HISTÓRIAS DE ÉVORA E A CONTINUIDADE DO ROMANCE DE FORMAÇÃO
BRASILEIRO
Maria do Socorro Rios Magalhães
Professora universitária e membro da APL
Elmar Carvalho, poeta com vários livros
publicados, apontado pela crítica como autor de poemas dos mais inventivos e
inovadores da literatura piauiense,
surpreende os admiradores da sua obra poética, ao publicar sua primeira obra de
ficção em prosa, o romance Histórias de
Évora.
Embora não seja incomum escritores
exercitarem-se em ambos os gêneros - lírico e narrativo - trata-se de
diferentes posições de expressar uma visão de mundo, posto que, na poesia, o eu
lírico envolve-se com aquilo que expressa, predominando, portanto a
subjetividade, enquanto na narrativa, o sujeito narrador busca distanciar-se do
objeto narrado, almejando apresentar com objetividade a sua visão de mundo.
(STAIGER, 1975)
Nos seus estudos de estilística sociológica,
Mikhail Bakthin (1990) aponta que o romance e a poesia têm estilos radicalmente
opostos. O romance representa esteticamente o dialogismo da linguagem e arrasta
para seu estilo características estilísticas de outros gêneros, enquanto a
poesia prima pela pureza estilística, não permite que o dialogismo da linguagem
se manifeste e só deixa falar uma única voz: a voz do eu lírico. Aristóteles,
(1998) muito antes de Bakhtin, já dizia que na poesia lírica, o poeta fala em
seu nome expressando a si mesmo, enquanto na narrativa, o autor se manifesta
também através de personagens. Esta ligeira referência à teoria do romance de
Bakhtin tem como justificativa apenas destacar que Histórias de Évora, de Elmar Carvalho atende àquilo que o teórico russo estabelece como uma obra
romanesca, ou seja, para reconhecer que o poeta escreveu um romance.
Lendo a lúcida apresentação do livro, escrita
pelo crítico e professor Cunha e Silva Filho, que faz uma análise muito
pertinente do romance de Elmar, identificando, neste, características
tipológicas do romance de formação, percebe-se que, de fato, o autor
aproveitou-se da tradição alemã do Bildungsroman,
transportando o modelo idealizado por Goethe para o seu Wilhelm Meister. González (1997, p.177) assim compreende a origem e
propagação desse gênero:
[...] o romance alemão iria assumir o ideário
da Ilustração na obra de Goethe, Wilhelm
Meister. De imediato, a crítica iria fundir o conceito de Building à forma narrativa que
exemplificava sua realização, para criar a noção de um novo gênero, o Bildungsroman ou romance de formação.
Essa modalidade de romance, com larga difusão
na Europa, tem, no Brasil, também os seus seguidores, uns mais outros menos
fiéis. O maior expoente é, sem dúvida, Raul Pompeia com o seu famoso O Ateneu.
Contudo, José Lins do Rego, com Menino de
engenho e Moleque Ricardo,
Graciliano Ramos com Infância e até
mesmo Angústia, que narra a
trajetória do atormentado Luís da Silva incluem-se entre os romances
brasileiros inspirados no Bildungsroman
europeu. De autoria feminina, Perto do
coração selvagem, de Clarice Lispector, poderia ser classificado como
romance de formação, assim como muitos outros que acompanham o ideário de Wilhelm Meister, com maior ou menor
fidelidade ao original.
Já no caso da Literatura Piauiense, pelo menos
dois romances de formação podem ser registrados: Ulisses entre o amor e a morte, de O.G Rego de Carvalho, e Caminho de perdição, de Castro Aguiar.
Este
tipo de romance tem como principal característica apresentar um protagonista em
uma jornada de crescimento espiritual, político, social, psicológico, físico ou
moral. É o que ocorre com o personagem Marcos Azevedo, de Histórias de Évora, como muito bem observou Cunha e Silva Filho na
sua Apresentação, pois o enredo acompanha o período que vai da adolescência do
protagonista até a entrada na maturidade. Paralelo ao aprendizado do amor, vai
se dando o aprendizado da literatura, pelo jovem Marcos Azevedo. À medida que
vai depurando sua forma de amar, o protagonista vai depurando também a sua
forma literária, perseguindo o ideal de perfeição que sempre move o personagem
do romance de formação.
Concordando com Bakthin ao afirmar que o
romance é gênero que permite maior liberdade criativa, misturando vários
gêneros na sua estrutura, constata-se em Histórias
de Évora a representação de vários outros gêneros, como bilhetes, letras de
canções, poemas, anedotas, folclore, entre outros. Esse recurso que alguns
chamam de intertextualidade, Bakhtin (1990) denomina como hibridismo, ou seja,
mistura de gêneros, fenômeno estilístico próprio do gênero romanesco.
Na ânsia de abarcar o maior território
narrativo possível, Histórias de Évora
não se contenta com apenas um narrador. A narração é feita por um narrador em
terceira pessoa que acompanha a evolução do jovem protagonista até a idade
adulta. Porém, ao chegar ao décimo primeiro capítulo, este narrador em terceira
pessoa dá a palavra ao protagonista Marcos Azevedo, que passa também a exercer
a função de narrador, utilizando a primeira pessoa, de modo que os dois
narradores vão conduzindo o processo narrativo até o final do romance. Enquanto
o narrador em terceira pessoa dá conta da trajetória de crescimento do
protagonista, o narrador em primeira pessoa assume um tom memorialístico,
anunciado, logo de início, pela citação de Marcel Proust. Assim, não deixa
dúvida de que esse narrador recorre à memória para contar, em paralelo com a
sua própria história de vida, a história da cidade onde vive, ou seja “as
histórias de Évora”. Temos, portanto, justapostas, duas narrativas, que compõem
a estrutura do romance de Elmar Carvalho.
O espaço do romance é a fictícia cidade de
Évora, referência à histórica cidade lusitana, conhecida como a capital do Além
Tejo, reconhecível, entretanto, para os leitores piauienses como a Princesa do
Igaraçu, a também histórica cidade da Parnaíba do estado do Piauí. A cidade
está toda lá, com seus casarões, o Porto das Barcas, o meretrício à beira do
rio, as grandes casas comerciais de importação e exportação e muitos outros
pormenores que identificam a Parnaíba dos anos 70 e 80 do século passado.
O discurso da história socioeconômica do Piauí
se entrecruza com o discurso romanesco, seja na fala do narrador em terceira
pessoa, seja na fala do outro narrador, em primeira pessoa. Desse modo, Histórias de Évora, se mostra como texto
pluriestilístico, pluridiscursivo e
plurilíngue, características, que,
segundo Bakhtin, definem o gênero romance.
Concluindo esta breve notícia da publicação Histórias de Évora, só resta assinalar
que o romance de Elmar Carvalho enriquece a literatura piauiense, ousando
retomar a temática da formação de um jovem, apropriada da tradição europeia e
ainda pouco desenvolvida por autores piauienses. Mas não só por isso, também
pelo estilo, que rompe com a linearidade e inova o processo narrativo, recriando
formas de contar histórias que prendem o leitor e deixam a impressão de ter
vivido também a experiência existencial do jovem herói que narra e é também
narrado nas Histórias de Évora.
ARISTÓTELES, HORÁCIO E LONGINO. A Poética. Clássica. São
Paulo: Cultrix, 1998
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do
romance. São Paulo: Hucitec, 1990
CARVALHO, Elmar. Histórias de Évora. Teresina: Academia
Piauiense de Letras, 2017. Coleção Século XXI.
GONZÀLEZ, Mario M. Romance de formação e romance picaresco:
uma questão de identidade. In: REIS, Lívida de Freiras (coord.) Estudos
&Pesquisas: fronteiras do literário. Niterói-RJ: Universidade Federal
Fluminense, 1997
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975
Fico contente, professor Maria do Socorro Rios Magalhães, porque constato que o romance do Elmar Cavalho, por suas qualidades e por sua propostas, vem ganhando seu lugar na fortuna crítica, tanto a não especializada quanto a acadêmica, que seria o caso da sua e da minha.
ResponderExcluirA sua análise, bem fundamentada por por bibliografia de alta qualidade, ainda avança mais sobre aspectos que não abordei na minha introdução à obra.
Porém, esse é o papel da crítica literária e do ensaio. Cada análise feita pelo analista, com competência e seriedade, alarga a visão da obra e descortina outras dimensões não percebidas pelos que nos precederam.
Assim se constrói a história crítica de um livro que, por sua vez, é acrescida à produção ficcional da literatura escrita no Piauí e a faz avançar no tempo e no espaço.
Cunha e Silva Filho
Em tempo, digo: "Fico contente, professora Maria do Socorro..."
ExcluirMeu caro poeta!
ResponderExcluirAcrescentei mais um livro seu (Histórias de Évora)na minha biblioteca. Fui comprar na banca do Louro mas quando fui pagar ele perguntou se eu era seu amigo e não recebeu o dinheiro, disse que era um presente seu. Muito obrigado. Esse seu gesto me levou a deixar lá com o Louro vário livros meus para ele dá para meus amigos.
Um afetuoso abraço
Caro Carlos Henriques,
ExcluirO nosso bravo Louro, em sua humildade e fidalguia, é uma reserva moral de Parnaíba e é uma figura emblemática da Praça da Graça, onde o conheci, na década de 1970. E por isso merece ser "tombado" como patrimônio material e imaterial de nossa Parnaíba da Senhora das Graças.
Obrigado por suas palavras e pelo interesse em ler Histórias de Évora.
Abraço,
Elmar Carvalho