O conhecido e aplaudido professor de português e literatura,
poeta, analista de obras consagradas, recentemente eleito membro da Academia
Piauiense de Letras, “topou a parada” no desafio proposto pela coluna, há algum
tempo aos poetas: apresentarem um poema de sua lavra, acompanhado das
explicações técnicas e artísticas, em linguagem e didática para estudantes e
curiosos na construção do poema. O motivo do desafio destina-se a educar os
jovens a interpretar e criar poesia, especialmente a de vanguarda, metafórica.
Infelizmente, há versos por aí travestidos de poesia. A colaboração de Dílson
Lages, certamente, cairá nas mãos de estudantes e professores, em círculos de
debate:
MARATAOÃ
“O rio corre
em meu coração/E separa os sentimentos da areia./A vaga das águas vai/Virando
pó em pensamento/E a estrada encurta distâncias./O rio viaja no horizonte/Onde
dançam os cabelos das carnaúbas/E soluçam os olhos do sol./O rio corre em meu
coração/E deságua nas correntezas do caminho.”
Por economia
de espaço, compactei os versos. Dílson enviou seguinte comentário, reduzido ao
espaço da coluna:
“Qual a alma de uma cidade? Antes dos valores do mundo do
consumo determinarem tendências e comportamentos, em muitos lugares, a igreja,
a praça e principalmente o rio definiam a essência das cidades. O afeto, a
interação, o tempo mais valiam que qualquer outro signo, porque a pressa era
viver. O afeto, a interação e o tempo cabiam com todas as letras na igreja, na
praça e principalmente no rio.
Muitos exaltaram o rio-alma de sua aldeia. Pessoa enalteceu o
Tejo. João Cabral de Melo Neto, o Capibaribe. Da Costa e Silva, o Parnaíba.
Exaltei o amor pelo rio de minha terra de nascimento, expressando no poema
Marataoã designação do volume de águas que serpenteia o perímetro urbano de
Barras-PI, o sentimento do eu lírico que utiliza o rio não apenas como símbolo
de identidade, mas elemento por meio do qual o lirismo telúrico projeta a
interlocução entre o mundo exterior e o universo interior da voz poética. O rio
funciona, pois, como uma metonímia para a própria terra e as emoções dela
advindas, resignificada em jogos sonoros e imagéticos, construídos com a
finalidade de revelar o sofrimento pela distância da terra-berço.
Como em poesia a relação ritmo-imagem conta mais do que
qualquer experimentalismo, os recursos da tradição literária, os tropos, ganham
sentido especial. Neste poema, extremamente musical, o rio e a terra se
confundem semanticamente. O rio é movimento (inclusive pela repetição assídua
do som “rê”): assemelha-se ao sangue (“o rio corre em meu coração) – corre,
viaja, dança. Acompanha o eu lírico como fragmento, como memória, conotada na
metonímia “vaga das águas” (a parte pelo todo). O rio é onipotente, conforme se
vê no processo metonímico “deságua nas correntezas do caminho”, processo que
reitera o significado afetivo tanto da terra quanto do Marataoã. A Terra
(cidade) e o Marataoã se confundem e fundem na expressão da alegria e da
tristeza... o rio “separa os sentimentos da areia”, “vira pó em pensamento”,
“soluça”, “deságua”, entretanto, está continuamente vivo no eu lírico... o rio
absorve a imaginação: sinestesias, assonâncias e aliterações em alta
voltagem... “cabelos das carnaúbas”,“olhos do sol”,.. ritmos e imagens...por
conta da imaginação do leitor. Deixo o leitor à vontade, afinal, não apenas o
rio, paradoxalmente, reduz-se a lembranças, mas tudo aquilo que significa, para
nós, o afeto sem medida exata.”
Fonte: Portal Entretextos
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