Fotos extraídas do site da APAL |
Brinco de
Ouro
Pádua Marques
Contista, romancista e cronista
A pedra comeu, correu solta naquele
dia 27 de fevereiro de 1928 na região do porto Salgado na Parnaíba. Coisa de
fechar o comércio, as lojas e armazéns, derrubar as barracas de frutas e
verduras entre a rua dos Barqueiros, a igreja de Nossa Senhora da Graça e a
igreja dos pretos, perto do Banco do Brasil. Tudo porque Raimunda Brinco de
Ouro se sentiu ofendida além da conta com alguns estivadores, estudantes da
Caixeiral e embarcadiços. Mas fazia tempo que aquela situação já era esperada.
E o prejuízo foi grande naquele dia.
Francisca Raimunda Sotera, pelo que e
até onde se sabia era do Camocim, no Ceará. Dizia ser de uma família de gente
importante, que tinha deputado, senador, prefeito, médicos, juízes e tudo o
mais. Veio dar com as pernas na Parnaíba a mando de seus pais pra estudar no
Colégio Nossa Senhora das Graças. Menina à época de uns treze anos e já furando
a blusa com o bico dos peitos. Veio pra casa de umas tias velhas nos Campos,
mas acabou se perdendo na companhia de outras colegas.
Mas já ficando ainda mais mocinha,
muito falante e jeitosa, achou a forma do pé quando um caixeiro que se dizia da
Casa Inglesa se engraçou dela. Francisca Raimunda Sotera fugia da casa das tias
de tarde, quando voltava do Colégio Nossa Senhora das Graças, pra se encontrar
com as colegas e os namorados. Iam todos atravessando de canoa, direto passear
no outro lado da Ilha Grande de Santa Isabel, entre as carnaubeiras, e na volta
ficavam olhando o rio Igaraçu e as embarcações que chegavam e as que saíam pra
Tutoia no Maranhão.
O namoro foi engrossando, engrossando,
ficando sério e quando Francisca Raimunda Sotera se deu conta já estava perdida.
O caixeiro lhe prometeu casamento, roupas boas, casa com mobília e até uma
criada, nos Campos, viagem pra o estrangeiro e tudo o mais. E ela acreditando.
Mas quando ela cobrou quando seria esse casamento, ele fez troça. Ela
perguntava, cobrava e ele se fazia de mouco. A mocinha de família importante de
Camocim acabou ficando fraca dos nervos. As tias jogaram ela fora de casa e
deram ciência aos pais em Camocim. Eles nem quiseram mais saber e jogaram os
pés.
Mas Francisca Raimunda Sotera não saiu
dessa enrascada em que se meteu com o caixeiro, de mãos abanando. O caixeiro
lhe deu um par de brincos, dizendo que eram de ouro maciço e que eram a prova
de que iriam se casar um dia. Aquilo era apenas o começo. O certo é que a moça
acabou caindo no mundo e o cais do porto Salgado e a rua Grande na Parnaíba se
tornaram seu ponto e meio de vida. E de tanto falar desse presente acabou
ficando loura à força e conhecida de todo mundo como Raimunda Brinco de Ouro,
ou simplesmente a Brinco de Ouro!
Agora dava pra andar pra cima e pra
baixo com um monte de papeis amassados debaixo do braço, uma bolsa a tiracolo
feito mulher da alta sociedade, toda pintada, entrando de armazém em armazém,
olhando peças de pano e calçados, se dizendo rica e que era empregada de
confiança dos Franklin Veras na rua Grande e coisa e tal. Que se quisesse
comprava toda a loja somente com o dinheiro apurado com a venda dos brincos. Os
donos das lojas de início achavam graça, desconversavam. Mas Francisca Raimunda
Sotera a cada dia ia ficando mais pior do juízo e mais inconveniente. Ao ponto
de ficar levantando a saia na frente de todo mundo!
E os estivadores, desocupados,
embarcadiços, bêbados de pé de balcão, caixeiros, vendedores de passagens pra o
Maranhão, até donos de armazéns, toda aquela gente que passava o dia inteiro
perambulando ou fazendo alguma coisa no porto e nas redondezas e outros mais,
ficavam mangando dela, jogando pilhérias. Ela passava a xingar, rogar pragas,
jogar pedras e o que fosse encontrando pela frente. Vez por outra alguma
vendedora de verduras e frutas de Ilha Grande se condoía e retirava Brinco de
Ouro pra um lugar mais seguro, longe das incomodações daquela gente rude.
E toda aquela situação foi ficando
desagradável pra os comerciantes daquela Parnaíba, com suas lojas de tecidos e
aviamentos finos, seus armazéns de secos e molhados, a representação do
consulado da Inglaterra e outras tantas repartições do governo. Os comerciantes
já colocavam na ponta do lápis os prejuízos por conta das estripulias de Brinco
de Ouro, fustigada por um bando de desordeiros e desocupados. Foi quando as
autoridades acharam que ela estava indo longe de mais e doente e precisava ser
internada.
Foi por esse tempo que havia sido
criada pelo doutor Mirócles de Campos Veras a Fundação São Lázaro, com dez
contos de réis, dinheiro saído da burra de José Narciso, Josias Correia e da
firma James Clark, a Casa Inglesa. O leprosário levou muita gente doente e que
perambulava pelas ruas pra o distante hospital, no meio do mato. Francisca Raimunda Sotera acabou indo ser
internada a pulso, assim como tantos outros doentes ou suspeitos de terem lepra.
Dela nunca mais se teve notícia, se morreu, se foi curada, se fugiu igual
tantos e tantos leprosos que ali foram internados.
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