do des. Carlos Brandão, em que me convidava a participar da “Expedição Sertão Colonial”, a ser iniciada no dia seguinte, pela manhã. Me falou do cronograma e objetivos da viagem. Ao final de seus argumentos, com que procurou me convencer a aderir à empreitada, disse-lhe: “Temo não poder participar, vez que vendi minha picape ao meu filho, que mora em Manaus”. Mas ele me respondeu que me conseguiria uma carona, pelo que fiquei sem motivo para dela não participar. Em virtude de eu lhe ter falado sobre um antigo projeto meu para a cidade de Amarante, ele me disse que me facultaria a palavra, no momento das falações.

Quando cheguei ao parque da Floresta Fóssil (ponto de encontro para a saída), conduzia um exemplar de meu pequeno romance Histórias de Évora, para ofertar a algum amigo. Logo fui abordado por uma pessoa que ficou interessada e curiosa sobre o livro e seu conteúdo. Em rápidas palavras, lhe expliquei que a Évora de minha ficção era uma cidade fictícia, misto de Parnaíba e Campo Maior dos anos 1960/1980, bem como, em menor escala, de outras urbes de nosso estado.

Acrescentei que, como pano de fundo, ele tratava um pouco da história recente, econômica e social do Piauí, sobretudo da decadência do extrativismo econômico e da agonia, paixão e morte dos velhos cabarés, que outrora incendiavam o imaginário dos adolescentes e jovens. Como propaganda, afirmei que se ele superasse os três capítulos iniciais, leria todo o romance. De fato, alguns minutos depois, o professor universitário Samuel Pontes do Nascimento (era este o nome de meu potencial leitor), me falou haver lido o primeiro capítulo, e me asseverou que prosseguiria em sua leitura. Numa época de escassos leitores, isso me soou como um elogio.

Após o café na Floresta Fóssil de Teresina, e depois de uma elucidativa palestra sobre o projeto de revitalização desse ponto turístico e de pesquisa, inclusive com a construção de novos e importantes equipamentos para essa finalidade, seguimos para a cidade de Amarante, com parada inicial no parque ecológico e turístico da Cachaça Lira, onde poderíamos sorver dois ou três tragos dessa deliciosa pinga. Em seu restaurante degustamos um saboroso jantar.

No passeio e jardim da margem piauiense do Parnaíba, houve vários e pertinentes pronunciamentos, entre os quais o do médico e intelectual Francisco (Tatá) Almeida, que é meu velho conhecido. Em seu consultório ele tem uma bela e enorme escultura do excelso poeta Da Costa e Silva em postura declamatória. Tem na cabeça minuciosa biografia de Da Costa, um verdadeiro livro virtual, que espero seja publicado na internet e no formato impresso. Discorreu sobre aspectos interessantes e pitorescos da vida do grande vate, e lhe recitou de cor alguns poemas, em mais de uma ocasião de nosso périplo amarantino.

Quando terminaram os pronunciamentos, previamente programados, o des. Brandão abriu espaço para que eu falasse do que há várias décadas eu havia idealizado. Subi à tribuna improvisada, no caso a borda de um canteiro da pracinha, e de forma muito sucinta disse que estivera em Amarante várias vezes, desde a primeira metade dos anos 1980, tanto a serviço da extinta Sunab, como para participar de eventos culturais. (Inclusive, acrescento agora, em minha gestão como presidente da União Brasileira de Escritores do Piauí – UBE-PI promovi um encontro de escritores nessa bela terra azul do nosso poeta maior, quase uma ilha, na verdade um jardim incrustado nas confluências do Mulato, do Canindé e do Parnaíba, cercado pela beleza azul das serras e colinas, que o grande bardo tanto exaltou em magníficos versos.)

Falei que, no período 1988/1990, na qualidade de presidente da UBE-PI, encetei uma campanha para que os restos mortais de Antônio Francisco da Costa e Silva (1885 – 1950) fossem sepultados em Amarante, sua terra natal; que no cemitério do Rio de Janeiro, por maior que ele tenha sido, e ele de fato é um dos maiores poetas brasileiros, seu túmulo é apenas mais um túmulo entre milhares, mas que em seu torrão seria visitado e reverenciado por milhares de piauienses e amarantinos. Usei, trinta anos atrás, como fundamento de minha campanha, o seu próprio desejo, expresso no segundo terceto do soneto Amarante: “Terra para se amar com o grande amor que tenho! / Terra onde tive o berço e de onde espero ainda / sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho!”

Portanto, defendi a ideia de que seja construído em Amarante um mausoléu e memorial, de preferência com auditório, estátua e placas modernas, com ilustrações, em que seriam estampados alguns de seus poemas antológicos, bem como poemas de outros autores sobre ele e sobre a sua bucólica cidade. Como alguém aparteou, lembrando que o embaixador e poeta Alberto da Costa e Silva é contra esse traslado, o escritor e historiador Reginaldo Miranda, de forma certeira, concisa, precisa e incisiva disse que não haveria problema; que o mausoléu ficaria como um símbolo. Então, retomando a palavra, disse que o monumento ficaria com um espaço reservado, à espera de que, no futuro, fosse possível a vinda das cinzas do grande bardo, para o cumprimento de seu desejo.

Estivemos ainda na frente do Museu Odilon Nunes, que foi um dos maiores historiadores do Piauí e do Brasil, para homenageá-lo e para abraçar, simbolicamente, o vetusto casarão. Nele não pudemos entrar, pois suas portas se encontravam fechadas. Tivemos a informação, não sei se verídica, de que os trabalhos de pintura, limpeza e restauração já estavam concluídos, mas que, mesmo assim, por motivos não informados, essa casa cultural não fora reaberta.

A seguir, fomos nos postar aos pés da escadaria do Morro da Saudade (é assim que o chamo em homenagem a Da Costa e Silva e a seu poema Saudade), onde foram tiradas algumas fotografias dos expedicionários. Conforme constava na programação, um dos coordenadores nos convidou a subirmos os degraus, mas sem olharmos para trás, como foi bem enfatizado. Assim fizemos. Contudo, quando eu estava na metade da escalada, recebi recado de que o professor e advogado Valdeci Cavalcante, presidente do sistema FECOMÉRCIO, desejava falar comigo. Mesmo correndo o risco de virar uma estátua de sal, como no episódio bíblico da mulher de Ló, resolvi olhar para trás, para atender o pedido, pois acreditava tratar-se de algo importante.

E realmente foi algo muito, muito importante. Quando cheguei, o Valdeci, que conversava com o advogado Márcio Freitas, apontando para um terreno que havia no sopé do morro, exclamou: “Bem aí, nesse terreno desocupado, vou construir o mausoléu e memorial em homenagem ao grande poeta Da Costa e Silva”. Não posso dizer o quanto fiquei feliz e emocionado, ainda mais porque Valdeci Cavalcante sempre cumpre as suas promessas, ao contrário de muitos políticos e falastrões. O dr. Tatá, após retornar da subida ao mirante, disse que iria pedir ao artista plástico Hostyano Machado que fizesse o projeto, para entregar ao grande mecenas da cultura piauiense. Pedi-lhe que o fizesse o mais rápido possível, para aproveitarmos a boa vontade de Valdeci e a disponibilidade orçamentária e financeira da FECOMÉRCIO.

Quando olhei o velho casarão que existe na esquina, perto do início da escadaria, ensombrado por grande oitizeiro, recordei da primeira vez em que estive em Amarante, ainda jovem e entusiasmado, com a vida e com a poesia, que então, estuante, me borbulhava no cérebro, como o gênio em Castro Alves. Três décadas atrás, havia um hotel instalado nesse prédio solarengo. E eu imaginava que nele havia fantasmas de poetas mortos, e gorgolejos e golfadas de afogados nas águas traiçoeiras das enchentes do Velho Monge.

Não pude deixar de lembrar um episódio que vivi nesse casarão. Numa fria e silenciosa madrugada acordei com forte vontade de urinar. Com medo desses fantasmas, tentei me conter, chegando mesmo ao cúmulo de ainda procurar um urinol. Apesar do heroico esforço, não pude resistir, e mesmo com medo enfrentei o longo corredor fantasmagórico, até encontrar o mictório. Durante o ato fisiológico, comecei a ouvir uns penosos gemidos. Pensei, de início, fossem de algum moribundo ou doente, mas logo os associei a almas penadas de poetas ou de afogados, como nos poemas de Argila da Memória, do amarantino Clóvis Moura, notável poeta e sociólogo dos melhores.

Incontinenti, tratei de retornar ao meu dormitório, em passos apressados, fustigado pelo sobrosso. De manhã, na hora do café, o mistério foi desfeito. Soube, então, que no quarto próximo ao banheiro dormira (ou melhor, passara a noite) um casal em plena lua de mel. Logo vi que não se tratava de almas penadas, mas de almas “penando” nos entreveros do amor e da paixão.

Quando estive na ribanceira do Parnaíba, me lembrei de longínqua tarde em que lá estive, a degustar umas talagadas de pinga com água tônica, em companhia de meu amigo e poeta Virgílio Queiroz, a conversar sobre cultura e poesia, a que não faltaram as indefectíveis anedotas, de preferência amarantinas. Nenhuma folha se mexia naquela tarde morna e parada. Mas, de repente, veio um pé de vento, que farfalhou na frondosa árvore, sob cuja sombra estávamos, e sacudiu as faveiras da proximidade, que passaram a emitir uma toada de chocalhos e guizos.

Em minha mente surgiram os índios alegres da região, que cantavam e dançavam ao som dos maracás, e que outrora perlongaram as barrancas sinuosas do Velho Monge. Talvez esse momento de insight ou mesmo epifania tenha sido a gênese de meu poema Amarante, em que perpassa o farfalhar do vento nas faveiras e nos ciprestes, em que a água gorgoleja e “boceja nas bocas de lobo dos esgotos” e “gargareja nas gargantas gosmentas dos gargalos”, e deriva singular para as águas plurais do Parnaíba.

E eu não pude deixar de sentir saudade do rapaz que eu fui, algumas vezes ingênuo, mas sempre tão cheio de sonhos, tão sentimental e emotivo, em que a poesia, a me arder na alma, parecia me consumir. E como terapia e catarse, eu tive que escrever os versos que escrevi. 

2.  OEIRAS

Chegamos a Oeiras na boca da noite do dia 18. Fomos conhecer o museu do Sobrado Major Selemérico, no qual estive em outras ocasiões culturais. Estava restaurado e limpo. Vi antigos móveis e sua ambientação, que me fez viajar ao Piauí colonial. Estavam expostos vários quadros e a galeria dos governadores republicanos. Em outro ambiente havia a pintura de quase todos os governadores provinciais (mas não os coloniais ou da velha Capitania). A partir do operoso Zacarias de Gois, seu construtor, eles governaram o Piauí provincial, tendo como palácio esse vetusto sobrado, rústico e sem luxo. Sem traumas e sem preconceitos, ali estava o retrato do Conselheiro Saraiva, o fundador de Teresina, a nova capital. Mas, também, dominava o recinto, entronado na moldura, o Visconde da Parnaíba, oeirense que governou a província por dezesseis anos.

Fui abordado na calçada do sobrado pelos vereadores José Alberto Pinheiro de Araújo, presidente da Câmara Municipal, e Francisco Espedito Nunes Martins. Me comunicaram que meu Título de Cidadão Oeirense, concedido em 2013, me seria entregue neste ano. Fiquei muito satisfeito com a notícia, e disse que o mais difícil, a concessão, já estava feito, ao que Espedito Martins retrucou: “O mais fácil... a votação foi por unanimidade”. Sou agradecido a todos os parlamentares oeirenses por essa alta honraria, que consagra a minha condição de oeirense por devoção e vocação.

Assisti com muita atenção à magnifica palestra do professor e secretário municipal de Cultura Stefano Ferreira, titulada “Interpretação do Patrimônio Cultural”. Em voz de correta dicção e pronúncia, com frases claras e bem construídas, com riqueza de detalhes e denso conteúdo, o palestrante discorreu, com notável poder de síntese, sobre diversos aspectos da cultura oeirense, tais como patrimônio arquitetônico, música, literatura, religiosidade, artesanato e costumes. Após ter visto a linda Praça das Vitórias e os bem-conservados solares e sobrados coloniais, a conferência de Stefano me fez ressurgir a Oeiras colonial, que insiste em permanecer, mesmo ante a insolência e iconoclastia dos dias atuais.

Sem dúvida foi uma das melhores palestras a que tive a oportunidade de assistir, ilustrada ainda por oportunos e elucidativos slides, e com certeza a melhor na temática abordada. E para minha maior satisfação, uma das telas projetadas estampava estes versos de meu Noturno de Oeiras: “Oeiras navega na noite / de um tempo que não termina”. Stefano teceu rápidas considerações elogiosas a esse poema. Também fez referência ao Noturno do Cemitério Velho de Oeiras.

Uma voz, não sei se do Carlos Rubem, defensor perpétuo das coisas oeirenses, ou se do Alcide Filho, exímio fotógrafo e cinegrafista, disse que eu estava presente. Como o Stefano tentasse me localizar no meio da multidão, lhe acenei, sentado em minha cadeira. Não tendo ele me visto, pediram que me levantasse. Para minha honra e contentamento, tive a alma afagada por uma forte saraivada de palmas. Obrigado a todos os oeirenses e expedicionários por esse momento ímpar na vida de um poeta menor e provinciano.

Sinto-me quase forçado a esclarecer que Noturno de Oeiras já foi entoado em diferentes ocasiões e locais da velha capital. Na solenidade de restauração do antigo fórum, na gestão do des. José Luís Martins de Carvalho, foi interpretado pelo ator Bonifácio Lima no Cine Teatro Oeiras; em certo 24 de janeiro, data magna oeirense, foi recitado entre as naves da tricentenária catedral, assim como também em seu adro. Foi declamado em rodas de poesia, documentários e em lançamento de livros. Existem clipes dele no You Tube.

Tendo escrito vários textos sobre Oeiras, além dos dois poemas citados, resolvi enfeixá-los no livro “Noturno de Oeiras e outras evocações”, que o IBENS lançou em memorável acontecimento cultural, em que foram apresentados números de dança, música e uma performance de Noturno. Um aluno do Instituto Barros de Ensino - IBENS musicou o Noturno do Cemitério Velho de Oeiras e o apresentou nessa ocasião. Essa obra foi apresentada nessa solenidade pelo advogado e escritor Moisés Reis. Sobre esse livro disse o médico Elisabeto Ribeiro Gonçalves, um dos maiores oftalmologistas do Brasil, em bela missiva: “Além das virtudes próprias do livro, que são tantas, ele me dá, de lambujem, mais uma satisfação e um encantamento: rememorar Oeiras, retornar a Oeiras, reviver Oeiras. // O livro é Oeiras encadernada, viva, palpitante. Ele me levou a Oeiras, de onde saí ainda bem jovem em busca do conhecimento que ela não poderia mais me dar. Mas não sei, não sei...”   
  
Após essa digressão, retomo a trilha expedicionária, para dizer que por volta das 23 horas fomos ao Hotel do SESC, onde ficamos hospedados, em cuja recepção, tempos atrás, Valdeci Cavalcante mandou afixar uma grande e bela placa de metal, na qual consta o meu poema Noturno de Oeiras. Degustamos um lauto e delicioso jantar. No dia seguinte, tivemos um farto café interativo, em que o engenheiro Avelino Neiva, presidente da Codevasf, proferiu uma palestra sobre o projeto de restauração da navegabilidade do Parnaíba, inicialmente de Uruçuí até Teresina, e, em segunda etapa, se o porto for construído, até Luís Correia.

Segundo o palestrante e outros técnicos da companhia a navegabilidade é viável e pode ser restaurada, e já existe um empresário interessado e com recurso suficiente para essa empreitada. Para mim, que tenho denunciado a degradação do Velho Monge em diferentes ocasiões, bem como apontado soluções, tanto por escrito como através de minha voz, achei uma notícia auspiciosa, inclusive em termos econômicos, pois o transporte dos produtos seria barateado consideravelmente. Oxalá esse projeto se torne uma realidade. Navegar é preciso, mas salvar o Parnaíba é mais preciso ainda. Esse rio é o mais importante e imprescindível patrimônio natural do Piauí.

Após a palestra, fomos em demanda da “Fábrica dos Sonhos”, perdida num dos confins dos sertões de Cabrobó.

3.  SANTO INÁCIO E CAMPINAS DO PIAUÍ



Seguindo a orientação de Carlos Rubem, nos deslocamos para Santo Inácio do Piauí, que outrora teve o bucólico nome de Brejo de Santo Inácio. Iríamos visitar o degradado olho-d’água. Nesse brejo, em pleno Piauí colonial, a partir de 1711, os jesuítas nele tomavam banho. Pelo que se observa em seu derredor, e pelo que se sabe da história da região, nessa época deveria ser um local totalmente isolado.

Os padres construíram a casa e a ermida em local sobranceiro, um verdadeiro mirante, de onde se observa a longa distância toda a paisagem circundante, e as faldas de morros em seu derredor. A casa foi restaurada, embora com algumas restrições apontadas pelo grande arquiteto Olavo Pereira da Silva Filho, um dos maiores peritos na área de restauração. Segundo ele me informou, três imagens de santos da igrejinha são do período colonial. Fui vê-las e deu para que eu percebesse a sua antiguidade, observável em sua textura cromática e desgastes naturais. Também observei, seguindo informação do Olavo, que o altar, em certos pontos, apresentava resquício de sua construção inicial.

Aliás, ouvi comentários de que até a década de 1960, a igrejinha dos padres da Companhia de Jesus de Santo Inácio de Loiola ainda apresentava a sua feição colonial, mas que teria sido demolida (a pretexto de reforma, ampliação e melhoramentos) para que homens gananciosos tentassem encontrar supostos tesouros enterrados pelos jesuítas, quando da ordem de confisco e expulsão da época do Marquês de Pombal. Também os comentários que me chegaram diziam que o banheiro dos padres, com as pedras formando uma espécie de caracol, também existia até cinquenta ou sessenta anos atrás; todavia, pelo mesmo motivo, foi destruído, dele só restando algumas pedras. Não sei se se trata apenas de histórias um tanto lendárias sobre os tesouros de jesuítas, que também ocorrem em outros lugares, nem tampouco se é mesmo verdade o motivo da destruição da igreja e do banheiro, que deveriam ter sido preservados como testemunhas e fontes da história do Piauí Colonial.

O banheiro dos padres fica a uma boa distância. A ida até lá foi sem problema. Mas a volta, com o sol a pino, e com a trilha em constante e implacável subida, extenuou alguns expedicionários, que tiveram de fazer paradas estratégicas, à sombra de duas ou três arvores que se destacavam no descampado. No local da vertente, houve alguns pronunciamentos, em que foi pedida a sua recuperação, através de drenagem e reflorestamento, sobretudo. Restou, ao menos, a esperança naquele sertão adusto e esquecido de que algo pode ser feito.

Seguimos para Campinas do Piauí.

Outrora, denominada Campos, ao tempo da instalação da fábrica de laticínios. De mulheres idosas, nas quais ainda remanesce um pouco da antiga e gloriosa beleza, dizem os ironistas e sarcastas, entre os quais não me incluo, que são uma bela ruína. Mas a fábrica de laticínios do engenheiro Sampaio, bastante deteriorada, é mesmo uma bela e imponente ruína, a um passo de se tornar escombros, quase uma imensa tapera, no meio de construções novas e de uma quadra esportiva, que lhe encobre a fachada, ainda majestosa apesar da incúria do poder público.

Segundo afirma e pergunta Fernando Pessoa, “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?” Loucura no sentido, talvez, de sonho utópico ou de difícil realização. Nessa acepção, pelo que tenho lido e meditado, ao longo de alguns anos, o engenheiro Antônio José de Sampaio foi um sonhador e um louco. Mas foi também um realizador e empreendedor, que não soube, talvez, calcular todas as consequências de sua obra magna. Esse engenheiro, cientista, professor, escritor e poliglota, nasceu na Fazenda Ininga, hoje cidade de José de Freitas, em 9 de abril de 1857. Vejo que nasci no mesmo dia que ele, 99 anos depois. Morreu em 1906.

No meio do nada, como hoje se costuma dizer (embora, segundo muitos acreditam, o nada sequer exista) construiu o seu sonho. Para esse fim, em 26/04/1889 firmou vultoso contrato de arrendamento com o governo imperial. Nesse mesmo ano sobreveio a proclamação da República, que lhe trouxe ônus adicionais, sob alegações diversas, inclusive supostos descumprimentos de cláusulas. Comprou modernos, caros e pesados maquinários, que tiveram de ser levados até o porto de Floriano, pelo rio Parnaíba.

Levar esses pesados equipamentos e peças, no final do século XIX, de Floriano até Campos (hoje Campinas do Piauí) foi um trabalho hercúleo e uma verdadeira epopeia, como bem disseram os escritores Luís Mendes Ribeiro Gonçalves e Reginaldo Miranda, ambos da Academia Piauiense de Letras. Sem dúvida, os entraves burocráticos, as dificuldades financeiras enfrentadas pelo engenheiro Sampaio, e a condução das partes desmontadas da fábrica, em longo trecho de precárias estradas carroçáveis, enfrentando atoleiros de lama e areais, atravessando rios e riachos, dariam um belo filme épico. Para que fossem vencidos esses atoleiros usavam peles bovinas, sobre as quais passavam as ringidoras rodas de madeira. Em alguns trechos teve de abrir estradas, quebrar morros e construir pontes e pontilhões. Dezenas de bois morreram, extenuados, nessa penosa jornada.

O contrato de arrendamento previa vários ônus dispendiosos a serem custeados por Sampaio, entre os quais manter o Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara, construir frigorífico, fábrica de gelo, estação meteorológica; introduzir melhores raças de gado vacum, lanígero, cavalar e muar; adquirir maquinaria moderna para fabricação de manteiga, queijo, leite condensado e outros produtos,  sobre os quais não pretendo me estender, porquanto a sua simples enumeração não exaustiva é suficiente para o que pretendo concluir.

Com o arrendamento, o engenheiro Sampaio passou a administrar imensas glebas de terras e um grande rebanho de gado bovino “pé duro”, que pertenceram a Domingos Afonso Sertão e depois aos jesuítas, dos quais foram confiscados e passaram a constituir as Fazendas Nacionais. Trouxe alguns colonos italianos e suas famílias (cerca de quarenta), que por esse simples fato lhe acarretaram grandes despesas, além das salariais que adviriam. Teve que adquirir reses propícias à produção de leite, mas certamente em pequena quantidade. Como se sabe, as vacas nativas ou curraleiras produzem pouco leite, e por isso não são adequadas ao laticínio.

Mas, além de todos esses percalços econômicos, financeiros, de transporte, de pessoal, e burocráticos, que tiveram de ser enfrentados, como dito acima, a meu ver o maior problema foi o da logística. Ora, havia a imensidão de terra e o gado pé duro, adaptado à criação extensiva. Mas para o leiteiro talvez houvesse a necessidade de ração, medicamentos e outros insumos, que teriam de vir de muito longe. Teria que haver consumidores para os produtos da fábrica, que não estavam na região, que então era deserta ou de desprezível densidade demográfica, como ainda hoje o é.

Esses consumidores estavam em locais muito distantes. O porto fluvial mais perto se localizava no Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara, que deu origem à cidade de Floriano. Portanto, teria que ser percorrida uma distância de mais de mais de duzentos quilômetros. E os produtos teriam que ser levados em lombos de animais ou em veículos de tração animal, por trilhas rústicas, ou estradas carroçáveis, talvez impossíveis de serem percorridas no período chuvoso. De Floriano teriam que ser levados, por via aquática, até os longínquos centros consumidores. Ademais, o preço dessas mercadorias teria competitividade com as produzidas na região em que se encontrava o público consumidor?

Daí, sem querer tirar o mérito e a glória do engenheiro Sampaio, creio poder afirmar que esse lindo e grande sonho, não levou na devida conta a logística de transporte, distribuição e mercado consumidor, e os custos e despesas a que fiz referência. Por conseguinte, teria mesmo que fracassar, mais cedo ou mais tarde, quando os recursos financeiros se exaurissem e as dívidas se acumulassem. Foi um sonho megalomaníaco que malogrou, e cujo belo e imponente prédio se transformou em um magnífico ocaso, que ainda hoje ilumina a pequena urbe que nasceu em seu derredor. Contudo, parafraseando o poeta já citado, sonhar é preciso, viver não é preciso.

O edifício recebeu o abraço simbólico de todos os expedicionários. Visitamos as suas entranhas, os seus sótãos e porões, os seus alçapões mais recônditos, as suas vísceras mais esconsas, e vimos que está muito mal, como um moribundo em seu leito de morte, como um paciente em estado terminal. Houve vários pronunciamentos. O Carlos Rubem relembrou os velhos tempos em que iniciou a campanha pela sua restauração. O des. Carlos Brandão falou da importância de sua preservação. O senador Elmano Ferrer e a deputada federal Margarete Coelho prometeram envidar esforços em prol de sua restauração. O senador prometeu propor uma emenda, salvo engano, no valor de R$ 500.000,00 para esse objetivo. O prefeito Valdinei Carvalho de Macedo estava presente e também fez uso da palavra, na mesma toada e refrão.

A professora Socorro Alves, campinense, que estudou e lecionou nesse vetusto prédio industrial, falou de sua história e de suas lembranças, já que ele é parte integrante e indissociável da história e da paisagem arquitetônica e sentimental da cidade. Olhando os detalhes esmerados e ornamentais de sua arquitetura, que muito deve ao engenheiro alemão Alfredo Modrack e seus auxiliares, e, sobretudo, vendo a sua fragilizada chaminé, já sem o orgulhoso penacho de fumaça, que ostentou na época de seu fastígio, senti que o apito saudoso de sua caldeira ainda parece ecoar nesse sertão esquecido, a implorar por socorro.

Socorro que tanto tarda, e que talvez não venha, ou venha demasiado tarde, quando já nada mais possa ser feito.