Fonseca
Neto
Há
muitos séculos a sucessão papal é assunto que suscita intensos
debates mundo afora. Estamos por estes dias testemunhando um fato da
espécie e aferindo seus impactos.
E
por que impacta? Porque a igreja romana e apostolar é a colunata que
conforma e articula o chamado mundo ocidental. Igreja que se fez
católica e fundada na inspiração e na fé cristãs, dilatadas
estas desde o reino de Judá, e, de Roma, para além das lavras
civilizatórias dos litorais do Mediterrâneo.
A
Igreja e sua cabeça, o papado romano, exprimem, assim, a mais
significativa força política que permeia a engenharia das formações
sociais conhecidas, desde que Constantino e Licínio decretaram a
liberdade religiosa nos territórios da romanidade imperial – o
famoso Edito de Milão. Fato acontecido há exatos 1700 anos, 313
após o nascimento de Jesus, em Nazaré da Galileia.
Desde
essa época, calendarizada pela própria Igreja, Jesus e a fé cristã
ganham seguidores e revolucionam todos os ditos litorais e
adjacências, desde Jerusalém à península itálica, Antioquia e
Roma, estas se constituindo em cidades-polos referenciais do seu
movimento. Mais de três séculos de martírio de cristãos, os
“excluídos sociais” daquele tempo, seu sangue vivificando os
alicerces da edificata acima mencionada. Então, as bases do velho
Império Romano, atacadas por “bárbaras” tribos, fragmentam-se,
assomando em seu lugar o povo cristão, elaborando um poder novo.
Poder novo fundado na mística do judeu-nazareno e que recepciona as
tradições cultas da Antiguidade, com acento na heleno-latinidade.
Operária
de tantas tradições forjadas em ambientes mais ou menos regionais,
robustecidas no exemplo do Mestre, a Igreja as orientará à
universalidade, projeção de valores fundamentais que assentarão,
per omnia saecula, na alma de milhões que se fazem cristãos.
A
igreja que se ergue, então, perfilará seu caminho nestes últimos
dezessete séculos da história, ensinando o Verbo e aprendendo na
Experiência. Tempo curto, é certo, no plano existencial, mas
parteiro de modos historicamente transformados de organizar os
sentidos do viver. Mãe do que conhecemos hoje por Europa, Ocidente,
com todas as belezas e misérias que essas concreções expressem.
Mãe e mestra, ou, Mater et Magistra, tal insculpida na giovanina
encíclica, de 1961.
Mãe,
porque nasceu da dor dilacerante das diásporas do Império Romano
que decaía, ossatura fraturada; magistra, porque apascentou em seus
valores os “bárbaros” triunfantes.
Mater,
no fundamento do “amai-vos uns aos outros” transcendente; mestra,
herdeira do imperial pontificado máximo de Constantino e Teodósio,
governa a secularidade, aprendendo, sempre.
Mãe,
porque, entre cismas e perdões, cultiva a ternura do menino de
Belém, criando cidadela do espírito sobre catacumbas; magistra,
porque Império perpassado de assombros e crises (e fé que perpassa
outros tantos Impérios), soube conservar os sentidos do amor maior.
Mater
do Ocidente, reivindica a “cidade terrena” em “cidade de Deus”;
mestra, farol à mão, conciliar de Niceia ao Vaticano, soube ser luz
a iluminar a “idade média” com universidades, ciência e artes –
e a ignorância que condenou Galileu? Sim, essa mãe erra, mas seu
perdão a faz mestra digna do Mestre que a diviniza.
Mãe,
sua intuição larvar logo percebeu a perversão da sociedade do
Capital enquanto conspiração do diabo contra o viver fraterno;
mestra, ainda que atordoada por guerras e escândalos de poder
temporal, por ela sobrevive o ensinamento do Ato Apostolar, que
assegura afirmar que “o capitalismo é intrinsecamente inapto a
construir um mundo de justiça e liberdade”.
Mater,
esperança dos que sofrem; mestra, aponta o rumo e faz caminhos com
os pés.
Mãe,
tem o filho Francisco, de Assis, um santo dos pobres, amigo dos
outros viventes; magistra, aprendiz de sua própria história, traz,
do outro lado das pontes de seu Império dilatado, outro Francisco
para governá-la: bispo, pontífice máximo e imperador de Roma,
trazido das colônias dessa fé e do Império de ultramares.
Inspirado
num Cláudio, de nome romano-imperial, e franciscano, eis, pois,
desafiando símbolos, um Chico do “fim do mundo” virando papa.
Sabedoria que desconcerta. E conserta.
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