Foi
lançado ontem, dia 23/01/20, às 19:30 horas, o livro de memórias “Trechos do
Meu Caminho”, de Leônidas de Castro Mello, em bela solenidade, em que o
auditório da Academia Piauiense de Letras ficou lotado, tendo havido
necessidade de cadeiras suplementares. A apresentação da obra, integrante da
Coleção Centenário, editada pela APL, foi feita pela senhora Socorro de Castro
Melo Tajra, filha do autor, pelo acadêmico e professor Dílson Lages Monteiro e
por mim, com o texto abaixo. O evento foi presidido por Nelson Nery Costa e
teve a presença dos prefeitos de Teresina, Firmino Filho, e de Barras, Carlos
Monte. Barras, terra natal do autor, se fez representar por cintilante “comitiva”,
composta, entre outros, por Antenor Rego Filho e sua esposa Nise, Manoel Monte
Filho, Francisco de Paula Silva, Alcides do Rego Lages Filho e Chico Acoram.
Tive a honra de ter um exemplar autografado
por dona Socorro, que ocupará lugar de destaque em minha biblioteca.
Caminhos de Leônidas Mello
Elmar Carvalho
A primeira edição de Trechos de meu caminho, de Leônidas de
Castro Mello, data de 1976. Vi esse livro na casa de uns parentes barrenses de
meu pai. Já não recordo se o tomei emprestado, ou se apenas lhe li algumas
páginas. Morando numa pensão, perto da velha Casa Saló e da sede do Sambão,
numa área intermédia entre o mercado velho e o Liceu, certo dia criei coragem,
e me dirigi à COMEPI – Companhia Editora do Piauí, e lá, com certa timidez,
pedi que me fosse fornecido um exemplar.
Quem me atendeu foi falar com o presidente da editora, que quis
conversar comigo. Eu lhe expliquei, sem dúvida, por que tinha interesse em ter
o livro e como dele tomara conhecimento. Devo ter dito que minha família, por
parte de meu pai, era de Barras, terra natal do autor. O diretor que me atendeu
deve ter sido Deoclécio Dantas; gostaria que tenha sido ele, cuja digna
trajetória política e jornalística acompanhei, à distância.
Algumas décadas mais tarde nos tornamos colegas na Academia
Piauiense de Letras, quando travamos amizade e passamos a nutrir recíproca
admiração. O certo é que de lá saí com um exemplar, que li e reli com prazer.
Recomendei a meu pai que também o lesse. Em virtude de viagens e mudanças
residenciais, ou talvez por causa das devoradoras traças e goteiras, o perdi, mas
nunca esqueci vários de seus trechos verdadeiramente antológicos. Vivia eu
nessa época uma fase um tanto difícil de minha vida, pois em junho de 1975, aos
19 anos de idade, fora morar em Parnaíba, e em setembro desse mesmo ano viera
assumir emprego nos Correios, em Teresina. Era inexperiente em emprego e nunca
deixara a casa de meus pais.
Conquanto tenha dito Leônidas que escrevera suas memórias
“sem qualquer pretensão a mérito literário”, até porque jamais se dedicara a
estudos filológicos, devo dizer que as li com muito interesse e atenção, e até
com muito gosto, mesmo sendo eu na época um leitor compulsivo de ficção e
poesia. Alinho o seu livro entre as obras memorialísticas que mais admirei,
entre as quais cito Memórias e memórias inacabadas, de Humberto de Campos,
Confesso que vivi, de Pablo Neruda, Ensaio autobiográfico, de Jorge Luis
Borges, Ensaio de autobiografia, de Boris Pasternak, e entre as várias escritas
por Pedro Nava.
Apesar da restrição feita pelo próprio autor, como assinalei
acima, considero ter o livro boas qualidades literárias, mormente no âmbito
memorialístico e autobiográfico, além da importância que possui para a história
recente de nosso estado, pelo seu teor confessional e por ser o depoimento de uma testemunha presencial e privilegiada,
conforme demonstro a seguir.
Advirto, de logo, que não irei, aqui, tratar das notáveis e
inúmeras obras físicas que o professor, médico e político Leônidas de Castro
Mello realizou em sua paradigmática e profícua administração, mormente no campo
da medicina e da educação, nem tampouco das melhorias que ele implementou na
prestação de serviços públicos.
Não bastassem as qualidades da redação, tais como concisão,
objetividade, clareza, correção gramatical, há que se elogiar o seu estilo
fluente, colorido, vívido, que dá ao livro certo sabor de romance, inclusive
pelo fato de o autor ter intercalado às narrativas e descrições vários
diálogos, em que tentou reconstituir, da maneira mais fiel possível, como ele
fez questão de frisar, o discurso direto de vários personagens que lhe cruzaram
o caminho.
Embora o livro seja um depoimento memorialístico, e que por
essa razão pudesse ser muito subjetivo e pessoal, podemos lhe aferir a objetividade
e mesmo a imparcialidade, porque algumas afirmativas são corroboradas por
transcrições jornalísticas e de livros, e porque, do meu conhecimento, o seu
livro nunca foi refutado e também porque o seu autor sempre teve uma reputação
de homem veraz e honesto, tanto na vida pública quanto na particular, não
obstante todos estejamos sujeitos a eventuais equívocos, ainda que
circunstanciais ou diminutos.
A obra, enriquecida pelos textos preambulares de Dílson Lages
Monteiro, Maria do Socorro de Castro Melo Tajra e Dirceu Arcoverde (1ª edição),
tem um prólogo, em que
Leônidas faz uma espécie de resumo de sua trajetória de homem público, e das
principais razões que o levaram a escrever suas memórias, a que se seguem os
trechos de seu caminho, de caráter pessoal, titulados: Meus pais, Infância, Um
parêntese necessário, Adolescência e Juventude. A partir de Maturidade – vida
profissional (ligeira referência) – Vida Pública – Política, as demais partes
pouco se referem a sua vida privada, tais como vida de casado, paternidade,
amizades pessoais, lazer, vida social etc. Ou seja, quase tudo que é relatado,
após Juventude, diz respeito a sua vivência e embates políticos.
Muito me comoveu a parte Infância, em que ele narrou a sua
profunda e pura amizade ao menino Zuza, que foi companheiro de brincadeira,
estudos e escola. Nesse trecho, o leitor pode ter uma ideia de como eram os
costumes, a infância, as brincadeiras, o lazer e o estudo numa cidade
interiorana do porte de Barras. Esse capítulo é movimentado, cheio de diálogos,
e nele são descritas as lutas de seu pai, o comerciante Regino Lopes de Mello,
a sua postura de aluno exemplar, ante uma escola simples, de alfabetização,
dirigida por um professor rígido, o Mestre Freitas, que não se escusava a fazer
uso do “instrumento didático” palmatória, contudo eficiente nos limites de seu
grau elementar de magistério.
São comoventes, como disse, certos episódios da amizade entre
os meninos Zuza e Leônidas, especialmente os que se referem à doença e morte
inesperada e precoce de Zuza. O trecho Infância, por certos detalhes, por certos
pormenores dignos da boa romancística, me fez lembrar, sem que eu esteja
exagerando, Menino de Engenho, de José Lins do Rego. Fico com a impressão de
que Leônidas deve ter lido alguns bons romances ou ao menos algumas das
melhores obras memorialísticas e autobiográficas.
Fiquei com a certeza, da leitura dessa e de outras partes do
livro, de que poderia ter escrito um bom romance, se a isso tivesse se dedicado
no outono de sua vida. Essa convicção me vem do seu estilo límpido, da sua
habilidade na urdidura de diálogos e entrechos, bem como em várias descrições
da paisagem, revestidas de beleza e emoção, em que não lhes falta o condimento
de verdadeira prosa poética. Também não lhes falta uma dose bem medida de
pitoresco ou pinturesco, como neste trecho:
“(...) eu me distraía também vendo as
mulheres que iam apanhar água e voltavam com as latas na cabeça, equilibradas
sobre rodilhas de pano. Voltavam sempre aos grupos, com os braços inteiramente
livres, as latas em perfeito equilíbrio. Passavam conversando alto, às vezes
gesticulando. Eu procurava distinguir a melhor equilibrista e escutava as
conversas. Além das mulheres, havia a turma de moleque que passava tocando
jumentos muito mansos com cargas de ancoretas. Todos iam buscar o líquido
precioso para o abastecimento da casa no dia seguinte. Alguns assobiavam
músicas que eu conhecia. Isso tudo me distraía.”
Em 8 de março de 1912, quando tinha em torno de 15 anos, após
insípida e incipiente experiência como balconista do comércio de seu pai,
Leônidas foi prosseguir os seus estudos em Teresina. Relata as peripécias da
viagem, em lombo de animais, em época de forte invernada, em que o Marataoã
estava bravio e transbordara de seu leito, em alguns pontos se alargando por
mais de dois quilômetros. Assim, já não acredito serem hiperbólicos os versos do poeta barrense Pedro Alves Furtado, quando comparou o Marataoã a um imenso mar oceano. É que o vate se referia ao rio na época das rigorosas chuvaradas. Seu pai, aconselhado a adiar a viagem, teria
perguntado em resposta: “Eu já enfrentei as águas do Amazonas, como não
enfrentarei as do Marataoã?”
Descreve, com perícia, beleza e emoção, as dificuldades
dessas perigosas travessias, a beleza deslumbrante desses alagadiços e lagoas,
dos tabuleiros e colinas, em que as matas e as carnaubeiras se refletiam no
espelho das águas. Cita as fazendas e as casas em que pernoitou nessa longa e
cansativa viagem. Mais de duas décadas e meia depois meu pai faria essa mesma
viagem, quando foi ser aluno interno do Diocesano, numa época restritiva em que
mui poucos piauienses conseguiam cursar o antigo ginásio.
Já me alongando em demasia, devo pisar no freio. Contudo,
ainda algo desejo acrescentar. Como disse, senti falta de que o autor pouco
tenha falado de sua experiência de marido e de pai, sem entrar, claro, em
intimidades que só lhe dizem respeito.
Tendo ele tido a coragem e a sinceridade de falar de suas
rivalidades e mesmo inimizades políticas; de abordar o rumoroso e controvertido
episódio da aposentadoria compulsória dos desembargadores José de Arimathéa
Tito, Esmaragdo Freitas e Simplício de Sousa Mendes e de relatar as suas
dificuldades administrativas e políticas, e até mesmo as suas aperturas
financeiras e decepções, era de se esperar que ele fosse esclarecer os
episódios da queima de palhoças e casebres no período de seu governo.
Contudo, nada falou sobre esses “fogos”, que seus detratores
lhe atribuíam, de forma direta ou indireta. Soube, já não me recordo se através
de leitura ou de conversa, que ele chegou a anunciar a um seu parente que iria
revelar a verdade. Mas depois voltou atrás, alegando que não queria magoar ou
denegrir a memória de ninguém.
Também ouvi dizer que um dia, de forma inesperada, muitos
anos após esses incêndios, o major Evilásio Vilanova, figura por muitos
considerada um tanto sombria e sinistra, a quem esses crimes eram imputados,
quando ele comandou a Polícia Militar do Piauí e a chefia de Polícia (Segurança
Pública), o procurou em sua residência, e lhe pediu para conversarem em
particular, sem o testemunho de ninguém.
Nada se soube dessa conversa, já que Leônidas lhe manteve o
mais absoluto sigilo. Maria Genovefa de Aguiar Morais Correia, no seu livro
memorialístico Genu Moraes – a Mulher e o Tempo, também estranhou o silêncio de
Leônidas sobre esse assunto, que ainda hoje causa controvérsias e especulações,
conforme se pode ler na página 363:
“Em seu livro Trechos do meu
caminho, publicado em 1976, no governo Dirceu Mendes Arcoverde, pela Comepi
– Companhia Editora do Piauí, extinta no governo Wellington Dias, o Dr.
Leônidas de Castro Mello fala sobre praticamente tudo que aconteceu no período,
primeiro como governador constitucional, eleito pela Assembleia Legislativa do
Estado, depois como interventor federal, indicado pelo presidente Getúlio
Vargas. Mas não toca no assunto dos incêndios.
O Deoclécio Dantas, que era presidente
da Comepi na época da publicação do
livro, me disse que originalmente Trechos do meu caminho tinha um
capítulo falando sobre os incêndios.
O livro estava sendo preparado
quando, um dia, o Dr. Leônidas de Castro Mello entra em sua sala de trabalho, e
pede para revê-lo. Ali, na sua frente, ele tirou o capítulo relativo ao
assunto. Sobre seu ato, explicou que estava fazendo aquilo porque um dos
acusados de ser mandante dos incêndios acabara de falecer e ele não queria
atingir a memória do morto. Ora, quem faleceu na época, que poderia ser citado
na obra, foi o Dr. José Cândido Ferraz. Ele foi a Cleveland, nos Estados
Unidos, para se tratar, e lá faleceu em 23 de junho de 1975.”
Em suas memórias, Leônidas narra dois fatos curiosos, que,
pela sua estranheza, podemos entender como pertencentes ao reino do
sobrenatural. Talvez ambos possam ter contribuído para que ele tenha se tornado
espírita. Um foi a profecia, feita pelo estudante Clodoaldo Martins Ferreira, ainda
em sua adolescência, de que ele governaria o Piauí. O mais curioso é que o
“profeta” nunca teve esse dom premonitório, nem antes e nem depois desse augúrio
referente a Leônidas. E o outro, acontecido mais ou menos na mesma época, foi a
visão do espírito de sua irmã, falecida precocemente. Acredito que os dois
fenômenos possam ter aumentado a sua fé em Deus e na espiritualidade.
Sempre acreditei que Leônidas de Castro Mello foi um homem
honrado, e o próprio Simplício Mendes, seu desafeto, veio a admitir isso anos
mais tarde. Por isso, nunca acreditei que ele pudesse ser o responsável pelos
incêndios dos casebres. Foi um homem honesto em sua vida pessoal e na condição
de governante do Piauí, tanto que logo ao deixar o governo, sem o seu subsídio,
passou a enfrentar dificuldade financeira, depois superada. E foi um homem bom,
até porque a sua religiosidade a isso o induzia, assim como a sua índole.
Leônidas tinha muito o que contar, e contou. Tinha muito o
que dizer, e disse. E, principalmente, soube contar. Assim, as suas memórias
são quase o romance de sua vida, e podem ser lidas com prazer e emoção, porque
vertidas em bela fatura literária.
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