Cunha
e Silva Filho
Agora que tenho um pouquinho de tempo mais, de quando em quando, vou ao velho Centro da Cidade Maravilhosa. Uma vez, meu pai, em carta pra mim, desabafou com essa afirmação: “.. Maravilhosa não para aqueles que vêm para ela lutar, sofrer e, quem sabe, vencer, ou não, na vida..” Era um desabafo com alguma indignação como resposta a uma carta anterior que lhe fizera contando-lhe os aperreios de um jovem nordestino sem mesada tentando sobreviver na grande urbe carioca. E já grande urbe, se comparada às capitais menos desenvolvidas do país no meu tempo de recém-chegado ao Rio.
Agora que tenho um pouquinho de tempo mais, de quando em quando, vou ao velho Centro da Cidade Maravilhosa. Uma vez, meu pai, em carta pra mim, desabafou com essa afirmação: “.. Maravilhosa não para aqueles que vêm para ela lutar, sofrer e, quem sabe, vencer, ou não, na vida..” Era um desabafo com alguma indignação como resposta a uma carta anterior que lhe fizera contando-lhe os aperreios de um jovem nordestino sem mesada tentando sobreviver na grande urbe carioca. E já grande urbe, se comparada às capitais menos desenvolvidas do país no meu tempo de recém-chegado ao Rio.
Hoje,
no final da manhã, fui ao Centro com a minha mulher e o meu filho
mais novo, o Alexandre. Tomamos o ônibus na Tijuca e saltamos na
Presidente Vargas, essa avenida cansada de guerra, de mudanças na
direção do trânsito, nas faixas de pedestres e nos pontos de
ônibus. Na cidade grande tudo é efêmero relativamente. Nada dura
muito ou sempre.
As
cidades são como as pessoas, com o tempo mudam de fisionomias, só
que, na mudança, vão subsistir dois planos de sua arquitetura: um,
representando o passado com as suas velhas edificações algumas
tombadas, outras sujeitas aos capricho dos preitos;outro,
representado pelas mudanças radicais apontando para a modernidade,
com os seus arranha-céus surgindo em quase todo canto do miolo do
Centro. Aprendemos a conviver com essas mudanças, acompanham os as
modificações, sofremos com aas interdições nos períodos de
grandes transformações arquitetônicas.
O
que era rotina dos pedestres em termos de terminais de coletivos, se
altera e por isso causa um certo transtorno, aborrecimentos diante da
nossa impotência de resistir às diretrizes da prefeitura com as
suas ideias cíclicas de redimensionamento do plano geográfico da
cidade. Que por vezes dá certo e outras vezes, não.
O
habitante da grande cidade não passa de um homem tentando conviver
com a sua anomia no meio da multidão indiferente e individualista,
cuja manifestação mais evidente é a pressa, o dinamismo, o
vai-e-vem dos pedestres e o fluxo incessante dos carros. Um escritor
francês, no seu tempo, dizia que os habitantes de Paris são de
“...uma curiosidade tanta que chega à extravagância.” Não sei
mais se no Rio de Janeiro somos ou fomos o que eram os franceses. Já
houve um tempo em que pensei que os cariocas eram também muito
curiosos a ponto de alguém fingir que está olhando para um ponto no
alto dos edifícios e, de repente, muita gente formar uma espécie de
circulo em torno dele e começar a olhar também idiotamente para o
alto procurando algo que, na verdade, não existe , pois não passou
de uma brincadeira.
Saltamos
do ônibus, tomamos a direção da Rua Miguel Couto. Nosso destino
era o Largo do São Francisco. Lá entraríamos num prédio para
tratar de assunto pessoal. Antes, porém, de chegarmos no Largo do
São Francisco, passamos pela vetusta Rua do Ouvidor. Como sempre,
cheia de pedestres nas duas direções, como também ladeada dos dois
lados por loja, butiques, lanchonetes,prédios de escritório,
comércio generalizado. Pensei comigo: como está distante da
famosa Rua do Ouvidor do tempo do escritor da Moreninha (1844), o
romântico Joaquim Manuel de Macedo, que, por sinal, tem um livro
fascinante sobre essa rua, Memórias
da rua do Ouvidor(1878),
No
tempo do II Império, era uma rua aristocrática, na qual passeavam
escritores, homens de negócios, senhoras distintas da alta
sociedade, com seus vestidos vaporosos, suas jóias brilhantes, às
vezes acompanhadas de cavalheiros elegantemente vestidos, conversando
sobre variados assuntos da vida pessoal ou fazendo comentários sobre
os folhetins da época com as suas histórias de aventuras amorosas
ou de amores desencontrados, ou mesmo como no caso de dois guapos
cavalheiros, comentando algum assunto do cenário político do
momento. No meio daquela rua outrora elegante charmosa, esplendorosa,
afrancesada, feérica, eu me encontrava, em pleno século 21, numa
insossa e decaída rua carioca, imaginando cenas de tramas saídas da
pena de um José de Alencar, do próprio Macedo ou de um Machado de
Assis.
Olhei
pra frente, no Largo de São Francisco de Paula, ou simplesmente,
Largo de São Francisco, e logo avistei a antiga Escola de
Engenharia, onde, hoje ainda funciona o famoso IFICS (Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais) da UFRJ, desdobramento da antiga
Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1939). O
mesmo prédio histórico já abrigou a Escola Politécnica e nessa
construção já funcionou a Real Academia Militar. Olhando também
para o lado esquerdo de quem sai da Ouvidor, revejo a Igreja de São
Francisco, na qual, meia hora depois, dobravam os sinos que ouvi do
12º andar de um velho prédio do Largo, local do meu destino no
Centro da cidade.
Almoçamos
na Travessa do Passo, bem pertinho da Praça XV. Percorremos, a pé,
várias ruas há muito conhecidas de minha permanência longa no Rio
e, para falar a verdade, cada rua, de alguma forma, me leva ao
passado em tempos e pensamentos superpostos, ou seja, cada lembrança
tem o condão de se associar a outras lembranças, boas ou más, mas
sempre lembranças. As lembranças, a
posterori,
ressignificam parte das nossas memórias, que nunca vêm à tona
cronologicamente e com precisão cirúrgica, mas misturadas ou
simultâneas, numa ida e volta, sem planos estratégicos, mas
retomadas por um fluxo contínuo de imagens, gestos, ações,
palavras, situações, sons e cheiros.
O
passado, já observei, quando muito recuado, mistura muitas vezes a
ordem dos acontecimentos e nos deixa na encruzilhada do que antecedeu
e sucedeu. Algo da retentiva embaralha alguns incidentes, sobretudo
na tentativa de procuramos harmonizá-los dentro de uma cronologia
rígida. A memória é falha e talvez por isso é que somos impelidos
a preencher os vazios e, ao fazê-lo, somos traídos pela imaginação
ou fantasia, quer dizer, penetramos, por vezes inconscientemente, no
mundo da recriação rememorativa. As memórias, assim, se transmudam
em realidade e ficção.
Volta
pra casa. O ônibus que íamos tomar não tem mais seu terminal,
virou ônibus circular com as obras que comporão os projetos de
urbanização da área portuária do atual prefeito sob o nome geral
de “Porto Maravilha,” aí incluindo parte da Praça XV, onde fica
o Mergulhão (interditado agora para a realização de obras que
fazem parte daqueles projetos), passagem subterrânea por onde fluem
pesadamente os coletivos e outros veículos que vão para os bairros
da Zona Sul. No Mergulhão ficava o ponto final do ônibus que
costumávamos tomar. Tivemos que pega um ônibus no Largo da Carioca
que, aliás, nos surpreendeu pela percurso rápido e objetivo em
direção à Tijuca, lugar de nosso regresso pra casa.
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