sexta-feira, 12 de junho de 2020

A boneca de pano roubada




A boneca de pano roubada

Pádua Marques
Romancista, contista, cronista

Catarina não era de esperar em casa. Veio e ficou rente ao muro da casa de seu Zé Mendonça, olhando pra o portão por onde deveria sair dentro de pouco, Tião Marruás, ajudante de oficina na Estrada de Ferro Central do Piauí em Parnaíba, o homem que havia deixado a família pra viver com ela e o filho que estava esperando. Seu medo não era em vão. A mulher legítima dele, dona Francisca, poderia aparecer a qualquer momento, dobrar a esquina, armada de faca ou tesoura e naquele momento tudo podia acontecer.

Dona Francisca, mãe das duas filhas do mecânico Sebastião, o Tião Marruás, queria era saber, achar um pé pra descontar sua raiva daquela que chamava de camarada, a rapariga do marido! Com ele teve apenas duas meninas, Isaura e Joana, a primeira, de oito e a segunda de sete anos. Vivia assuntando, remexendo nos bolsos das camisas e das calças dele pra ver se encontrava alguma pista de onde a rapariga morava. Perguntava pra os companheiros de serviço dele, mas ninguém dizia nada. Tudo feito boca de siri.

Como Tião Marruás conheceu Catarina? Ele e uns companheiros passavam o dia todo no trabalho de manutenção das linhas de trem na esplanada e as mocinhas ficavam de lá das janelas do Miranda Osório prestando atenção e intimando com eles. Uma dessas foi justo Catarina, que se impressionou com Tião Marruás, sujeito moreno, de boa altura e feição, cabelos sempre alinhados e com brilhantina, pente no bolso, cigarro Continental no bico, andando sempre de camisa aberta pra mostrar os peitos largos.

Dias passados e eles foram se dando, se encontrando na hora do almoço dos trabalhadores, pelas esquinas, nas ruas próximas pra dentro da Coroa, passeando por cima da linha de trem, ali perto da casa de doutor Mirócles ou indo até próximo da casa dela nos Campos, quase nos fundos da igreja de São Sebastião. E até que um dia Tião Marruás trouxe pra Catarina uma boneca de pano, vestida com saia e blusa de papel crepom e comprada no Mercado Central da praça Coronel Jonas. Ela gostou do presente.

A coisa foi tomando rumo e Tião Marruás acabou um dia roubando Catarina da casa dos tios. Roubou a moça e colocou numa casa boa no Macacal, com tudo do bom e do melhor dentro. Louceira, penteadeira, banco de pote, cama, mesa de janta com cadeira de vime, cadeira de balanço e até tinha promessa de um rádio e de luz elétrica. Tinha até uma menina pra fazer companhia pra Catarina.

Dona Francisca agora era de andar com uma tesoura dentro dos seios, pronta pra matar a rival. E essa rival era uma menina nova, linda, de seus dezoito anos, de nome Catarina, nascida e criada no Bom Princípio, na beira da linha de trem, assim como muitas outras mocinhas do Macacal em Parnaíba. Depois de já estar necessitando de escola veio morar na casa de uma tia, dona Suzana, nos Campos, pra estudar no Miranda Osório, ali perto da Estrada de Ferro e foi onde conheceu Tião Marruás.

Catarina agora sabendo do perigo que corria era de andar sempre armada com uma tesoura. Deixou de lado escola e as amigas de classe do Miranda Osório, as missas nas tardes de sábado na igreja de Nossa Senhora da Graça ou perto de casa, na igreja de São Sebastião. Agora era outra. O ferroviário agora visitava a casa da rapariga cheia de luxo, nova e bonita duas vezes na semana, quartas e sábados. Inventava qualquer coisa pra mulher ou pra seu encarregado no serviço.

Quando os pais ficaram sabendo que Catarina tinha fugido com um homem casado na Parnaíba, deixaram de mão. Era pra eles a ovelha desgarrada, a carapuça do dedo cortado, a vergonha da família e que estava de agora em diante esquecida. Uma menina que podia ser mais lá na frente uma professora! Mas agora o mal estava feito! Mas a moça quase ainda uma menina, que veio de Bom Princípio pra estudar e no futuro ser alguma coisa, agora estava sendo a rapariga de um homem casado e pai de duas meninas na Parnaíba! 

Na vizinhança de dona Francisca a conversa era de que Tião Marruás largou a mulher pra se amigar com uma menina que tinha quase idade de ser filha dele. Que a mulher era muito ciumenta, mandona, feia, sem modos. Ela vivia agora tomando remédios, indo na macumba lá pra os lados do Catanduvas levando roupa dele pra fazer serviço. E as conversas chegando ao pé do ouvido dela a toda hora. Chegou a pensar ir até o serviço de Tião, na Estrada de Ferro pedir que cortassem o dinheiro dele ou mandassem ele embora. Se não desse em nada ia dar parte na delegacia!

Passados uns meses daquele sábado de setembro de 1948, Catarina falou pra Sebastião que havia estado na Santa Casa e doutor João Silva disse que ela estava prenha. Foi o mesmo que aparecer uma assombração pra ele. Tião Marruás passou a mão na testa, coçou a cabeça ficou ofegante e correu a mão nos bolsos da camisa procurando pelo cigarro Continental. Aquilo era precipício demais!

Vivia sendo perseguido dia e noite pela mulher e agora aquela de Catarina vir dizer que estava esperando menino?! Foi o mesmo que dizer de que a canoa atracada do porto Salgado estava entrando água ou o trem carregado de coco babaçu tinha descarrilado! Catarina não se fez de rogada, não chorou nem nada.

Fazia tempo que andava se cansando daquela vida de andar fugindo, se escondendo, passando humilhação com medo de morrer ou até matar dona Francisca. Tinha perdido as amigas e sido esquecida pela mãe e o pai em Bom Princípio e os tios em Parnaíba. Agora ia tomar tento na vida. Deixou que Tião Marruás fosse embora naquele dia e sem perder tempo foi até o quarto, arrumou as malas, fechou a casa e foi embora. Nunca mais ninguém soube dela. A boneca de pano que um dia ganhou dele de presente, essa deixou na entrada da porta.   

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