quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Campo Maior - Retalhos da Memória

 


Proteus mirabilis

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Proteus mirabilis


Fabrício Carvalho Amorim Leite (*)


O isolamento e o autoabandono tornaram-se o palco de meus delírios. Como um pajé hesitante diante de sua própria tribo, imerso em um estado dramático, sou objeto de uma meditação aristotélica sobre a natureza humana e a sociedade — tema que pretendo explorar.

O velho benzedor, confinado em um refúgio onde a vida foi reduzida aos seus aspectos mais primitivos, experimenta um isolamento que transcende o físico.

Mesmo cercado por outros seres, ele se sente desconectado, esquecido pela falsa conexão tecnológica e pela pressa da vida moderna, como se, em seu próprio universo — e somente nele —, fosse uma criatura superior.

Essa sensação de superioridade ecoa a ideia aristotélica de que alguém que vive fora da sociedade pode sentir-se como um Deus, autossuficiente e além das necessidades humanas.

Mas será que o universo que o curandeiro criou, afastado do convívio humano genuíno, pode realmente substituir a interação humana? Este é o fardo que ele carrega.

No entanto, uma companhia inesperada surge: uma bactéria... Proteus mirabilis. Essa pequena criatura torna-se sua parceira nessa tragédia simbiótica, corroendo suas entranhas e sua alma.

O curandeiro, que antes se via como uma entidade superior, começa a perceber a ironia dessa companhia. Ele se pergunta: “Será que, como besta ou como Deus, possuo uma alma? ” Sua interação com outras formas de vida no autoexílio, especialmente com Proteus, o leva a confrontar o peso de uma existência fragmentada e as decisões que o conduziram a esse lugar de abandono.

Agora, ele não é apenas um curandeiro, mas também o portador da moléstia — companheira inseparável e, ao mesmo tempo, ceifadora em potencial. Na tentativa de escapar dos julgamentos e do desprezo que o cercam, o curandeiro se isola ainda mais.

Gradualmente, a imagem/miragem do homem isolado se desintegra: ele descobre que não é nem besta, nem Deus, mas um ser humano frágil, preso entre o leito de um hospital e o papel de um velho curandeiro, enfrentando as complexidades e os absurdos da vida enquanto busca, desesperadamente, a própria cura.

Humano, demasiadamente humano.

(*) contista e cronista.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

ÁGUAS E PEDRAS: TRIBUTO A LUZ I(S)LÂNDIA

 

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ÁGUAS E PEDRAS: TRIBUTO A LUZ I(S)LÂNDIA


Elmar Carvalho

 

                 Ao poeta e amigo Ivanildo Di Deus

 

As águas que rolam

pelas lombadas do morro

(bem) vindas das cercanias alvadias da igreja

            lavam os resíduos da cidade

            levam os rejeitos da saudade

e se afogam e se renovam

nas águas remansosas em novelo

do cotovelo recurvo do Parnaíba

bem ali onde as pedras

foram sufocadas

no manto cinzento do cimento

que lhes decepou a beleza

bem ali onde outrora

as lavadeiras estendiam

suas brutas labutas e canseiras

e tudo se fazia um encantado multicor

como se as roupas fossem

belas velas arriadas

enxaguadas e secando

sobre o lombo duro das pedras – agora

submersas na argamassa,

mas prenhes de lembranças

            e saudades.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

ROLINHA FOGO-APAGOU

Fonte: Google

                 

ROLINHA FOGO-APAGOU


Elmar Carvalho

 

Nos últimos dias, aqui em Regeneração, ou lá em Teresina, ao amanhecer, ou ao crepúsculo, tenho ouvido o cantar dolente de uma rolinha fogo-apagou. Muitos poetas têm cantado os passarinhos. Muitos têm se comparado a uma ave canora. Manuel Bandeira, em mais de um poema, falou nas andorinhas. O nosso H. Dobal fez versos às golondrinas e também ao sabiá. Este último foi cantado por Gonçalves Dias, que o colocou no alto de uma palmeira.

 

Alguns fazem crítica, alegando que sabiá não pousa nessa árvore. Não sei se a crítica procede; o que sei é que daria uma bela imagem: a plasticidade do sabiá agregada a uma linda palma de coco da praia ou mesmo de coco babaçu, e melhor ainda se fosse um imponente buritizeiro, pejado de brônzeos frutos. O cronista Rubem Braga também teve por tema esse passarinho de tão belo e aflautado canto.

 

Voltemos à fogo-apagou. Seu nome é a onomatopeia de sua cantiga. Pode ser entendido positivamente, como regozijo por um incêndio que tenha terminado; ou negativamente, como o fogo vital que se tenha transformado em cinzas e tristeza, como o facho emborcado do simbolismo das catacumbas e cemitérios. Seu canto, quase cantochão monocórdio, de timbre grave, sonoro, severo, solene, mesmo ao amanhecer, que é sempre alegre, traz certa ponta de tristeza.

 

Quando ouço esse canto ao pôr-do-sol, a melancolia me tomba na alma, me impregnando de suave tristeza, que aceito sem nenhum problema, pois todos temos os nossos momentos sombrios. Manuel Bandeira já advertia para que procurássemos amar a nossa tristeza, que um dia aprenderíamos a amá-la.

 

O canto dessa rolinha me fez recordar minha infância. Acostumado com o movimento e o burburinho da cidade, nas poucas vezes em que fui passar uns poucos dias de férias em Ameixas, zona rural de Barras, ao ouvir esse cantar tão dolente, tão melancólico, ficava saudoso de minha casa, sobretudo do aconchego de meus pais. Ao entardecer campestre de então, quando tudo parecia que se ia finando, esse canto tão sentido, tão magoado, me caía na alma como punhais, que me feriam de uma tristeza acachapante e de uma saudade avassaladora.

 

Mas esse canto, para mim tão tristonho, tão desconsolado, tem uma beleza inefável, como a beleza que persiste nas ruínas dos monumentos, nos escombros do que já foi belo, nas rugas das deusas envelhecidas.

24 de agosto de 2024

domingo, 18 de agosto de 2024

3 POSTAIS DE PARNAÍBA

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3 POSTAIS DE PARNAÍBA


Elmar Carvalho


           POSTAL III

 

Hoje o Porto Salgado

                       sal’do nominal

                       do naufrágio

de uma barcaça de sal

é salamargo na lembrança

dos vareiros e embarcadiços.

E a água do Igaraçu

é uma lágrima de saudade

                        (ou sal’dade?)

do fastígio de outrora.

Os parcos barcos são

poemas de chegadas e partidas

e símbolos da decadência.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

A POESIA DE ELMAR CARVALHO

 




A POESIA DE ELMAR CARVALHO


Carlos Evandro M. Eulálio

 

Minha estrada

é a esteira de luz

que o sol traça no mar.

Elmar Carvalho

                                                          

 Sobre o autor

 

José Elmar de Melo Carvalho nasceu em Campo Maior (9 de abril de 1956). Poeta, jornalista, cronista, romancista, contista e crítico literário. Juiz de Direito, Bacharel em Direito e Administração de Empresas. É autor modernista contemporâneo, egresso da geração mimeógrafo de 1970. O seu livro Rosa dos Ventos Gerais recebeu o prêmio Ribeiro Couto, conferido pela União Brasileira de Escritores (UBE) Rio de Janeiro. Nos anos 1970, foi um dos fundadores do jornal mimeografado Abertura. Quando residiu em Parnaíba – PI, em 1975, atuou em vários jornais alternativos. Como poeta, fez parte das antologias: Poesia Teresinense Hoje, Postais da Cidade Verde, Andarilhos da Palavra, Antologia dos Poetas Piauienses, Baião de Todos, Nordestes (SESC- SP), entre outras.

Presidiu a União Brasileira de Escritores Seção Piauí e o Conselho Editorial da Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Foi membro do Conselho Editorial da Universidade Federal do Piauí. Desde janeiro de 2010 é titular do blog poetaelmar.blogspot.com.br. Membro efetivo da Academia Piauiense de Letras (APL), cadeira nº 10.

 

Obras

 

1990. Cromos de Campo Maior

1994. Noturno de Oeiras

1996. Rosa dos Ventos Gerais

2000. Sete Cidades: Roteiro de um passeio poético e sentimental

2006. Parnaíba no Coração

2006. Lira dos Cinquentanos

2009. Noturno de Oeiras e outras invocações

2012. Bernardo de Carvalho: O fundador de Bitorocara

2013. Amar Amarante

2013. Retrato de minha mãe

2014. Confissões de um juiz

2016. Retrato de meu pai

2017. Histórias de Évora

2020. História e vida literária: atas da APL

2022. Oeiras na alma e no coração

2023. O poeta e seu labirinto.

 

Linguagem e estilo do autor

 

Embora deserdado de tradição poética, pela desagregação da série literária, traço peculiar dos anos 1970, Elmar Carvalho se impôs no contexto da literatura modernista contemporânea como notável poeta, mercê do próprio esforço e determinação. Pertence à chamada Geração Mimeógrafo, que atuou numa época pouco favorável à produção literária no Brasil, em virtude da ditatura militar. Assim conhecida, porque, era por meio do mimeógrafo (ferramenta hoje obsoleta, superada pelas máquinas xérox e impressoras acopladas aos computadores) que grupos de jovens, em geral estudantes universitários, encontravam uma saída para divulgar seus textos literários, sob a mira de fuzis e à margem do mercado editorial. Daí a designação Poesia ou Geração Mimeógrafo. Era uma literatura sincretista. Os poetas dessa geração empregavam em suas obras procedimentos, como a pluralidade estilística e a diversidade temática. É sobretudo uma poesia de resistência e de contestação que se identifica pela desvinculação do cânone literário brasileiro, sem qualquer tradição poética imediatamente anterior. Para que se tenha uma ideia da produção literária desse período, vejamos a seguir como o poeta a define: “Nós, filhos bastardos do AI-5, diante da agonia / euforia, entre a repressão e o ‘milagre’, confusamente buscávamos uma atualização possível e a revelação de uma realidade, prenhe de anseios e frustrações, mas com pitadas de lirismo, temperando o peso das metáforas. Até porque a antiestética Marginal, longe da ideia do sublime e exemplar da produção acadêmica, tendia, tendia para a adrenalina, o coloquial, o impulso tenso e controvertido.  [...] A minha geração aflorou literariamente durante o regime militar[...], numa época em que não podia haver reuniões de estudantes nas universidades. Isso fez com que houvesse em nossos textos uma forte carga social de denúncia, mas também fez com que exercitássemos a criatividade para driblarmos a censura”.

Atualmente, Elmar Carvalho é um dos melhores e mais representativos poetas de sua geração. É autor de uma obra em construção, como ele próprio afirma, sintonizado com a modernidade poética, sem descurar da tradição de onde retira sábias lições, por meio da leitura dos clássicos brasileiros e estrangeiros. Por esse motivo, na poesia de Elmar há que se ressaltar não uma atitude diluidora, nos termos de Ezra Pound, isto é, de imitação sem progresso em relação ao modelo tradicional, mas uma atitude inventiva e de descobertas inovadoras. Dessa forma, em Rosa dos ventos gerais, o poeta tece os poemas com savoir-faire empregando recursos linguísticos, plásticos e sonoros, nas mais diversas formas de expressão poética.

                Rosa dos Ventos Gerais, livro de poemas publicado em primeira edição no ano de 1996, é a obra mais estudada pela crítica e também difundida entre os leitores. Divide-se em quatro partes:

I - Cancioneiro do ar: poemas líricos e amorosos;

II - Cancioneiro do Fogo:  poesia social;

III - Cancioneiro da Terra e da Água: poemas voltados para a natureza;

IV – Cancioneiro dos Ventos Gerais: épicos modernos e outros temas.  

M. Paulo Nunes considera a quarta parte “aquela em que o autor reconstrói o universo conhecido para redefini-lo poética e sensualmente, numa visão ecumênica, através da qual ganha universalidade a sua rica poesia”. 

 

Coletânea de textos comentados

 

No livro, o autor emprega as mais diversas formas de expressão poemática, do clássico soneto aos poemas em estrofes de diferentes tipos de arranjos estruturais, combinando versos maiores com versos menores:

Escravo,

não sou escravo da submissão

e meu último adeus será uma corrida

com os pés fora da corda-bamba.

Escreverei

um manifesto assinado

com o sangue de cada um,

com o suor de todos,

todos mocinhos

de um filme sem mocinhos.

Escarnecerei

os muros e os tetos das prisões

porque são exceções de um regime de

exceção.

Escangalharei

as portas do céu

e os portões do inferno

e soltarei a liberdade.

                         (Moisés p.102)

 Moisés é o poema-manifesto de Elmar Carvalho, datado de 2 de abril de 1978. Exprime a atmosfera dos Negros verdes anos de 1970, expressão criada por Heloísa Buarque de Holanda, para caracterizar a década mais repressora da ditadura militar de 1964, que se iniciou com a edição do Ato Institucional n.º 5 (AI-5) de 13 de dezembro de 1968), revogado dez anos mais tarde, vigorando somente a partir de janeiro de 1979.

 O sujeito lírico de seus primeiros poemas faz-se presente no texto não só quando enunciado em primeira pessoa, mas também quando projetado com arranjos especiais, obtidos por meio do emprego da função emotiva da linguagem, associada à função poética, como constatamos nos versos anafóricos do poema Amad’amor:   

Eu te amo

Eu te (ch)amo

Eu sou tua (ch)ama

Eu te des’gosto.

Eu te ado(u)ro

Eu te douro.

Eu sou teu (m)ouro /mourão

Eu sou teu tes’ouro.

 

És minha ama’da

És minha d’ama.

E neste jogo de (d)ama

o xeque-mate é um Pirro / Pirrônico

em que o vencido é vencedor

e o escravo é senhor.

 

Somos um laço

Tu me (en)laças,

Eu te (en)laço.

Somos um cadafalso

Onde somos vítimas,

Carrasco e baraço.

 

A palavra-frase eu-te-amo metamorfoseia-se interna e anaforicamente, expandindo-se em construções sinonímicas que culminam com a erotização da mensagem na estrofe final do poema, quando então se fundem as duas pessoas do discurso:             

Somos um laço

Tu me (en)laças

Eu te (en) laço.

Somos um cadafalso

Onde somos vítimas,

Carrasco e baraço. 

 

Roland Barthes, nos Fragmentos de um discurso amoroso, assim esclarece acerca da expressão “eu te amo”: 

 

Eu-te-amo não tem empregos. Essa palavra, tanto quanto a de uma criança, não está submetida a nenhuma imposição social; pode ser uma palavra sublime, solene, frívola, pode ser uma palavra erótica, pornográfica (BARTHES, 1995). 

 

            Saliente-se que a vertente erótica da lírica brasileira pela qual opta Elmar Carvalho está mais relacionada àquela na acepção do Drummond de O amor natural, que supõe a exigência corpórea, que dirige o homem em busca da mulher (ANDRADE, 1994):

       A Ero Moça

A aeromoça

abre os braços

e mostra as saídas

de emergência...

 

E eu a sonhar

que ela abrisse

as pernas e mostrasse

as entradas de quintessências.

 

A função emotiva da linguagem, associada à poética, comparece quase em todos os poemas do Cancioneiro do Ar, primeira parte do livro, com temática que abrange o amor, a mulher, o poeta, o poema, o sexo, o tempo, a vida e a morte. A lírica não intimista, de conteúdo mais explicitamente social, constitui a tônica dos poemas cujo sujeito da enunciação identifica-se na e pela linguagem, isto é, pela dicção própria de cada texto. Neste caso, verifica-se um momento de tensão entre o individual e o coletivo, caracterizando a lírica moderna participante que, nos termos de Adorno, resulta da integração entre a emoção e o desejo de interpretar o mundo, como nesta estrofe do poema A fome:

           a fome

que come

e consome

o “home”

       mora

em sua víscera sonora

                           e o devora

          como uma flora

                    cancerosa

                           rosa carnívora

          que aflora e o deflora

          de dentro para fora

 

O aspecto emocional desses versos decorre do modo como o texto se organiza, pelo emprego paralelístico das rimas. Os semas fome, come, consome, home, num processo mais lúdico do que lógico, igualam-se e ao mesmo tempo se diferenciam poeticamente. A lírica faz com que a linguagem estabeleça um elo entre sujeito e sociedade, deixando de concentrar-se exclusivamente no poeta. A configuração do poema no espaço em branco da página é um recurso recorrente na poesia pós-concretista. Curioso neste texto é também a fluência das rimas (paralelas) constituídas de sons nasais e orais. O poema A fome, portanto, compõe a série de textos que abordam a temática social.                                                                                        

 Neste poema, a metalinguagem comparece na forma como o eu lírico reflete sobre o processo de construção da poesia no interior do próprio texto.

                                                                                                  

As meadas e as palavras    

são labirintos e teias.                                        

Nelas os poetas se elevam;                              

nelas as moscas se enleiam

e se debatem em vão.

Os poetas são,

As moscas, não.

                    (Metapoema - p.90)

 

No poema a seguir, a lírica funde-se ao épico e ao dramático para desvelar uma poesia de caráter mítico e histórico, não porque narra eventos históricos, mas porque dialoga com os homens de todas as épocas, por meio da intertextualidade. Assim é o diálogo com a mitologia grega no poema Na Noite, pelo qual o eu lírico, isto é, a voz que enuncia o poema, resgata um dos mitos gregos mais conhecidos: O labirinto de Creta, edificado por Dédalo, para nele encarcerar o monstro Minotauro, meio homem, meio touro, alimentado com jovens a ele oferecidas. E Teseu, guiado por Ariadne, marca o caminho com um fio de novelo, a fim de destruir Minotauro:

 

Na noite                                           

um sapo coaxa.                               

Uma puta triste                                

acha graça. Acha graça.                 

Um galo                                           

às desoras desfere um canto          

fora de hora. E chora.                      

Um cão ladra por nada:                   

nenhuma cadela no cio.                   

O silêncio                                         

 até a mais completa

grita como louco                                

absoluta exaustão.

na concha acústica                                          

dos labirintos dos ouvidos moucos                                                 

por onde um Teseu lasso caminha

em busca do Minotauro – perdido

sem o fio de Ariadne

conduzido por outro fio

que parte / se parte e

se reparte entre o ser                                                 

e o não ser.

E os gritos de Teseu

arrancam ecos

que já ecos de si mesmos

se repetem se repetem

                                (Na Noite, p. 71)

 

Neste fragmento do poema Eterno Retorno, o eu lírico reconstitui pela linguagem cenários, flagrantes da experiência existencial comuns a todos nós; imagens do passado que são ícones de uma época que já vai longe de todos, que impregnam a mente com o vigor da recordação liricamente recuperados.

 

[...] recordações de fantasmas

que já nos abandonaram

de amigos mortos

que nos acompanham

cada vez mais vivos

de sustos e gritos

de proscritos e malditos

de agouros e assombrações

de desdouros e sombras vãs, malsãs,

oriundos dos porões escavados

nos subterrâneos dos sobrados

subterfúgios e refúgios

       da memória. 

                        (Eterno retorno – p.68)

  

Nestes dois poemas de época, o sujeito lírico em terceira pessoa dirige o ponto de vista para o coletivo. O narrador converte a expressão objetiva do discurso épico em manifestação subjetiva de uma experiência individual, situação em que o poeta dá voz a um eu e com ele se confunde:

À meia-noite                        

percorria a praça

A noite era silente e fria                            

e nenhuma estrela luzia...                        

O manto escuro tudo                           

envolvia e ninguém existia.                  

Apenas o olhar cego                           

do Conselheiro, ao longe,

indiferente, me via.                                                     

[...]                                                                             

Na praça Saraiva                                                                                                                             

uma flor fez-se borboleta                                                                                

e desferiu um voo rasante

sobre a cabeça do Conselheiro            

que permaneceu                                                       

impassivo e contemplativo                                        

em sua dura                                                              

postura de escultura:                                                 

hierático e estático. 

                                                  

                        (Flagrantes de Teresina – p.130)

 

Na Paissandu e adjacências bêbados passeiam

equilibrados sobre a corda-bamba dos pés.

Velhas meretrizes sem freguesia

conversam e cospem na calçada.

Nas noites serenas de serenata

as luzes mortiças dos postes

espiam de pálpebras cansadas

os amores camuflados clandestinos (in)decentes.

Os amores puros sem rotas e rótulos.

A lua, velha safada, espreita a intimidade                                                                                         

das alcovas dos casais.

                               (Postais de Teresina I – p.131)

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POEMITOS DE PARNAÍBA

 

Nesta série, o poeta resgata pela memória flagrantes de Parnaíba, não a cidade cosmopolita de hoje, mas a cidade provinciana como cenário das aventuras e fantasias da infância cujos segredos são expostos com espontaneidade e humor: 

 

Situava-se entre o feio e o horrível                   

mas se dizia BG: bonito e gostoso

Metido a conquistador de mulheres

conseguia o inverso efeito:

as mulheres – lebres assustadas

de Alain Delon fugiam.

Se Alain Delon muito fosse

Alain Delonge seria.    

                               (Alain Delon, p.186) 

 

Passava com seu passo leve

- quase voo de pássaro                      

 com suave elegância

de uma cabra montês.

Rápida cortava as

avenidas e as praças

de uma cabra montês

até que a molecada gritava                                                   

          - Maria das Cabras!...                          

 Maria subia a saia:

- Taqui o chifre da cabra!...

Os moleques com as cabeças:                                

cheias de ideias e fantasias

em suas alcovas ou banheiros

se escondiam: Maria das Cabras

surgia como uma fada encantada

entre véus diáfanos que se

es     gar      ça      vam.                                      

                    (Maria das Cabras, p.191)    

                                                              

Se bem pesado não dava                                    

sequer meio-quilo. Pai de                                   

Cotinha, mulher bonita e                                    

namoradeira nos escuros

do velho Cine-Teatro Éden – paraíso                   

de estrepolias estrambóticas e eróticas.           

O pequenino Meio-Quilo, de lanterna em        

punho, a roubar Cotinha dos braços                                                 

do namorado, era um filme

à parte.                              

                     (Meio-Quilo, p.186)

                                                                                                    

 Opinião da crítica

 

Elmar Carvalho [...] canta uníssono a consciência da vida e dos compromissos humanos. Canta as desigualdades sociais, numa forma (poética) muito mais contundente do que um simples discurso de comício ou uma catilinária oca de deputado [...]. O lado emblemático e realista da sua linguagem se unem para que a poesia, mais uma vez, seja o corte profundo e quente e afiado da denúncia. (Assis Brasil, escritor e crítico literário)

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Uma análise da produção literária de Elmar Carvalho deve enfocar o livro Rosa dos Ventos Gerais. Sua poesia transpira criatividade, sonoridade, emoção e convencimento, características peculiares aos grandes literatos, cujas obras transcendem o presente e firmam-se na posteridade literária. Outra característica marcante do poeta é a construção de imagens sólidas e belas, onde as palavras viram verdadeiras fotografias gráficas. Ivanildo di Deus, poeta e professor da UESPI.

 

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Uma das peculiaridades marcantes da poesia de Elmar Carvalho são os recursos buscados na configuração do espaço branco da página [...] que, desde cedo, dele fizeram um poeta atualizado, com o pé na modernidade e outro na grande tradição poética. Na realidade, a tendência de utilizar-se de figurações, desenhos e aproveitamento do espaço branco da página para fins estéticos de comunicação do poético remonta à Antiguidade greco-latina e me parece, sem dúvida, ter chegado para ficar. Elmar é um exemplo inequívoco de uma voz poética atenta e lúcida da poesia brasileira contemporânea. Cunha e Silva Filho, mestre e doutor em Literatura Brasileira. Professor universitário no Rio de Janeiro.   

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O vate Elmar Carvalho pertence ao Modernismo Piauiense, precisamente à Geração Mimeógrafo, ou seja, a geração dos anos 70 à atualidade. O autor, com uma rosa dos ventos, nos conduz à leitura prazerosa de uma temática bem diversificada que enfatiza a paixão avassaladora pela mulher amada envolta de sensualidade e erotismo, a natureza, o telúrico, problemas sociais e a angústia existencial do homem moderno. Rossana Carvalho e Silva Aguiar, especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira – professora da UESPI.

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A densidade lírica de Rosa dos Ventos Gerais é também, em grande medida, associada ao erotismo, o que explica e justifica a igualmente forte presença feminina no livro. Em seu ato de criar e recriar a mulher, o poeta a evidencia como um completo e complexo objeto amoroso. Eis que emergem de seu livro olhos de lã e de lâminas, de céu e de inferno, verdes musgosos ou azuis fuzilantes; cabelos de lenços e de loiras algas; mãos que acariciam e esmurram; bocas sequiosas de beijos e bocas mudas; curvas femininas que transcendem as ondulações da terra e do mar. Teresinha Queiroz, professora e doutora em História Social. Pertence à APL, cadeira 23.

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                Rosa dos Ventos Gerais, de Elmar Carvalho, condensa mistérios, prazer e plurissignificância, haja vista a emoção latente nos jogos rítmicos e na elaboração das imagens instaurarem o sabor pelo inusitado e o desejo de plenitude, ambos manifestos a partir do título – leia-se rosa (o fascínio, a beleza), vento (o que agita, transforma) gerais (em todos os espaços. Leia-se metaforicamente, poesia. Ambos, o sabor pelo inusitado e o desejo de plenitude, consolidam o convite para mergulhar em seus versos. Dilson Lages Monteiro, professor de Português e Literatura. Membro da APL, dadeira 21.

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A poesia de Elmar Carvalho é marcada pelo ecletismo. Ele bebe no versejar de todas as escolas e movimentos literários do ocidente, percorrendo vários gêneros mistos e formas de poetar, como a lírica, a épica moderna ou o poema narrativo, a sátira, o soneto, a elegia, a poesia concreta. (Élio Ferreira, doutor em Teoria Literária pela UFPE).

 

CONCLUSÃO

 

Os poemas de Elmar Carvalho transmitem ao leitor não apenas emoção, mas também sábios conhecimentos que emanam de um vasto repertório de leitura sobre filosofia e arte poética. Nesse sentido, constata-se em sua obra um aspecto da mais alta importância: o propósito pedagógico de seus textos, nos termos daquele enunciado por Mário Faustino em Diálogos de Oficina, ao mencionar as qualidades indispensáveis aos poetas contemporâneos: 

“Os grandes poetas sempre se interessaram ativamente pela Filosofia, pelas ciências e pela política de sua época, encontrando-se em cada um deles o retrato mais ou menos fiel e minucioso do que se passava e do que se fazia na dinâmica social do tempo em que viveram. [...] Toda poesia verdadeira é didática. E nenhum meio de comunicação ensina tão profundamente e de modo tão inesquecível quanto a poesia” (FAUSTINO, 1977). 

Elmar Carvalho não se rende exclusivamente aos apelos da inspiração, porque concebe o poema como produto de um trabalho elaborado e planejado. Suas poesias não brotam de um momento circunstancial, como um Deus ex machina, isto é, como aparição do inesperado, mas do trabalho de oficina, eivado de reflexão e sabedoria. 

                            

*Carlos Evandro Martins Eulálio é membro da Academia Piauiense de Letras, ocupante da Cadeira 38. Crítico literário, professor de Português, Latim e Literatura. 

 

REFERÊNCIAS E BIBLIOGRÁFIA CONSULTADA

 

ADORNO, Theodor. Lírica e Sociedade in Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. Rio de Janeiro: Record, 1994.

 

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981.

 

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

 

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

 

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

 

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977

----------------------------. Hegel, Marx, Lamartine. In Ruptura dos gêneros na literatura Latino-Americana. São Paulo: Perspectiva, coleção Elos, 1977. 

 

CARVALHO, Elmar. Lira dos cinquentanos. Teresina: FUNDAPI, 2006.

 

________________. Rosa dos ventos gerais. Teresina: SEGRAJUS, 2002

 

________________. O poeta e seu labirinto: poemas escolhidos. Teresina: APL, 2023.  

 

ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1976.

 

EULÁLIO, Carlos Evandro M. Poesia contemporânea: possíveis causas de sua evolução. Teresina: Presença Ano VII, n. 14 janeiro / junho de 1985.

 

FAUSTINO, Mário. Diálogos de Oficina. Poesia-Experiência, org. Benedito Nunes, São Paulo: Perspectiva, 1977.

 

PAZ, Otávio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1976.

 

POUND, Ezra. A arte da poesia. São Paulo: Cultrix, 1976.

 

SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Lírica modernista e percurso literário brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978.

 

SOARES, Angélica. Gêneros literários. São Paulo: Ática, 1999.  

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Uma crônica ao documentário “Barras do Marataoã e da Saudade”

Francisco Almeida, Elmar e Francisco Carlos Araújo (Chico Acoram)
Auditório Monsenhor Boson



Uma crônica ao documentário “Barras do Marataoã e da Saudade”

Chico Acoram

Não passava das sete horas da manhã de ontem (07/agosto), quando eu e meu estimado amigo e cordelista Francisco de Almeida, a bordo de seu confortável veículo, já estávamos na PI-113 com destino a minha querida terra natal Barras do Marataoã para assistirmos à projeção do documentário “Barras do Marataoã e da Saudade” produzido pelo escritor, romancista e poeta Elmar Carvalho, com a edição de Claucio Ciarlini.

Dias antes, eu e o poeta Francisco de Almeida tínhamos recebido do nosso amigo Elmar Carvalho um convite para participarmos da solenidade do lançamento do mencionado documentário a ser exibido, a partir das 9 horas do dia 07 de agosto do ano corrente, no Auditório Monsenhor Uchoa localizado no centro histórico de Barras, com palestra e debate sobre o vídeo.

Ao adentrarmos no recinto, observamos que o Auditório Monsenhor Uchoa (capacidade para 200 pessoas sentadas) estava quase que completamente lotado, restando algumas poucas poltronas vazias. O público era formado, na maioria, por estudantes, professores, funcionários e outros convidados. Alguém que estava no corredor, gentilmente nos apontou duas delas para nos sentarmos. Feita a apresentação do autor do documentário e as considerações preliminares, iniciou-se a projeção do vídeo.

“Barras do Marataoã e da Saudade”, assim começou a exibição do vídeo na voz bela e compassada do autor do documentário, o ilustre escritor, romancista e poeta Elmar Carvalho. Ressalte-se que Elmar não é barrense de nascimento, mas nas suas veias corre o sangue de barrense. Seu pai, Miguel Arcângelo de Deus Carvalho, nasceu em Barras, assim como seus ancestrais. Por essa razão, Elmar Carvalho embora tenha nascido em Campo Maior é, como ele próprio se declara, um barrense de coração. Agora, Elmar, um irmão barrense de coração, vem presentear aos filhos de Barras do Marataoã com esse importante e valioso documentário. Aliás, um verdadeiro tesouro em forma de imagens, melodias, palavras e poesias, com muitas emoções.

Confesso que, à medida que o vídeo ia sendo projetado na tela, minhas recordações eram exibidas em minha mente. Era como se fosse um filme, em longa-metragem, a me mostrar o habitat natural de um menino que aos oito ano de idade teve que partir com sua família para outra cidade. Meus olhos marejavam enquanto refletiam na tela as fotos e imagens do rio Marataoã, a antiga “Rua Grande”, as praças, as ruas, o antigo teatro, a igreja, a ponte, as matas, os pássaros, minha casa, meus pais e meus avós. Muito emocionante!

“The End”. As luzes se acenderam. O distinto público barrense aplaudiu bastante a exibição do documentário. Para encerrar o espetáculo com chave de ouro, protagonista declamou o belíssimo poema “Barras das Sete Barras” de sua autoria:

“Barras ...
Barras do Marataoan ...
Dos cânticos de pássaros
e cântaros e címbalos de águas
em cantatas e cascatas
no rocio róseo-violáceo da manhã.
Barras das sete barras
– candelabro de sete braços de prata
líquida a escorregar macia
no dorso duro das pedras (...)”

Todo o auditório ficou de pé para, mais uma vez, aplaudir com entusiasmo o grande artista das letras, o poeta, o romancista Elmar Carvalho que, por sua vez, agradeceu a gentileza e o carinho dos barrenses.
 
Para encerrar, quero parabenizar o dileto amigo Elmar Carvalho pela feliz iniciativa em produzir excelentes documentários sobre José de Freitas, Amarante, Barras do Marataoã, Parnaíba e Campo Maior (em edição), evidenciando os aspectos histórico e cultural, a topografia, a literatura, os vultos importantes, a arquitetura etc. das mencionadas cidades.

domingo, 11 de agosto de 2024

3 POSTAIS DE PARNAÍBA - POSTAL II

Fonte: Google


3 POSTAIS DE PARNAÍBA


Elmar Carvalho


           POSTAL II

 

No cais da beira-rio

lavadeiras sem roupas

lavam as roupas dos ricos.

O vento brinca de pegar

parelha com o Igaraçu

e venta vadio no ventre

das velas dos veleiros e

verga suas vigas entre

vagidos e volatas.

À noite filhos-de-papais

tomam cerveja e Coca-Cola

encostados nos carrões,

enquanto as lavadeiras

passam as roupas lavadas.

A noite passa. Passa o vento.

             Passa o rio, o riso/rosa

rápido passa.