METAPOEMAS COMENTADOS (Continuação)
Alcenor Candeira Filho
3. POEMAS E COMENTÁRIOS
3.1 – FONTE
vêm donde as ondas sonoras
presas a vagas ideias
em forma de idílios e odes,
de acalantos e epopeias?...
vêm
d’além “daquela serra
onde azula o
horizonte”?
vêm
do vento nas
“palmeiras
onde canta o sabiá”?
vêm
do rangido da moenda
“a cana a triturar”?
vêm
dos “bois da minha
terra”
mugindo sob o luar?
donde as sonorosas
ondas
presas a vagas
ideias
em forma de éclogas
e odes,
de elegias e epopeias?...
C O M E N T Á R I O Nº 01
A partir de indagações sobre a procedência
da poesia, a primeira estrofe enfatiza aspectos musicais e conteudísticos do
poema expressos através da menção a diversos gêneros literários.
As quatro estrofes seguintes fazem alusão
respectivamente a José de Alencar (“Iracema”), Gonçalves Dias (“Canção do
Exílio”) e a Da Costa e Silva (“A Moenda” e “Saudade”).
A estrofe final repete com pequenas
alterações a inicial.
3.2 - FORMA
forja-se a forma como
firma
reconhecível em
cartório:
o punho próprio
individua
mesmo no traço da
rubrica.
filha do sol, neta da
lua,
é no calor que vem da
sombra,
qual no horizonte
largo o sol,
que lentamente é
feita a forma.
não guarde a marca
face nova
(de novo nada sobre o
solo),
mas que o corte, inda
que tosco,
na peleja que se
renova
por linha reta ou
torta o rosto
diverso mostre do do
sósia.
C O M E N T Á R I O Nº 02
Uma das qualidades do estilo é a
originalidade, que não se confunde com a capacidade de criar o que é
inteiramente novo, mas que pressupõe a marca do que é autêntico, individual,
intransferível.
De Musset: “Em arte, tudo pertence a todos.”
De Montaigne: “Os literatos só podem repetir-se.”
É certo que de vez em quando surge um
poeta maior capaz de apresentar estilo diferente e inconfundível, mas que não significa originalidade absoluta: em
qualquer hipótese é sempre possível a constatação no seu texto de alguma
identidade com o de outro escritor.
A convicção da inexistência de originalidade absoluta no
campo poético poderia ser contestada com a seguinte interrogação: nem os
primeiros poemas que apareceram no mundo são totalmente originais?
Em princípio, não há dúvida de que a
poesia de um estágio primitivo seria original, na medida em que, no ato de
criação, não poderia sofrer o influxo de poema inexistente. Ocorre, no entanto,
que essa poesia era constituída de atividade anônima e de divulgação oral,
capaz de influenciar. Portanto, até os primeiros poemas escritos não eram
imunes aos vestígios da poesia daquele estágio primitivo.
Se “o estilo é o próprio homem”, o poema
como diz o primeiro quarteto deve conter a impressão digital do autor para que
seu texto não seja confundido com plágio, isto é, com a imitação grosseira e
servil com que alguém quer passar como sua obra alheia.
No segundo quarteto, o verso “filha do
sol, neta da lua” foi inspirado no “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”,
numa das acepções registradas no verbete FILHO: “’f. do sol e neto da lua’:
indivíduo que se considera descendente de estirpe ilustre”.
Os tercetos do soneto em análise reafirmam
o teor do início deste comentário.
3.3 – FUNDO E FORMA
Horizonte, horizonte
Trêmulo, casi trêmulo
De su don inminente!
Se sostiene em um hilo
La frágil, la difícil
Profundidad del mundo.
(JORGE GUILLÉN)
larga estrada
enquanto curta,
estreita se quilométrica,
ó sinuosa linha reta,
- via imensa e diminuta.
luva que sempre se calça
no guidão de quem pilota,
cadarço que se (des)ata
na chuteira de quem joga;
ruídos que se afunilam
no céu da boca profundos
rasgando o véu palatino
de sentir no anseio o
mundo;
sopros que os
surdos escutam,
imagens que os cegos
alcançam,
letras em lábios de mudos,
versos rompendo
distâncias;
vôo aleijado de corvos
em meio a mil vendavais
vozes que ecoam nas
curvas
do ofício e vício
verbais...
poema -
semente fincada
na ordem/desordem
alfabéticas:
letra -
P - e outras co’as quais
se ilude e peleja o
poeta.
C O M E N T Á R I O Nº 03
Composição constituída de seis estrofes
regulares de quatro versos em redondilha maior, com rimas alternadas consoantes
e toantes.
Trata-se de poema metalinguístico que
questiona na estrofe inicial o problema das contradições humanas presentes em
toda a evolução da poesia universal, utilizando-se para tanto de uma figura de
pensamento denominada “paradoxo”, proposição aparentemente absurda, resultante
da reunião de ideias contraditórias.
A segunda estrofe refere-se ao poeta, ao
criador do poema, ao que luta (e se ilude) com palavras para que até surdos e
mudos as alcancem.
3.4 - FONTE
parcimoniosamente
e pacientemente
beba a sede na fonte
que o tempo não seca:
não poluída - a
água clara
será clara por todos
os séculos de
séculos.
não vá correndo ao
pote
como os
pavões-do-mato
que por detrás da
máscara
ostentam a mesma cara
e tudo o mais igual
nas cores da plumagem
e na cabeça oca.
C O M E N T Á R I O Nº 04
Em literatura não há nada de novo: tudo se
re-cria.
Re-criar não é copiar, xerocar, plagiar,
que são procedimentos criminosos de agressão à propriedade imaterial ou a
direitos autorais. Re-criar significa re-inventar a partir da experiência
histórico-literário de todas as civilizações.
Todo escritor sofre e exerce influências.
Exemplo: Petrarca, Ovídio e Homero exerceram influências sobre Camões, que por
sua vez influenciou praticamente todos os poetas portugueses e brasileiros.
Beber nas límpidas águas das fontes
clássicas, que o tempo não seca, é a melhor opção para o artista.
Os verdadeiros poetas não podem ser
confundidos com “os pavões-do-mato” de cabeça oca, que nada criam.
3.5 – FORMA E FUNDO
som sonho sonata
lago lírio lua
prece pedra pranto
relva riso rua
e o abraço do braço
e o beiço do beijo
e a luta do peixe
e o calo da foice
e cerca do solo
e o preto do luxo
e a fuga da flecha
e o peso do corpo
e o lixo do muito
e o luxo do pouco
onde o novo no globo?
poema: corpo
em chama. forma
e fundo: os dois.
não seria mais
o frio corpo oco
que copo d’água
em boca de morto?
poema: corpo
flâmeo e fértil
que a outra forma
desde o rosto.
tudo tal qual
pálpebras lábios
cabelos olhos
diante d’água
clara do poço.
poema: cabeça
troncos membros:
nada mais velho
nada mais novo.
C O M E N T Á R I O Nº
05
Poema repleto de recursos rítmicos e
acústicos destacando-se as aliterações, especialmente com as consoantes “s”,
“l”, “p”, “r” (1ª estrofe), “b” (2ª
estrofe) e “f” (4ª estrofe).
Versos em redondilha menor na primeira
estrofe e tetrassilábicos na segunda.
As doze palavras da primeira estrofe
correspondem metaforicamente a:
- 1ª : ritmo
- 2ª : devaneio
- 3ª : melodia
- 4ª : barcarola
- 5ª : paz
- 6ª : namoro
- 7ª : religiosidade
- 8ª : obstáculo
- 9ª : tristeza
-l0ª : campesino
-11ª : alegria
-12ª : urbano
Os versos da segunda estrofe se vinculam
respectivamente à ideia de:
- carinho
- amor
- labuta
- dor
- latifúndio
- luto
- fugacidade
- carga
- pobreza
- riqueza
Os versos iniciais da última estrofe
definem o poema como forma (“corpo”) e ideia (“fundo”), -
artefato estético que não cessa de renovar-se.
3.6 - FINALIDADE
conquanto nada lhe custe
o poema o poeta não faz
para que à rígida norma
d’arte pela arte se ajuste
reduzindo tudo a
forma e fôrma e fôrma e forma.
conquanto nada lhe custe
não faz o poema o poeta
para deleite no avião,
mas para que o deglutam
mesmo fora do café
qual manteiga leite e pão.
conquanto nada lhe custe
não faz o poema o poeta
para embalar o que sonha
com mil fantasmas no escuro
como se o poema pudesse
ser sombra, insânia ou insônia.
conquanto nada lhe custe
trabalha o poema o poeta
para
que ele - como deve
-
seja senha, som e seta.
C O M E N T Á R I O Nº 06
O poema tenta responder `a pergunta - para
que poesia?
Embora nada lhe custe, o poeta luta com
palavras na construção do poema para que
ele não seja
- simples objeto de perfeição formal
- simples objeto de diversão
- simples cantiga de ninar
mas sim
- senha: sinal/indício
- som: melodia/ritmo
- seta: direção/leitor.
3.7 – NO RUDE REINO DOS RUMINANTES
no rude reino
dos ruminantes
onde se marca
o chão com cascos,
tudo é idêntico,
sempre tal qual.
na lentidão
das pernas longas,
na digestão
do duplo estômago
em cada dedo
sem digital.
nesse domínio
dos artiodáctilos
- reino de bichos
sinagelásticos
onde nenhum
sequer tem nome –
na forma de um
todos se estampam,
não importanto
se magro ou gordo,
se preto ou branco,
se velho ou novo.
não há sonatas
odes idílios
sonetos éclogas
entre os bovídeos:
no agreste campo
de infindas léguas
água e capim
são o bastante
pra garantir
mugidos lânguidos
que se sucedem
sempre qual antes.
pelo chocalho
de u’a nota só
preso ao pescoço
com fio de tripa
em cujas pontas
se ajusta o nó,
se identifica
deveras só
para que lado
o bicho pasta.
quando se aponta
a ferro o boi
não se o distingue
dos outros bois,
mesmo no berro
de quando em brasa
o ferro fere
e faz a marca.
no rude reino
dos ruminantes
- todos procriam,
porém não criam.
C O M E N T Á R I O Nº 07
Como ocorre com tudo o que existe na
natureza, os animais têm o dom de inspirar a poesia, a capacidade de criar o
clima poético:
“Saudade! O Parnaíba -
velho monge
As barbas brancas alongando...
E, ao longe,
O mugido dos bois de minha
terra...”
(Da Costa e
Silva -
“Saudade”)
Contudo eles não têm o poder de criar a
poesia, que é privilégio do ser humano, de quem é capaz de pensar e de
expressar-se por meio de um código linguístico.
O poema, pois, é criação do artista da
palavra, de quem tem condição de conferir autenticidade ao texto.
Enfim, “no rude reino/dos ruminantes/-
todos procriam,/ porém não criam.”
3.8 – COMPOSIÇÃO
quando te fixo,
palavra,
livre no livro
penso que podes
e que sobes montanha.
no entretanto,
és mais para plúmbea
que para plúmea.
onde o topo
da montanha?
C O M E N T Á R I O Nº
08
Poema transcrito na 2ª edição do livro
LITERATURA DO PIAUÍ, de Francisco Miguel de Moura.
Trata-se de metapoema que questiona as
limitações que o código linguístico impõe ao poeta, realçando a sensação de
angústia que assalta o artista no seu labor, resultante dessas forças
antagônicas: “a vontade de dizer” e “a impossibilidade de dizer”.
Continua amanhã - sexta-feira)
Nenhum comentário:
Postar um comentário