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FERRO NA BONECA
Elmar Carvalho
José Silva Sousa era um homem comum, com dois sobrenomes
comuns e um nome próprio mais comum ainda. Porém somente na aparência ele era comum. Roupas e modos discretos. Não era bonito nem feio, nem
alto nem baixo, nem branco nem preto, nem gordo nem magro. E sem nenhum sinal
característico, que o pudesse distinguir. Sua voz, de ritmo monocórdio,
inalterável, não era grave nem aguda.
Se tinha emoções e paixões, não as demonstrava nunca. Não se
lhe conhecia namoradas, mas decididamente não aparentava ser homossexual. Idade
incerta, teria quarenta e pouco anos. Pouco se sabia de sua vida particular.
Nascido na cidade de São Paulo, viera morar em Teresina 17
anos atrás, para assumir o cargo de auditor-fiscal da Receita Federal. Conquanto
educado, não admitia intimidades e nem tomava liberdade com ninguém, de modo
que pouco ou nada se sabia de sua vida privada. Não tinha amigo e muito menos
inimigo. Não visitava ninguém e tampouco recebia visitas.
Mas eu sou um narrador onisciente e vou escancarar a sua vida
particular ou privada, a sua face mais oculta e os seus pensamentos mais recônditos.
Não irei fazer muito suspense, como recomenda a melhor técnica dos contistas
tradicionais. Não desejo enveredar pelo metaconto, mas bem poderia fazer uma narrativa
bastante curta, um microconto, ou uma muito mais longa, cheia de pormenores,
entrechos, circunlóquios e psicologismos; seguirei o caminho do meio, e farei
um relato nem curto e nem longo, me restringindo ao que considero essencial.
José Silva Sousa, um homem comum no nome, nos sobrenomes e
nos hábitos, não era tão comum assim. Nos seus tempos juvenis na pauliceia
chegou a ter namorada e até mesmo uma noiva. Era encantado pela beleza de um
corpo feminino, que lhe atraía com intensidade.
Contudo, por razões que não desejo revelar (para que o leitor
seja meu cúmplice de autoria, através de sua imaginação criativa), direi apenas
que ele tinha uma profunda timidez e vergonha em seus relacionamentos com as
mulheres. Por isso mesmo, seus namoros eram recatados e nunca chegavam às vias
de fato, como se diria num linguajar mais cru.
A partir da adolescência passou a se masturbar com certa
frequência. Quando veio morar em Teresina, tendo uma casa própria, um bom
salário e morando sozinho, passou a comprar revistas de mulheres nuas. Alcançou,
na sucessividade da moda, o tempo das genitálias peludas, dos bigodinhos
ornamentais e, depois, das raspadinhas. Tinha uma imensa quantidade dessas
revistas. A partir de certa época, através de lojas virtuais, passou a adquirir
acessórios para a sua prática masturbatória. As revistas e esses objetos do
prazer eram guardados num quarto indevassável de sua casa, a que não permitia o
acesso de ninguém. Aliás, sequer recebia visitas.
Apenas um homem jovem, de 23 anos, ia, duas vezes por semana,
fazer a limpeza da casa. Recebeu a recomendação expressa e veemente de jamais
entrar no quarto secreto. Isso, com certeza, atiçou a curiosidade do jovem.
Fora admitido nesse serviço recentemente, por recomendação da velha diarista,
que conseguira aposentar-se.
Dois ou três meses atrás, o nosso protagonista, que tinha uma
polpuda poupança, comprou uma boneca reborn, do mais sofisticado hiper-realismo,
feita com os mais refinados materiais e com a mais perfeita técnica. Era de
última geração e em tudo imitava uma jovem mulher sueca. Não parecia esculpida
em carrara. Parecia uma mulher de verdade, uma sueca de carne e osso, de linfa
e sangue.
Cabelos louros, que reverberavam à luz do sol. Rosto de
beleza angelical, de olhos bem azuis, que pareciam de verdade. Não irei me dar
ao trabalho de descrever a beleza do corpo, de suas belas curvas e relevos.
Isso os poetas já o fizeram. Apenas direi, para não ser demasiado econômico em
palavras, que os seios, o umbigo e o sexo pareciam verdadeiros e não apenas um
simulacro, tal a fidelidade dos detalhes, das dobras de pele, da cor, da
textura etc. E ainda falava, se o proprietário pronunciasse seu nome e puxasse
conversa. Por sinal, seu nome era Helena, como a de Troia. Contudo, deveria ser
mais bela que a mítica Helena de Troia.
Segundo o raciocínio do dono, ela tinha muitas vantagens: não
transmitia doenças venéreas; estava sempre disponível, para qualquer tipo de
sexo, em qualquer posição; não lhe dava despesas, a não ser a irrisória recarga
da bateria, esporadicamente; era a discrição em pessoa, exceto no momento do
sexo, quando estrebuchava em espasmos e emitia gemidos e fungados, mais altos
ou mais baixos, conforme o ajuste do som, feito antes, pelo controle remoto. E
não se recusava a nada, mesmo em altas madrugadas. E, sobretudo, não dava
chiliques e nunca fazia pirraças e negaças. Acrescentava outras virtudes ou
qualidades, que não irei me dar ao trabalho de listar.
Por razões que a própria razão desconhece, José começou a
amar a sua boneca reborn de beleza sueca, talvez já num começo de
esquizofrenia. Não lhe tinha ciúmes, uma vez que ela vivia escondida no quarto
indevassável, fechada em sua caixa, como se fosse um vampiro em seu caixão.
Talvez a minha comparação seja algo inapropriada, um tanto mórbida ou sinistra.
Todavia, poucos dias atrás, ao chegar em sua repartição,
notou que havia esquecido a chave do quarto onde ficava a sua amada boneca.
Retornou no mesmo instante, como louco, imprimindo alta velocidade a seu
automóvel. Contudo, procurou se conter ao entrar na casa. Logo percebeu que o
quarto de seus segredos estava com a porta entreaberta. Com passos de felino
foi até a cozinha e se armou com uma faca do tipo peixeira.
Foi até o quarto. E lá viu o jovem diarista fazendo sexo com
a boneca. A linda boneca lhe pareceu desvairada, escandalosa, a se contorcer
espasmodicamente, em fúria ardente, e a gemer e a fungar de forma vigorosa. Em
rápida comparação, ela lhe pareceu frígida, quando fazia sexo com ele, seu legítimo
proprietário, que a comprara a peso de ouro. Cego de fúria e ensandecido pelo
ciúme, desferiu uma forte facada na jugular do homem.