Cunha
e Silva Filho
Foi
uma traição à vida o que aconteceu na Kiss, em Santa Maria, Rio
Grande do Sul.. Que nome menos adequado para se dar a uma boate.
Beijo é sinal, antes de tudo, de amor, de afeto, de amizade. Não é
palavra que se tome para um lugar onde tudo estava fora do lugar,
principalmente a documentação da casa de diversões, com alvará já
expirado, e onde nada em termos de segurança funcionava: extintores
de fogo, pelo menos duas portas de saída, e outros requisitos
obrigatórios de ordem técnica, respeito legal à capacidade de
pessoas que ali podiam se reunir
Por
cúmulo da irresponsabilidade, mesmo com todas as irregularidades
verificadas pelos peritos e pelas declarações consistentes do
delegado encarregado das investigações, a boate tinha (sic!)
autorização do Corpo de Bombeiro para funcionamento normal. Nada
foi observado, na última fiscalização do órgão competente, do
ponto de vista legal, nem da Prefeitura local nem do Corpo de
Bombeiros. Era uma boate como tantas outras espalhadas pelo país que
funcionam ao arrepio da Lei, das autoridades, dos governo federal,
estadual e municipal. Até já se falou que os maiores responsáveis
não são os donos da boate mas a autoridade pública, que é
leniente e, muitas vezes, se torna cúmplice pela ausência da
aplicação das penalidades contra lugares de diversão como esses.
Faz
parte da cultura do poder público brasileiro só tomar medidas
contra erros imperdoáveis e fatais e semelhantes ao ocorrido em
Santa Maria quando a tragédia acontece. Por isso, o lamento de
governantes, suas lágrimas vertidas, seja do prefeito, do
governador, seja da presença da Presidente, esta com discurso
lacrimejante e sentindo a perda coletiva de inúmeros jovens que
poderiam ser, no futuro, pessoas de diferentes profissões úteis à
sociedade e ao desenvolvimento do país, não vai reverter a dor das
famílias enlutadas e destroçadas nos seus sentimentos mais
profundos, que é a dor de perder um ente querido, um amigo, até
mesmo um conhecido habitante da mesma cidade.
Portanto,
a tragédia de Santa Maria não é novidade para o país das
tragédias e das impunidades, da desídia pública e da ausência
gritante de medidas preventivas, de seriedade no trato da coisa
pública e privada .São mais de duzentos mortos, são mais de
duzentos jovens cheios de viço de alegrias, de sua condição de
universitário, que é uma das fases da vida do estudante mais
decisivas e emocionantes de suas vidas. Vale encarecer que dos
sobreviventes feridos, muitos estão ainda nas UTIs dos hospitais,
ainda com risco de morte, outros mais com corpos queimados, que lhes
deixarão com marcas indesejáveis sobretudo na fase da juventude e
mocidade.
Morrer
jovem, por doença é sempre uma perda irreparável, mas morrerem
tantos jovens a um só tempo e de maneira brutal, sofrida,
desesperadora, é mais do que uma tragédia. Eis por que a tragédia
de Santa Maria teve tanta repercussão(negativa para a imagem do
país) internacional, dadas as proporções do número elevado de
vítimas fatais.
Lugares
de diversões, prédios, velhos ou novos, construções tombadas pelo
patrimônio público têm que ser rigorosamente fiscalizados, e,
quando forem detectados sinais de risco de vida, devem ser seus
responsáveis enquadrados na Lei, com pesadas multas, sendo que as
autoridade competentes devem imediatamente determinar prazos
improrrogáveis a fim de que sejam corrigidos os erros e os riscos. É
uma obrigação não somente dos prefeitos, mas dos governadores e da
União. A sociedade deve também assumir a sua parte através de
denúncias aos órgãos correspondentes caso veja algum perigo
iminente que possa prejudicar a população da cidade, dos bairros.
O
Brasil é campeão de remendos, de improvisações, de tapa-buracos,
de obras faraônicas vultosas paralisadas de repente, com altíssimos
custos para o Erário. Por que não imitamos o que é bom do EUA, do
Japão e dos países que preservam, fiscalizam e penalizam os
infratores em áreas que podem provocar mortes de centenas ou
milhares de pessoas? Deixemos de chorar as nossas calamidades e
previnamo-nos contra os desastres evitáveis e mesmo inevitáveis,
diminuindo-lhes as consequências desastrosas, como no caso de
enchentes nas cidades e outros acts of God.
Governos
que se preocupam com estas questões são governos democráticos,
inimigos da populismo, da demagogia, do paternalismo, da impunidades,
das injustiças sociais. O país tem uma máquina burocrática de
alto nível, usando os mais recentes avanços tecnológicos da
informática e, por outro lado, está na Idade Média ou até em
época mais remota no que diz respeito ao ataque frontal aos males
diversos que nos afligem assustadoramente, como a violência – e a
tragédia de Santa Maria foi um ato de violência sem dúvida alguma.
Pratica-se a violência sempre que se fere a incolumidade das
pessoas, sempre que deixamos de tomar providências que assegurarão
o direito à vida, sempre que nos omitimos quanto às nossas
atribuições em cargos de comando nos diverso setores públicos.
Sabemos
que nem tudo pode ser evitado no campo dos acidentes ou desastres. No
entanto, se um governo se pauta pela seriedade de sua administração,
se escolhe bem seus secretários e todo a sua equipe, seguramente,
nos três níveis, federal, estadual e municipal, há de realizar um
trabalho com transparência, atendendo tão-somente ao bem-estar da
sociedade. Não é isso que vemos nos Brasil em muitos setores do
funcionamento da máquina do Estado.
Não
é só decretando luto oficial que se há de resgatar os direitos dos
cidadãos, os direitos humanos, os direitos individuais e coletivos.
O que está se fazendo agora, no que tange à segurança dos
lugares
de diversão, ou assemelhados, em muitas partes do país é
válido, porém deixará de sê-lo se isto se transformar em fogo de
palha, em ações paliativas para inglês ver.
O
que desejamos da parte do setores públicos são ações efetivas,
duradouras e permanentes do item “prevenção” contra acidentes
de todos os níveis e proporções, quer da natureza, quer provocados
pela má conduta dos homens, empresários, proprietários,
construtores, síndicos, enfim, por todos aqueles sob cuja
responsabilidade vão recair as penalidades da Lei caso não cumpram
com os seus deveres e obrigações, principalmente se envolvem crimes
de natureza vária contra a vida.
Isso
vale também para os inúmeros segmentos da vida cotidiana:
motoristas, pessoal de setores de manutenção, de fiscalização, de
vigilância, da defesa civil etc. . Ninguém que ocupe uma função
da qual depende a integridade física das pessoas pode se eximir do
rigoroso cumprimento de suas obrigações, dos regulamentos legais.
A
vida é o bem maior e em defesa dela devemos unir os sentimentos de
coletividade, humanidade e respeito. Que a tragédia de Santa Maria
seja o símbolo mais alto do grito nacional contra todos os que
transgridem o espírito da Lei e de sua aplicação. A verdadeira
modernização do Estado brasileiro só virá quando os males aqui
levantados, em meio à dor dos jovens mortos em Santa Maria, forem
erradicados de nossos costumes erroneamente por décadas enraizados
sob a proteção infame da impunidade.
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