Hércules
Quasímodo
Fonseca
Neto
Estudante
de Direito na Ufpi, último período, tive a honra de ter como
professor e estudar com o juiz federal Hércules Quasímodo da Mota
Dias. Direito Processual Penal II, segundo período de 1981. Não
tenho dúvidas em afirmar que foi um ótimo professor, entre outros
que assim tive nessa experiência acadêmica.
A melhor lembrança que dele guardei –de aulas e
assistindo audiências no Fórum Federal a seu convite–, consiste
nos sinais de retidão funcional e no inspirador sentido de justiça
por ele infundido. Um pensamento e uma prática contemplando a lei
como alinhavo do tecido social e tendente ao esgarçamento, enfim,
necessário, no movimento da História.
Lembro-me,
vivamente, a última frase da última aula, dele e do curso de
Direito, daquela turma de P. P. II: “Vivam com especial intensidade
esta hora; olhem bem uns aos outros, o ambiente, despeçam-se: vocês
saem neste momento da sacralidade sonhadora dosada pela cátedra
escolar, e, amanhã, transporão os umbrais das casas de fórum, qual
prostíbulos”. É preciso coragem...
Formado
e inscrito na Ordem, já no ano seguinte, meu primeiro ato de
advogado foi exatamente numa ação de caráter penal. E eu,
habilitado, no interesse de uma família que tivera pessoa morta
decorrente de acidente no trânsito, fui ao Cartório respectivo e
ali informado de que os autos haviam desaparecido, por “descuido”
do advogado da outra parte, o qual afirmaria que tudo ocorrera “por
inépcia de uma sua secretária pouco afeita ao serviço”. E o juiz
do feito? Determinou a restauração que requeri. Não teceu,
contudo, consideração que não fosse verbal. E perante a mim, um
escrivão e um promotor, disse que tal fato era habitual e que pouco
adiantava mexer no caso, tecendo comentários sobre o respectivo
advogado e suas relações impublicáveis com juízes superiores. Ir
à OAB? Um advogado com a primeira procuração? Foi impossível não
lembrar/atestar aquela como – que se fez veredita – frase do
mestre Mota Dias.
O
poeta, acadêmico e juiz Elmar Carvalho, que também o conheceu na
Ufpi, em seu “Diário Incontínuo”, na net, disse que gravou “o
seu nome porque o primeiro prenome é uma homenagem ao heroico
semideus da mitologia Grega, grande trabalhador, pois se celebrizou
por ter realizado doze dificultosos e penosos trabalhos, e o outro,
foi retirado, certamente, do livro do romancista e poeta Vítor Hugo,
intitulado O Corcunda de Notre Dame. Era um magistrado digno e
honrado e um professor de muito mérito, entretanto não fazia jus
aos dois prenomes, porquanto não tinha a musculatura avantajada do
semideus e nem a feiura do bom e sofrido Quasímodo, conquanto não
fosse também nenhum Apolo nem Adônis”.
Elmar
tem razão: a beleza desse homem decorria de seu ministério,
significado na reiterada postura digna e honrada. O Brasil daqueles
anos vibrava as emoções da mobilização social em busca de
mudanças para além da derrota da Ditadura de 64. No plano do
ordenamento jurídico, sonhava a reconstrução deste, com uma
Constituição feita por assembleia constituinte eleita
exclusivamente para tal fim; ciente do liberalismo perneta vigente
aqui na colônia cabrália, não acreditava H. Q. em Constituição
feita pelo Congresso Nacional – tal aconteceria depois.
Aliás,
por ironia, Euclides da Cunha, em seu famoso texto, comparara esse
liberalismo travado em clientelismos patrimonialistas a um
determinado “Hércules-quasímodo”, pois “desgracioso,
desengonçado, torto [apresentando] a translação de membros
desarticulados”.
Pois
nosso Mota Dias era o contrário disso tudo: sonhou e lutou pelo país
justo. Ainda que cingido às conformações de sua magistratura,
fugiu do autoengano devastador que confunde Direito e Justiça, a
começar da empulhação liberal-ideologizante que afirma que a lei é
igual para todos na sociedade desigual.
Tornou-se
desembargador federal depois e nos deixou ainda cedo. Faz tanta falta
um homem desses neste tempo. Mas foi poupado de ver o que esta
geração faz no chamado Estado de Direito Democrático: baixo índice
de compromisso histórico por Justiça; a justiça na bacia onde se
lava e lustra o pior dos interesses de novíssima cepa de coronéis.
Postado há 10 anos? Mais atual, impossível. Louvor ao poeta.
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