sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS


SURREALISMO

Quando voltei para casa, recebi a informação de que havia chegado uma encomenda para mim. Era uma encomenda vinda aparentemente de outro país, pelo tipo das estampas dos selos. O meu endereço estava correto, em caracteres normais, porém o endereçamento do remetente era feito em letras exóticas, que eu não conseguia decifrar. Não perdi tempo, tal era a minha curiosidade. Abri a embalagem, que fora preparada cuidadosamente, com forros macios para proteger o conteúdo. Em estojos separados, encontrei sete folhas de papel, de uma cor e textura que eu nunca havia visto, e sete lápis de cores diferentes, como as cores do arco-íris, nos quais não constava nenhuma marca de fabricante. Até então eu era um pintor considerado medíocre e que nunca fizera sucesso. Os críticos reconheciam que eu tinha uma boa técnica de desenho, com perfeita noção de proporcionalidade e perspectiva, e que sabia manejar as tintas habilmente, mas diziam que me faltava talento para a composição do todo, do conjunto, e alegavam que eu era demasiadamente academicista. De certa forma, admito que eles estavam certos, pois eu efetivamente detestava todas as vertentes modernistas, e sequer aceitava o expressionismo, o impressionismo, o cubismo, vários outros “ismos”, e tinha verdadeira aversão ao surrealismo. Examinei o presente cuidadosamente e depois os guardei nos estojos em que vieram. Após algum tempo, na parte da tarde, resolvi experimentar os lápis em um dos papéis. Imediatamente percebi que os lápis não deslizavam sobre o papel obedecendo a minha vontade, mas tomavam o caminho e as formas que eles próprios escolhiam. Também os lápis não funcionavam em outro tipo de papel e nem outros tipos de lápis deixavam marcas nas folhas que eu havia recebido. Em suma, os sete lápis só pintavam naquelas sete folhas de papel. Quando eu impunha minha vontade, simplesmente eles nada pintavam, de modo que docilmente lhes passei a fazer a vontade, deixando que eles seguissem por onde bem quisessem. Dessa forma, notei que cada lápis depunha sua cor em determinadas partes da tela, seguindo um desenho que a princípio eu não atinava sobre o que representava. O lápis seguinte procedia da mesma forma, sendo que, em certos pontos, as cores se sobrepunham, formando uma nova cor ou um sobretom. A partir do quarto lápis, a pintura e o desenho começavam a fazer sentido, e eu percebia que uma grande obra de arte, como eu nunca alcançara, estava sendo concebida. Ao final, uma pintura deslumbrante, onírica, surrealista, inaudita, de técnica e imaginação perfeitas, estava estampada na folha. Com as sete telas, passei a ser considerado um gênio do surrealismo. Nunca revelei o segredo sobre a gênese das obras, mesmo porque ninguém iria acreditar. Pensando melhor, talvez fosse uma boa jogada de marketing se eu tivesse falado a verdade, porque seria considerado louco, o que aumentaria a minha suposta genialidade. Ganhei fama, prestígio, dinheiro, mas nada mais produzi. Diante disso, resolvi encerrar minha carreira, e passei a dormir em berço esplêndido, coroado de louros e de glória.

ARTE-FATOS ONÍRICOS


NUVENS NA SALA

Certo dia, ao entrar em minha casa, lá estavam elas, várias nuvens espalhadas pela sala, a uma altura situada entre noventa centímetros e um metro e trinta centímetros. Eu as via do alto de meu um metro e oitenta centímetros de altura. Eram miríades de miniaturas de nuvens, e pareciam com as que costumamos ver quando o avião atinge sua altura máxima e olhamos para baixo. Embora fosse um acontecimento inusitado, a visão daquele rebanho de nuvens, não fiquei assombrado. Antes, procurei encarar o fenômeno com naturalidade. Passei a analisar o caso com objetividade e com a postura que um cientista deveria adotar. O que mais me causou admiração foi poder enxergá-las, pois sendo as nuvens compostas de vapor d'água ou gotículas, eu não deveria vê-las, mas, no máximo, senti-las pelo tato, ao contato com a pele. Pelo menos era isso que a minha pretensa racionalidade indicava. Mas o fato é que lá estavam elas, como um manto de algodão alvíssimo estendido sobre a sala. Depois dessa atitude analítica, sentei-me no chão, e deitei-me, para vê-las de baixo para cima. E as vi como um céu estendido sobre mim: as nuvens e acima delas um azul celeste. Pensei: ora, bolas, só me faltava esta; só me falta agora um céu estrelado. Eram dezessete horas, e resolvi dormir ali mesmo, sobre umas almofadas que havia. Quando acordei, um céu resplandecente de pequeninas estrelas se desatava sobre mim, como o pálio do poeta, e, caprichosamente desenhados, eu via o sete-estrelo, o cruzeiro do sul, as três-marias e o caminho de santiago. Novamente pensei: agora só resta chover. Não deu outra. O céu começou a ficar nublado. As estrelas sumiram na noite densa, e uma chuva começou a cair sobre mim. Saí às pressas para o meu quarto, onde me enxuguei. Procurei não pensar no caso, e dormi. No dia seguinte, com grande alívio, não mais encontrei as nuvens em minha sala.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O CRIME DA PRAÇA DA GRAÇA




18 de fevereiro de 2010   Diário Incontínuo

O CRIME DA PRAÇA DA GRAÇA

Elmar Carvalho

Em minha temporada carnavalesca parnaibana, mais precisamente anteontem, fui visitar o poeta Alcenor Rodrigues Candeira Filho. Logo ao chegar, tive a satisfação de encontrar a professora Rossana Silva, sua vizinha, que ia chegando a sua residência. Antes de entrar na casa do bardo, conversei rapidamente com ela, aproveitando a oportunidade para lhe fornecer o endereço do blog onde este diário vem sendo publicado. Alcenor e Rossana, pelos comentários que ouço e em minha opinião pessoal, são dois dos maiores professores de Literatura, e talvez o sejam porque têm prazer e alegria em lecionar essa disciplina, porque são leitores compulsivos de obras literárias. 

Minha amizade com o Alcenor data do final da década de setenta. Cheguei para morar em Parnaíba em junho de 1975, pois nesse ano meu pai veio chefiar a ECT nesse município. Em agosto desse ano, fui assumir meu cargo de monitor postal nessa empresa, em Teresina, em virtude de curso no Recife, em que fui aprovado. Mas logo retornei, pois obtive êxito no vestibular para o curso de Administração de Empresas, na UFPI, que então só era ministrado em Parnaíba. 

Através do Paulo de Athayde Couto, filho do saudoso mestre, tradutor e intelectual Lima Couto, que era meu colega de turma, travei conhecimento com o poeta. Meus colegas dos Correios, um dia, creio que em 77, sabedores de que eu era poeta, me chamaram, eufóricos, para ver o Alcenor, que fora postar ou receber alguma correspondência. Meu retraimento, me impediu de conhecê-lo nesse dia. Devo tê-lo visto à distância. Corria a lenda de que ele se formara em Direito para reabrir o processo contra os algozes de seu pai, trucidado em plena Praça da Graça, no dia dedicado a essa padroeira, por volta das cinco horas da tarde, quase no horário da saída da procissão. 

Por causa da chamada “chacina da Praça da Graça” a tradição foi quebrada, e nesse 11 de outubro de 1959, domingo, não houve procissão. Alcenor Candeira, pai do poeta, foi abatido praticamente no momento em que o sineiro tocava o dobre final do chamamento dos fiéis para o préstito católico, quando ele se encontrava a menos de cinquenta metros da Catedral, levando pela mão a filha caçula, Tânia, mulher do meu amigo e compadre Canindé Correia, então com onze anos de idade.

Durante os mais de trinta anos de nossa amizade tive esse caso rumoroso como um tabu, e sempre mantivemos o mais completo silêncio sobre essa tragédia, mesmo nas várias ocasiões festivas, em que conversamos descontraidamente, em meio a goles de cerveja. Nas incontáveis ocasiões em que saí com a Tânia e o Canindé, cunhado e amigo do poeta, jamais tocamos nesse assunto. Somente muitos anos depois, quando Alcenor, talvez até como forma de catarse, escreveu o poema Passando em Revista, é que me senti mais à vontade para ferir esse caso.

No ano passado, quando o episódio trágico completou cinquenta anos, o escritor, posto que o bardo é também um exímio prosador, publicou o livro O Crime da Praça da Graça, que alcançou inusitada vendagem e repercussão. A obra esclarece os fatos, pois Alcenor, com a honestidade e a sinceridade que lhe são características, e já diminuída a comoção pelo decurso do tempo, calcado em peças do processo, narra os fatos de forma clara e objetiva. A obra transcreve trechos dos autos e alguns textos sobre o homicídio.

Às páginas 51/52 do livro, encontra-se a crônica Por Quem os Sinos Dobram, da lavra de José Leitão Matos, publicada em 1961, da qual transcrevo esta passagem: “Três homens e uma mulher espreitaram a passagem do Secretário da Prefeitura, Alcenor Rodrigues Candeira, a quem trucidaram da mameira mais cruel. Jamacy e os Clodoveus fizeram a fuzilaria infernal, enquanto Veudacy rasgava, à faca, logo após, o corpo franzino de Alcenor”. As pessoas citadas eram os advogados e professores Clodoveu Cavalcante e seu filho, de mesmo nome, a mulher do primeiro, Jamacy, e o outro filho do casal, Veudacy, portanto, pais e filhos.

Conta a lenda que Jamacy, mulher enérgica, de temperamento muito forte, por causa de um desentendimento com Alcenor, insuflava o marido contra seu desafeto tocando na vitrola música de Ataulfo Alves e Mário Lago, que dizia, em suas belas letra e melodia: “Covarde sei que me podem chamar / Porque não calo no peito essa dor...” Suponho que esse incitamento não tenha ocorrido desse modo, uma vez que Alcenor a ele não se refere em seu livro.

O velho professor Clodoveu foi absolvido. Clodoveu Filho e sua mãe Jamacy nunca foram julgados. Veudacy foi condenado a seis anos de prisão. Alcenor, em seu livro, relata que Jamacy atirou contra seu pai quando este se encontrava de costas para a família, que se encontrava em um jeep, perto da esquina em que ele dobrou, já nas proximidades da Catedral de N. S. das Graças, vindo de sua casa, que ficava a apenas um quarteirão.

No corpo tombado foram encontradas as marcas de nove tiros de revólver, cortes de faca ou punhal e hematomas de coronhadas. Tinha Alcenor 45 anos de idade. Deixou quatro órfãos menores e a viúva, professora Maria de Lourdes Castelo Branco Candeira. O poeta era aluno dos Clodoveus, pai e filho, e na semana anterior ao crime lhes assistira as aulas. Não procurei informações sobre a situação atual da família Cavalcante.

Sei que Alcenor Candeira Filho, sempre galgando posições e conquistando seu espaço, através do estudo e do trabalho, tornou-se procurador federal, exercendo a chefia de Previdência Social em Parnaíba por vários anos, professor da Universidade Federal do Piauí, e mestre de Literatura na rede particular, precisamente na Unidade Escolar Alcenor Candeira (Colégio Cobrão). Seu pai deu nome à rua na qual ficava a sua residência.

Hoje, o bardo é o secretário de Educação do Município de Parnaíba. Mas, sobretudo, é o intelectual, escritor e poeta, que todos admiramos e respeitamos, e que ocupa uma cadeira na Academia Piauiense de Letras, mercê de sua competência e dedicação ininterrupta às letras.

SELETA INTERNACIONAL


A QUE ESTÁ SEMPRE ALEGRE

Charles Baudelaire

Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!

O SEXO DOS ANJOS


Elmar Carvalho

Que temos a ver
com o sexo antisséptico
dos inatingíveis e intangíveis
anjos das hostes celestiais?
Que temos a ver
com os anjos machos e fêmeas
de falos decepados e de
vaginas obturadas?
( A ânsia por asas e
a sede de infinito.)

DIÁRIO INCONTÍNUO


Dom Pedro Casaldáliga e o cais de São Félix do Araguaia

17 de fevereiro de 2010

Retornando para Teresina, levo na bagagem vários livros, que o meu cunhado Beré trouxe de São Félix do Araguaia, enviados por Lozinha e Nilva, irmã e sobrinha de minha mulher respectivamente. A segunda é a atual vice-prefeita do município. Os livros são Cartas Marcadas, de D. Pedro Casaldáliga, Sertão de Fogo, de Adauta Luz Batista, e Meu Araguaia Querido, de Erotildes da Silva Milhomem. Dom Pedro era admirado pelos componentes do grupo do jornal Inovação, de que fiz parte, pelas suas posições, por seus questionamentos políticos, por sua luta por uma sociedade mais justa e mais fraterna, e pela opção preferencial pelos pobres. Nasceu na Espanha e foi bispo da diocese de São Félix desde 1971 a 2005. É ainda poeta e escritor. De Cartas Marcadas disse Dom Demétrio Valentini, na apresentação: “Apresentam-se como 'cartas marcadas', pois decorrem de um claro compromisso de pastor, que extravasa em sua linguagem de poeta sua lúcida visão da realidade e sua decidida opção pela causa do povo”. Esses jovens do Inovação sonhavam com a vinda para a diocese de Parnaíba de um bispo engajado nas lutas sociais e que promovesse o avanço das comunidades eclesiais de base, o que terminou não acontecendo durante o tempo em que o jornal circulou. Por isso mesmo, o jornal fez uma entrevista com um padre que aparentava ter ideias avançadas, e o religioso se mostrou firme e contundente na entrevista. Contudo, quando esta foi publicada, parece que o clérigo recebeu uma reprimenda do bispo parnaibano, porque tentou desdizer algumas frases da entrevista, quando na verdade tudo estava documentado na fita magnética, sem que tenha havido erro na transcrição. Dom Élder Câmara era outro bispo que admirávamos, tanto por sua posição política, como por sua coerência e modo de vida.

É considerado um dos primeiros habitantes e um dos fundadores de São Félix do Araguaia Severiano Neves, irmão do pai de Fátima, minha mulher. Quando a cidade não existia, ele montou sua residência na localidade, e depois empreendeu uma viagem ao Piauí à procura de novos habitantes, dando início ao povoamento do lugar. Colho na internet, na Wikipedia, a seguinte informação: “Em 23 de maio de 1941, desembarcava no rio Araguaia, em território mato-grossense, a família de Severiano Neves, acompanhada de outras famílias provenientes do estado do Pará, em busca de um futuro melhor. Iniciando-se assim um novo povoado, próximo a santa Izabel do Morro, antiga morada dos índios Carajás, habitantes milenares do rio Araguaia e da Ilha do Bananal. A denominação de São Félix foi dada pelo Bispo D. Sebastião Thomaz Câmara no dia 20 de novembro de 1942.” Quando a localidade passou a município, foi Severiano Neves o seu primeiro prefeito. Segundo informação de minha mulher, ele nasceu em Buriti dos Lopes – PI, no povoado Várzea do Simão, filho de Simão Pedro e Firmina.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO


16 de fevereiro de 2010

Quando estive na lanchonete do senhor José dos Santos para tomar o seu afamado caldo, vi do lado de fora um homem todo sujo de goma, principalmente no cabelo e no rosto. Logo vi que não se tratava de um folião extemporâneo, mas de um alcoólatra. Quis saber como se chamava, mas ninguém o conhecia pelo nome. O Canindé informou-me que ele era filho do Sandoval, que eu conheci como guardador de carros dos universitários, no Campus Ministro Reis Velloso. O Sandoval era um homem bom e tinha a estima dos acadêmicos e dos professores. Já é falecido. O poeta Alcenor Candeira Filho, que exerce o magistério no Campus, dedicou-lhe um poema, em que lhe relata as virtudes e a ocupação. Dizíamos, brincando, que o Sandoval fora o seu “muso”. Agora, com tristeza, vejo o seu filho como mendigo e alcoólatra. Quando lhe perguntei o nome, disse tê-lo esquecido, e disse o nome de seu pai. Era como se quisesse esquecer de si próprio, em sua solidão e tristeza. Segundo o Canindé ele trabalhara num Condomínio da rua Pedro II, mas a dipsomania terminava por lhe fazer faltar ao trabalho, razão pela qual foi demitido. Com a demissão, apegou-se mais ainda ao vício. Quando fui tirar sua fotografia, para ilustrar o blog em que este diário é publicado, inicialmente, fingiu esconder o rosto, numa brincadeira ou na vontade inconsciente de se manter incógnito, sem ser visto e sem ser lembrado, numa espécie de exílio de si mesmo. Depois, se deitou na calçada, e levantou os braços e as pernas, como se fosse uma criança em seu berço, talvez no desejo recôndito de voltar a ser bebê, quando certamente recebeu cuidados e foi amado por seus pais. Ao final, terminou dizendo chamar-se João. Um João só, um João a mais na multidão e na solidão. Aproveito para pedir perdão por tantas involuntárias rimas em ão.

DIÁRIO INCONTÍNUO


16 de fevereiro de 2010

Nesta temporada parnaibana, fui algumas vezes à banca do Louro, para comprar jornal e ver os livros de autores parnaibanos, que ali são expostos e vendidos. Esse ritual é bom porque em torno da banca sempre encontro algum conhecido dos velhos tempos. Numa dessas idas encontrei o Emanuel, meu colega do Campus Ministro Reis Velloso – UFPI, curso de Administração de Empresas, que me cumprimentou efusivamente e com bastante jovialidade. No final dos anos setenta, fui com ele a Tutoia, seguindo pelo Delta do Parnaíba, num desses barcos toc-toc ou chalana, que faziam linha para essa cidade maranhense. Ficamos hospedado numa casa de sua família, que ficava à beira-mar, em amplo terreno, com várias plantas e coqueiros. Ficava numa enseada da praia Andreza. Corria a lenda de que uma moça, que desaparecera ou fora arrebatada na praia de Amarração, na cidade de Luís Correia, várias décadas atrás, ali aparecia como um ente encantado. Ouvindo o vento a farfalhar nos coqueiros e nas outras árvores e escutando o marulho das ondas, colhi inspiração para alguns de meus poemas marítimos ou parnaibanos. Nesse passeio a Tutoia, terminei encontrando o jornalista e professor Antônio Gallas Pimentel, tutoiense, mas meu amigo de Parnaíba, em cuja companhia terminei fazendo um périplo pelos points da cidade, no anglicismo de hoje, que consigno em sua homenagem, já que ele é um mestre em Inglês e fala fluentemente essa língua.

Já o Louro é uma instituição da Praça da Graça, e deveria ser tombado como um patrimônio vivo do município. Conheço-o desde o final da década de setenta e nunca ouvi o menor comentário que pudesse desabonar a sua pessoa. Muito pelo contrário, a sua conduta foi sempre correta, tanto que entra prefeito e sai prefeito e o Louro continua inabalável em sua banca de revistas. Faça chuva ou faça sol, seja sábado, domingo ou feriado, lá está ele a mourejar em seu estabelecimento, com a sua cordialidade e alegria de sempre, a vender os jornais e livros da terra, e os jornais e revistas de circulação nacional, assim como os editados em Teresina. Embora correndo o risco de ser perseguido por algum alcaide fustigado pelas catilinárias do Inovação, sempre vendeu esse jornal, durante todo o tempo em que ele circulou. Por isso mesmo tinha a consideração e o respeito de todos que faziam parte desse bravo periódico. Para mim o Louro foi sempre o Louro da banca de revistas da Praça da Graça. Por essa razão, não obstante a estima que lhe tenho, sequer sei o seu nome. Telefonei-lhe, para lhe colher o nome completo, que agora declino, como uma homenagem a um cidadão honrado: Francisco das Chagas Sampaio. Ele, um homem de bem, cordato, vestia uma camisa preta, com a palavra PAZ, em letras brancas, estampada no peito. Ou seja, o Louro, literalmente, veste a camisa da PAZ.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO


15 de fevereiro de 2010

De manhã cedo, estive na casa da mãe do Gervásio Castro, que está passando uma temporada em Parnaíba, sua terra natal. Radicou-se no Rio de Janeiro há várias décadas, e assimilou a parte boa do espírito carioca, sobretudo a maneira mais suave de encarar a vida e uma gostosa pitada de senso de humor. Foi ele que ilustrou os meus PoeMitos da Parnaíba, que publiquei em livro, a ser lançado brevemente em Parnaíba, em data a ser marcada pelo presidente da Academia Parnaibana, Antônio de Pádua Ribeiro dos Santos. Não nos conhecíamos pessoalmente, mas apenas através de e-mails e de telefonemas, embora tenhamos vários amigos comuns. Posso dizer que o Gervásio captou o que eu quis transmitir através dos PoeMitos de um modo tão perfeito, como eu jamais poderia imaginar. Soube retratar a parte satírica e erótica com muita criatividade, de modo sutil, elegante, delicado mesmo, que não agride a sensibilidade de ninguém, dando ao personagem graça, leveza, com certeira dose de humor, que disfarça a parte mais crua da nudez e de eventual escatologia de alguns dos poemas. Suas charges são coloridas, mas com cores que se harmonizam entre si e com o desenho ou retrato. Tentou extrair das personalidades o que elas tinham de mais belo ou de mais pungente. Seus traços são perfeitos, mesmo quando se avizinham da caricatura e sempre parecem respeitar as leis da perspectiva e da proporcionalidade, mesmo quando têm como objeto alguma deformação física. Por isso mesmo, mereceu o elogio do prefaciador, o mestre e doutor em Literatura Brasileira, Cunha e Silva Filho, crítico abalizado, ensaísta da melhor estirpe e cronista de mérito. Seu irmão, Fernando Castro, é outro monstro sagrado e consagrado da charge e da caricatura. O Gervásio está levando a cabo a missão difícil de ilustrar o poema épico moderno A Zona Planetária, de minha autoria, que pretendo transformar em livro, com o acréscimo de um ensaio sobre os velhos cabarés. Sem dúvida a cumprirá com brilhantismo, pois suas charges, em muitos momentos, têm rasgo de verdadeira genialidade. Será prefaciado pela Teresinha Queiroz, uma de nossas maiores escritoras e historiadoras, membro da APL, com vários livros importantes publicados.

DIÁRIO INCONTÍNUO

Elmar, Franzé e Canindé
Fabrício, Clarice, Franzé, Canindé e Érico Vinicius

15 de fevereiro de 2010

Fui hoje com o Canindé Correia à praia de Macapá, visitar o amigo comum Franzé Ribeiro. Para a nossa surpresa e satisfação, a sua mulher Clarice estava de aniversário. Tivemos uma palestra muito agradável com o Fabrício, filho dos anfitriões, Carol Porto e com o Érico Vinícius, que demonstraram ser jovens inteligentes, atualizados, de boa cultura e interessados em arte. O nome do último foi uma homenagem prestada pelo seu falecido pai ao grande romancista gaúcho e ao famoso poetinha, na verdade um grande poeta, pelo que a palavra deveria ser usada no aumentativo e jamais no diminutivo. Já havíamos estado nessa casa algumas vezes, e sempre nos sentimos à vontade, quase como se estivéssemos em nossa própria residência. Franzé e o Reginaldo Costa foram os fundadores do jornal Inovação, de cujo grupo fizemos parte este escriba, o Canindé Correia, Bernardo Silva, Vicente de Paula (Potência), Flamarion Mesquita, Jonas Carvalho, João Maria Madeira Basto, Mário Carvalho, Jonas Carvalho, Porfírio Carvalho, Neco Carvalho, Ednólia Fontenele, Bartolomeu Martins, Danilo Melo e vários colaboradores, como Alcenor Candeira Filho, Karleno, Diderot Mavignier, Jorge Carvalho, Israel Correia e vários outros poetas e escritores. Esse jornal circulou do final da década de setenta até o começo dos anos noventa, em periodicidade mais ou menos mensal. Tinha suplemento cultural. Fazia entrevista. Entre outros, foram entrevistados Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, Assis Brasil, Ladislau João da Silva, Alcenor Candeira Filho e uma prostituta. Fez pesquisa social, com metodologia científica, vez que os questionários eram elaborados pelo estatístico João Batista Teles. Inicialmente, foi impresso em mimeógrafo, no formato apostila, tamanho A4. Foi o primeiro jornal parnaibano a ser impresso em off-set. O periódico pertencia ao Movimento Social e Cultural Inovação, que manteve uma biblioteca, durante muito anos, e promoveu palestras e debates. Graças a sua influência, surgiram vários outros jornais alternativos. Foi um jornal bravo e independente, que combatia a administração pública municipal, estadual e federal, ainda na época da ditadura militar. Quando o prefeito João Batista Ferreira da Silva destruiu a bela e velha Praça da Graça, para construir uma modernosa, o jornal combateu ferozmente essa decisão, ainda mais porque o início da construção demorou. A campanha do jornal, numa época em que a radiodifusão e o jornalismo eram bastante atrasados, e em que a internet não existia, foi muito forte, e terminou movendo a opinião pública contra a atitude do prefeito, até que populares, revoltados com a situação, derrubaram os tapumes que escondiam os escombros da praça, empilharam-nos e os queimaram. Foi uma verdadeira festa popular, pois, no dia seguinte, houve uma espécie de carnaval, com vários carros desfilando em torno dos destroços da praça. O Inovação era informativo, formativo e cultural, e vários importantes escritores, poetas e artistas plásticos publicaram suas produções nele. Foi, pelo menos durante alguns anos, o jornal mais lido e comentado de Parnaíba. Ainda hoje sinto uma nostalgia muito grande da falta desse jornal, e ter feito parte do grupo do Inovação é um de meus maiores orgulhos, e tem mais valor para mim do que certas honrarias.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO

Paulo Meireles, Vicente de Paula, o Potência, e Canindé Correia

14 de fevereiro de 2010

Ainda cedo, fui com o Canindé Correia tomar um caldo com tapioca no bar do senhor José dos Santos, nas proximidades do mercado público do bairro N. S. de Fátima, reduto onde os boêmios parnaibanos vão curar a ressaca ou fazer a base para nova maratona etílica. Lá, encontrei velhos conhecidos, e entre eles o Vicente de Paula (Potência) e o engenheiro Paulo Meireles. Comuniquei a esses amigos que, neste diário, motivado por uma conversa com o Fonseca Neto, havia falado no comício da Guarita, quando o atual presidente Lula veio a Parnaíba, na época da luta pela criação do PT, nos idos de 78/79, do século passado. O Vicente recordou que o comício foi feito em cima de um caminhão emprestado pelo atual prefeito parnaibano, Zé Hamilton, que era pessoa da amizade do grupo do jornal Inovação. Também se lembrou de um coquetel que houve na casa da Tércia, amiga do Reginaldo Costa, que hospedava o líder trabalhista. Nessa confraternização, quando foram oferecer uma cerveja ao Lula, ele perguntou se não não havia uma cachacinha da terra. Ao lhe ser oferecida a calibrina, misturou com um vermute, fazendo o coquetel conhecido como rabo de galo. Recordamos que o comício foi feito na base de empréstimos. Além do caminhão, já referido, os paus para instalação dos fios elétricos foram cedidos por vendedores do bairro Guarita. Os amplificadores de som também foram cedidos gratuitamente. O Vicente conseguiu que o proprietário de um cinema do bairro fizesse a divulgação do comício sem nada cobrar, graças a sua amizade pessoal com ele, que lhe devia favor. Com toda essa pobreza, mais do que franciscana, o então grande empresário José Alexandre Caldas Rodrigues ainda achou de perguntar ao Canindé quem estava, à socapa, financiando o evento.

SELETA NACIONAL



GONDOLEIRO DO AMOR

Castro Alves

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;


Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
do Gondoleiro do amor.


Tua voz é a cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento;


E como em noites de Itália,
Ama um canto o pescador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.


Teu sorriso é uma aurora,
Que o horizonte enrubesceu,
-Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu.


Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.


Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;


Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no languor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?...


Teu amor na treva é - um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa - nas calmarias,
É abrigo - no tufão;


Por isso eu te amo querida,
Quer no prazer, quer na dor...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

SELETA PIAUIENSE

O Parnaíba, ao passar entre as cidades de Amarante - PI e São Francisco - MA. Ao longe, veem-se as serras azuis da poesia dacostiana, que o poeta contemplava do alto do morro, que eu chamo de Morro da Saudade, no centro da urbe amarantina.

SAUDADE

Da Costa e Silva

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,

E o pranto lento deslizando em fio ...

Saudade! Amor da minha terra ... O rio

Cantigas de águas claras soluçando.



Noites de junho ... O caburé com frio,

Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando ...

E, ao vento, as folhas lívidas cantando

A saudade imortal de um sol de estio.



Saudade! Asa de dor do Pensamento!

Gemidos vãos de canaviais ao vento...

As mortalhas de névoa sobre a serra...

.

Saudade! O Parnaíba - velho monge

As barbas brancas alongando ... E, ao longe,

O mugido dos bois da minha terra ...

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO



13 de fevereiro de 2010

Vindo passar os dias de carnaval em Parnaíba, resolvi dar uma boa folheada no livro Barras – histórias e saudades, de Antenor Rêgo Filho, que já havia lido alguns meses atrás. O autor foi um dos fundadores da Academia de Letras do Vale do Longá, entidade a que tive ingresso com o apoio seu e do falecido Geraldo Majella de Carvalho, meu parente e amigo. Foi seu presidente em três mandatos, sendo que na sua última gestão o sodalício conseguiu adquirir a sua sede própria, a cuja solenidade de inauguração tive o prazer de estar presente. O livro conta a saga da comunidade barrense, desde o seu primórdio, no século 18, quando o fazendeiro e empreendedor Miguel de Carvalho e Aguiar, filho do grande Bernardo de Carvalho e Aguiar, fundador de Campo Maior e de outras comunidades, instalou a sua fazenda e currais e possibilitou a construção da capela católica, até a década de setenta. Como se sabe, as cidades piauienses, normalmente, surgiram em derredor de currais e de templos católicos, e Barras não foi uma exceção. A obra foi prefaciada por Ribamar Garcia e contou com os depoimentos dos escritores Carlos Nejar, Adrião Neto e Herculano Moraes. Narra os principais fatos da história política do município, citando os seus protagonistas, mas também se refere aos costumes, folclore e cultura barrenses, em que conta episódios anedóticos e pitorescos. A urbe tem o epíteto de Terra dos Governadores, por ter dado vários governantes ao Piauí e a outras unidades federadas, mas bem poderia ser chamada, igualmente, de terra de intelectuais, uma vez que forneceu ao estado vários escritores e poetas de nomeada, entre os quais o autor da obra em comento. O opúsculo também é enriquecido por cópias de importantes documentos e fotografias que nos levam ao passado, quando Barras era uma cidadezinha bucólica, com belas praças, quase uma ilha, através do abraço aquático do Marataoan, e dos demais rios que desembocam no Longá, formando as barras, que originaram seu nome. Lamentavelmente, muitos dos prédios, vistos nas fotografias, foram destroçados pela desídia, insensibilidade ou ganância dos homens. Meus ancestrais paternos são barrenses, e por essa razão, na minha infância bebi dessas águas, quando lá estive a passeio, e na minha adolescência banhei e mergulhei na barragem, e contemplei, embevecido, a Ilha dos Amores. Por tudo isso, pude fazer o meu poema Barras das Sete Barras, cujo vídeo pode ser visto no excelente site cultural Entre-textos do professor, poeta e romancista Dilson Lages, ilustre barrense, um dos expoentes literários do Piauí. Do meu conhecimento, o livro de Antenor Rêgo Filho é o mais completo inventário histórico, folclórico, geográfico e cultural do município de Barras.

DIÁRIO INCONTÍNUO


Esculturas de Braga Tepi

12 de fevereiro de 2010

Hoje à tarde fui acordado de um cochilo por um recado de meu irmão César Carvalho, que me mandava entregar um álbum com fotografias coloridas de esculturas de Braga Tepi, que foi convidado a expor suas obras na H. Rocha Galeria de Arte, no Rio de Janeiro. A exposição será aberta no próximo dia 04 de março e se estenderá até o dia 23 do mês seguinte. Confesso que ainda não ouvira falar nesse artista, e portanto não conhecia seus trabalhos. Por isso mesmo, olhei o fólio lentamente, com muita atenção. Surpreendi-me com a qualidade das peças. São obras construídas com sucatas de ferro. Mas nota-se que o artista teve muito cuidado na escolha das peças e no modo como as interligou, como as encaixou e dispôs, dando harmonia ao conjunto. Mesmo nas esculturas grandes e pesadas, pode ser visto, em certas partes da composição, um toque detalhista, uma minúcia de obra minimalista, como se fora um trabalho de delicada ourivesaria, fazendo como que um contraste com as partes maiores e mais compactas. Apenas pelo título de algumas obras, que remete à cultura humanística e clássica, percebe-se que Braga Tepi não é um artesão ingênuo, e muito menos primitivista. Dentro do que é possível nesse tipo de escultura, concebida com a montagem das mais diferentes peças de sucatas de ferro, que não permite uma moldagem total, pode-se afirmar que ele é um figurativista de alta linhagem, mas sem ser um copiador servil e fotográfico da natureza, porque sabe distorcê-la artisticamente, adicionando elementos colhidos na imaginação, na mitologia, nos sonhos, podendo-se tirar a conclusão de que ele agrega a algumas de suas esculturas, com muito refinamento e graça, elementos extraídos do surrealismo. Sem dúvida, pelo que pude perceber das peças constantes do álbum, é um dos maiores escultores do Piauí, e inegavelmente é um dos grandes artistas brasileiros. Por isso, não me chateei de ter o meu cochilo sido interrompido abruptamente. Até porque mergulhei num sonho maior e melhor, que é a arte mágica, supra e surreal de Braga Tepi.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS


NAS ÁGUAS DO VELHO MONGE

Flutuávamos, eu e minha mulher, no rio Parnaíba, o velho monge do poeta Da Costa e Silva. A paisagem, contudo, em certos trechos, parecia pertencer a outros rios. Descíamos ao sabor das águas, sem necessidade de esforço. Em certo ponto, passamos por debaixo de uma ponte inacabada, mas já em ruínas, que eu sabia pertencer ao rio Canindé. Adiante, vimos a visão deslumbrante de um brejo, rendilhado de aguapés e outras plantas aquáticas e pontilhado de imensos buritizeiros, de longas e largas palmas, refertos de cachos brônzeos, com frutos em formato de joias. Em outro local, a água parecia marulhar, em ondas miúdas, que mais se assemelhavam a borbulhas efervescentes. Depois, o rio se encontrava com um tributário, notando-se que suas águas seguiam paralelas durante um bom percurso. A textura e a cor das águas eram diferentes, de modo que se notava que eram dois rios, até se misturarem gradativamente alguns quilômetros abaixo. Em dado momento, falei para a minha mulher que estava com medo de uma corredeira que sabia existir, mas ela calmamente disse para eu não me preocupar. Como ela não demonstrou nenhum receio, terminei por ficar tranquilo. Num local em que as águas faziam um moroso remanso, havia umas pessoas tomando banho, uma das quais era do meu conhecimento. Enquanto passava lentamente, cheguei a conversar um pouco com esse banhista, que se mostrava feliz, a se esfregar freneticamente. Até então eu pensava que seguíamos numa boia invisível, mas de repente vi que não flutuávamos. Na verdade, levitávamos sobre as águas.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO

Escritora e empresária Nileide Soares, cujo pai foi amigo do magistrado Raimundo Campos
Igreja de São Gonçalo, em Regeneração

10 de fevereiro de 2010

Em virtude da reforma que será feita no prédio do Fórum Dr. Raimundo Campos, desta Comarca de Regeneração, foi feita a mudança da repartição para uma casa antiga, situada no centro histórico da cidade, mais perto da matriz de São Gonçalo, santo de origem portuguesa, em cuja honra existiam as antigas rodas e cantigas que levavam seu nome, hoje quase extintas, sem ninguém que as dance, sem ninguém que as cante. Há quem diga que São Gonçalo do Amarante, tradicionalmente conhecido como alegre, festeiro e violeiro, não chegou a ser canonizado, mas teria chegado apenas ao posto de beato nos procedimentos católicos. De qualquer forma, o povo o canonizou e ele tornou-se santo de fato, e como tal é reverenciado por clérigos e profanos. O Dr. Raimundo Campos foi juiz de Regeneração e Amarante por vários anos. Homem sem jaça, de reputação ilibada. Nasceu em Oeiras, em 10 de agosto de 1881, descendente de importante estirpe da velha capital. Era pai do grande teatrólogo e professor piauiense José Gomes Campos, cuja obra prima é o Auto do Lampião no Além. Para que se tenha uma pálida ideia desse magistrado, basta que se diga que ele recusou a governança do Estado do Piauí e, posteriormente, o cargo de desembargador. Numa época de muita ganância, muito egoísmo e ânsia por cargos, uma atitude como essa causa admiração, senão mesmo perplexidade. Era ele um homem austero, talvez um tanto circunspecto, mas tratava todos com cordialidade e fazia suas obras filantrópicas, sendo certo que tinha o respeito e a consideração dos seus jurisdicionados. Contou-me Nileide Soares, que seu pai fora amigo do juiz e falava muito bem dele, considerando-o um homem correto e digno. Dele ficou a memória de um caso anedótico, em que teria dado uma decisão contra um homem por causa de um delito de pequeno potencial ofensivo, como se diz hoje. O infrator o abordou, insistindo para que ele desse um “jeitinho”. Pelo visto o chamado jeitinho brasileiro já deveria existir naquele tempo. O Dr. Raimundo Campos, com inegável senso de humor, respondeu-lhe que era formado em Direito e era juiz de Direito, e, portanto, não poderia ser torto, e indeferiu a súplica verbal de forma liminar e peremptória.

ARTE-FATOS ONÍRICOS


O CASO DAS BICICLETAS

Na cidadezinha acanhada, vi dois jovens a andarem com as bicicletas em veloz marcha à ré. O que mais me deixava estarrecido era o fato de que os dois ciclistas seguiam de ré em alta velocidade e sequer se davam ao trabalho de olhar para trás, embora estivessem em uma praça, com bancos, jardins e outros eventuais obstáculos. Também me impressionava o fato de que as bicicletas não pendiam nem para um lado nem para o outro, e mantinham um perfeito paralelismo e equidistância, como se estivessem fixadas em invisível trilho. Eu me perguntava como é que aquelas duas bicicletas, de tecnologia tão avançada, chegaram àquela aldeola perdida, quando sequer chegaram similares à capital. E o que mais me impressionava é que pareciam duas bicicletas comuns, como tantas outras que vemos no cotiano, sem aparentemente nenhuma sofisticação. Depois, recordei as feições dos ciclistas. Pareciam gêmeos, ambos de feições inexpressivas. Os olhos, imóveis, vazios, pareciam nada fitar, nada enxergar. As faces não demonstravam emoções. Estavam vivos, pois pedalavam vigorosamente, mas pareciam dois bonecos de cera, ou dois fantoches sem fios. Com a mesma rapidez com que faziam a bicicleta andar para trás, instantaneamente a faziam retornar para a frente, para o ponto de partida. Fiquei com a nítida impressão de que os ciclistas eram de uma outra dimensão ou não mais pertenciam a este mundo. Por frações de segundo, olhei para um cachorro que passava lentamente. Quando voltei a olhar para as bicicletas não mais as vi. Não sei se simplesmente desapareceram ou se voaram em estonteante velocidade para outra dimensão de onde podem ter vindo.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO


9 de fevereiro de 2010

Nesta madrugada sonhei que participava de um encontro de literatos, sobretudo poetas. Só gravei do sonho o momento em que o poeta Rubervam Du Nascimento discursava. Não recordo suas palavras. Eu o via em carne e osso, mas era como se o visse através de um televisor. Meus olhos pareciam ter uma espécie de zoom, pois o seu rosto parecia estar enquadrado em um close, de modo que não lhe via o restante do corpo. Conheço-o desde os idos de 1978, quando ambos éramos colaboradores da página literária coordenada pelo vate Menezes y Moraes, e quando houve uma forte interação cultural entre poetas teresinenses e parnaibanos. Nessa época existiu uma forte aproximação literária entre as duas cidades. Poetas da capital e litorâneos fizeram parte das mesmas antologias e coletâneas. Foram partícipes dos mesmos eventos literários. Certa vez, Rubervam foi a Parnaíba a serviço de sua repartição. Fui visitá-lo no hotel em que se hospedou. Trouxera uma pequena máquina de escrever portátil, e com todo o entusiasmo de sua juventude produziu alguns poemas no apartamento. Depois, ao longo da vida, mantivemos a amizade, mas nunca nos frequentamos com assiduidade. Contudo, sempre mantivemos uma admiração e fraternidade recíprocas. Quando nos encontramos, casualmente ou não, a conversa flui com muito entusiasmo e alegria. Embora não tenha ele se transformado num ermitão, tornou-se um tanto arredio a certas instituições e confrarias, sobretudo as de elogio recíproco e as de caráter corporativista. O poeta nunca aceitou e nunca fez concessões espúrias. Sempre manteve a sua postura um tanto reservada e arredia, embora seja cordial e de fácil convívio. Manteve sempre a sua linha poética, comprometida com o novo e com a pesquisa, buscando sempre as soluções inventivas, e não as de fácil apelo ao gosto popular. Mantém-se íntegro e fiel a si mesmo. Ganhou dois importantes prêmios literários nacionais, com dois de seus livros, mas, ao que parece, nunca fez questão de divulgá-los na província. Casado, há muitos anos, com a poeta Carmen Gonzalez, que oficia na sua mesma linhagem poética, que busca a síntese, o inusitado e a inventividade. Seguindo na contramão do usual, publica seu principal livro, A Profissão dos Peixes, a cada cinco anos, em edição revista e diminuída, de modo que essa obra se torna cada vez mais magra, como se passasse por radical lipoaspiração literária. Num paroxismo, poderíamos dizer que o poeta poderia alcançar a síntese ou o símbolo do peixe, que seria talvez a sua espinha, ou seu fóssil estampado em alguma pedra multimilenar.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO

O poeta Cunha Neto, entre sua mulher, dona Ana, e sua filha, Ana Maria.

7 de fevereiro de 2010

Recebi, nesta manhã, telefonema de meu pai, que noticiava o falecimento do poeta Cunha Neto, ocorrido em Campo Maior, de madrugada. Meu pai havia ido ao velório. Não pude ir ao sepultamento do bardo. Tenho recordações antigas dele. Quando eu tinha por volta de nove anos de idade, vi um folheto de sua autoria, que o meu pai recebera na missa matinal de domingo, a que tinha ido assistir na matriz, hoje catedral. O cordel falava sobre o festejo de Santo Antônio do Surubim, padroeiro da cidade. Cantava as proezas e a coragem dos vaqueiros, que são homenageados na festa religiosa, com um dia a eles dedicado. Senti orgulho do conterrâneo, e – por que não confessar? – uma certa inveja. Imaginei o meu nome estampado em um livro. Mas só fui despertar de verdade para a literatura um pouco mais tarde. Tempos depois, vi outros livretos do poeta, com poemas que falavam da lagoa do Corró, da saudade, e das belezas arquitetônicas e naturais de Campo Maior. Zé Cunha Neto era um autêntico cordelista, também chamado de poeta de gabinete, porque maneja a palavra escrita, mas não era um repentista, cuja principal característica é improvisar, acompanhando-se por uma viola. Foi meu amigo e amigo de meu pai. Quando tomei posse de minha cadeira na Academia do Vale do Longá, Zé Cunha me prestou uma enternecedora homenagem, declamando um poema de sua autoria sobre a minha pessoa. Não precisaria acrescentar que fiquei deveras comovido. Isso significa que o poeta era despojado da mesquinha inveja e sabia reconhecer as qualidades de outra pessoa, de outro poeta. Era um cidadão de bem e do bem. Sua mulher, dona Ana, foi uma boa e sábia companheira, que soube amparar e compreender o grande poeta popular. Nos últimos anos, vinha amargando forte depressão, que torturava seu espírito, tornando-o quase recluso, retraído, quando outrora fora alegre, expansivo e sociável. Lembrando-me dos seguintes versos de Antero de Quental: “Na mão de Deus, na sua mão direita, / Descansou afinal meu coração”, tenho a certeza de que o coração bondoso e tão sofrido do poeta Cunha Neto encontrou abrigo, amparo e lenitivo na destra do Senhor.

* * *

À tarde, quando eu voltava de um passeio a um balneário de Timon, vi, na avenida Joaquim Ribeiro, um rapaz tentando entrar num casebre, batendo vigorosa e insistentemente na porta, que permaneceu fechada. Não sei se alguém respondeu às insistentes batidas, com alguma negativa. Sei que o rapaz afastou-se e foi sentar em uma soleira de porta, próximo. Começou a sorrir, aparentemente sem nenhuma razão. Talvez risse de si mesmo ou da possível negativa, que recebera. Seus cabelos eram esquálidos, maltratados; as roupas, velhas e manchadas, e o seu aspecto geral era de sujeira, como se ele não cuidasse de si mesmo. Os que estávamos no carro, achamos que ele parecia estar drogado. Por tudo que tenho visto, lido e ouvido, considero que a droga foi o grande flagelo do final do século passado, e parece que continuará a ser o mal deste século XXI. Traz grandes malefícios ao viciado, que termina sendo um tormento, inicialmente, para a sua família, ao exigir dinheiro para o sustento do vício, e depois para a sociedade, quando começa a furtar e a roubar, para poder adquiri-la. Segundo os estudos e as observações, o crack vicia logo na primeira ou segunda vez em que é fumado, prejudica o cérebro e a saúde do dependente e muitas vezes o leva à morte. Na ansiedade e na compulsão pela droga, o usuário é capaz até mesmo de assaltar e matar, e nesses momentos a sua consciência e freios inibitórios morais ficam completamente desativados. Às vezes, o crime hediondo é cometido contra parentes próximos e pessoas que o dependente amava. E a sociedade se queda perplexa, impotente, diante da brutalidade e da barbárie que se instaura, sem nenhum sentido e de forma avassaladora.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

AMOR DE SALVAÇÃO


Elmar Carvalho

O teu grande amor
foi o que te salvou
e me salvou,
pois nos arrebatou
dos amores tentadores
em que seríamos arrastados.
Já que me amavas
eu tive que te amar
para que não sofresses,
nem eu, amiga, por
te ver sofrer.
Não gosto que ninguém sofra
e muito menos tu, amada,
frágil frasco de fragrâncias
e de refrigérios refrescantes
que me ama muito além
do que mereço.

DIÁRIO INCONTÍNUO

Historiador e advogado Reginaldo Miranda, presidente da APL

6 de fevereiro de 2010

Foi hoje a primeira sessão da Academia Piauiense presidida pelo historiador Reginaldo Miranda. Os acadêmicos manifestaram suas felicitações e lhe desejaram uma profícua administração. O presidente, talvez para mostrar o seu intuito de que deseja trabalhar vigorosamente em prol da instituição, já apresentou um número do boletim Notícias Acadêmicas, cuja regularidade prometeu retomar, assim como prometeu “zerar” as edições atrasadas da Revista da Academia. Na continuação dos trabalhos, em que vários assuntos importantes foram abordados, o acadêmico Celso Barros Coelho assinalou que o centenário de acadêmico deve ser comemorado por sua academia, uma vez que a sua imortalidade é a sua presença espiritual, é a lembrança e o estudo de sua obra, e que a Academia não se lembrou de comemorar o centenário de nascimento de Cláudio Pacheco, sobre o qual teceu comentários elogiosos, informando que a Justiça Federal, Seção do Piauí, comemorou a efeméride, tendo ele proferido uma conferência no auditório de sua sede. Paulo Nunes, em aparte, informou que o Conselho Estadual de Cultura lembrou-se dessa centúria, inclusive tendo sido publicado na revista Presença, editada por essa entidade, um artigo de Celso Barros sobre ele, como constitucionalista. Cláudio Pacheco foi deputado estadual, suplente de senador, consultor jurídico do Banco do Brasil, advogado, professor, jornalista, escritor e poeta. Nasceu em Campo Maior, em 11.05.1909, e faleceu em Teresina, em 14.03.1993, poucos meses após a morte de sua mulher. Suas principais obras são: História do Banco do Brasil, Tratado das Constituições Brasileiras (14 volumes), Luzes e Água na Planície (poesia), As Pedras Ficaram Magras (romance) e Roda Viva (romance). As obras meramente doutrinárias sobre determinada Constituição, quando esta é substituída por outra, inevitavelmente terminam por perder a importância, mormente no que tiver de mais específico. Entretanto, o Tratado das Constituições Brasileiras, de Cláudio Pacheco, sempre atrairá o interesse dos juristas e doutrinadores, uma vez que analisa crítica e historicamente as Cartas Magnas do Brasil, mostrando os seus defeitos e virtudes, as suas evoluções e eventuais involuções, à luz da doutrina, sobretudo a francesa, e de possíveis estudos comparativos.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS


A BOLA E O ZEPPELIN

Eu treinava como goleiro num pátio acimentado, sombrio e deserto. O piso parecia algo sujo, encardido. O muro era gretado e apresentava manchas de lodo escuro, e não esverdeado. Não tinha portanto a beleza de um outro muro que conheci, com o musgo verde, brilhoso, macio, aparentando uma textura de veludo. A bola também era inusitada, porquanto não era redonda, mas um tanto comprida, com uma certa semelhança com a usada no futebol americano. Em meu treino, eu lançava-a contra a parede ou contra o piso, para tentar pegá-la de volta. Testava meus reflexos e minha habilidade de segurá-la entre as mãos ou encaixá-la entre meus braços e meu peito. Mas a bola parecia ter seus caprichos e ganhava vida própria, pois tomava um rumo inesperado, a desafiar as leis da física, talvez com o objetivo de enganar-me a diligência de goleiro. Na última vez em que a lancei, tomou a forma e a dimensão de um Zeppelin, em cuja cesta entrei, para voar, tendo como céu e pano de fundo uma imensa tela de Rembrandt, com o seu característico contraste de claro e escuro, sombra e luz.

AS LUTAS DE LAURO CORREIA


1ª foto: solenidade de posse de Elmar Carvalho na presidência do D. A. "3 de Março", vendo-se Jorge Araújo, Elmar, Fonseca Neto, Horácio Mourão e Lindalva. 2ª foto: solenidade de posse de Elmar Carvalho na Academia Parnaibana de Letras, vendo-se Fernando Mendes, Antônio de Pádua Ribeiro dos Santos, Canindé Correia, Lauro Correia, Alcenor Candeira Filho, Elmar, capitão dos Portos e Djalma Lacerda.

5 de fevereiro de 2010   Diário Incontínuo   

AS LUTAS DE LAURO CORREIA

Elmar Carvalho

Esta madrugada, sem que eu saiba o motivo mais imediato, sonhei com o Dr. Lauro Andrade Correia, numa situação relacionada com educação e vestibular. Mas não recordo os detalhes do sonho. Esse cidadão pertence a importante estirpe oriunda do Rio Grande do Norte, que chegou ao litoral piauiense em 1863, portanto há quase 150 anos. Teve importantes membros, que exerceram elevadas funções, mesmo em nível nacional, cuja enumeração não cabe na moldura de um diário.

Vários foram prefeitos de Parnaíba, inclusive o Dr. Lauro Correia, grande tribuno, intelectual e escritor, cidadão probo e digno, sempre cavalheiro no trato pessoal. Metódico e organizado, em sua gestão à frente do município de Parnaíba, institucionalizou a bandeira, o hino e o brasão municipais, além de ter contribuído para a legislação local, tomando a iniciativa de leis relacionadas com a postura municipal e o plano diretor da cidade. Construiu o Centro Cívico, em local próximo ao belo Colégio das Irmãs, nas proximidades da bem arborizada Praça São Antônio, sombreada pelos frondosos e vetustos oitizeiros.

Em seus 85 anos, como intelectual e cidadão participativo, ainda prossegue em sua campanha civilista, em prol da construção do porto de Luís Correia, que parece ser tão interminável quanto o manto de Penépole, e em favor da navegabilidade e conservação do Rio Parnaíba, que cada vez mais vem se degradando de forma contínua, por causa do desmatamento das matas ciliares, da poluição e da agricultura de manejo predatório, que visa apenas ao lucro fácil e imediato. 

Quando assumi a presidência do Diretório Acadêmico “3 de Março”, em 1978, Dr. Lauro, além de presidente da FIEPI, diretor do SESI e diretor administrativo da indústria Moraes S/A,  era o diretor do Campus Ministro Reis Velloso – UFPI, ao qual, no regime militar de então, era vinculada a agremiação acadêmica. No auge de minha juventude e entusiasmo, no dia de minha posse, com a presença de vários estudantes vindos de Teresina, entre os quais o hoje historiador e professor Fonseca Neto, fiz inflamado e combativo discurso, em que prometi, seguindo a tendência da época, reformar o estatuto da entidade, para desatrelá-la da administração da UFPI, o que de fato consegui fazer.

Logo no dia seguinte ou um pouco depois, Dr. Lauro solicitou-me uma reunião entre ele e a minha diretoria. Nesse encontro, com a sua lhaneza de sempre, com o seu raciocínio lógico e fundamentado, falou do bom entendimento que deveria existir entre a direção do campus e o diretório acadêmico. Devo dizer que mantivemos um bom relacionamento administrativo, e que ele me ajudou em vários eventos e realizações de minha gestão, como a recuperação dos equipamentos de jogos, frete do ônibus que conduzia estudantes para o campus, impressão de coletânea de poemas e cartaz poético, realização de torneio futebolístico, passeio turístico a Barras, jornada universitária, ciclo de palestra, curso de férias, etc.

Passei a admirá-lo e me tornei seu amigo nesses longos anos. Procurei seguir muitas de suas lições. Terminei estreitando amizade com seus filhos Israel, poeta, professor universitário e compositor de mérito, e Gardênia. Muitos anos depois, tive a honra de assumir cadeira da Academia Parnaibana de Letras, quando ele era o seu dinâmico presidente, de cujo silogeu foi um dos fundadores.


Sucedi a monsenhor Antônio Monteiro de Sampaio, um dos maiores oradores sacros do Piauí, que foi também um de meus antecessores na Academia Piauiense de Letras. Muitas vezes tenho visitado Dr. Lauro, em sua casa na rua Simplício Dias, em companhia de seu sobrinho Canindé Correia, meu compadre e amigo de longa data, oportunidade em que entabulamos agradável conversação, sobre história e cultura.  

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS


O CÉREBRO E O AQUÁRIO

Nasci em 2056. Trinta e um anos após fui assassinado com um tiro na cabeça. Segundo soube, o projétil passou a milímetros de meu cérebro. Certamente, houve um erro do homicida, pois o objetivo deveria ser a destruição do cérebro. Não contarei detalhes sobre esse fato, porque isso não tem importância para o que eu quero dizer. Imediatamente o serviço médico adotou as providências cabíveis e me levou para o hospital. Cheguei já morto e nada pôde ser feito para que eu fosse reanimado. Mas a tragédia não foi a minha morte. A tragédia foi que mantiveram o meu cérebro vivo, numa máquina, ironicamente chamada de máquina da vida eterna. Meu cérebro foi mergulhado num líquido conservante, em baixíssima temperatura, e ligado eletroquimicamente a um computador, que transformava meu pensamento em voz e em palavra escrita. Ou seja, eu continuava consciente de meu próprio eu, mas despojado de meu corpo, como se minha alma tivesse sido aprisionada na máquina. Claro que com o colapso de meu corpo eu tive meu momento de inconsciência, como se tivesse morrido, mas depois, com a recuperação do funcionamento de meu cérebro, que não fora atingido pelo disparo, e com o auxílio da máquina, tomei consciência de que ainda pensava, de que ainda estava vivo, se é que se pode chamar essa situação de vida. Posso dizer que “acordei” num estado catatônico, completamente caótico e de absoluta perplexidade. Como cientista e homem culto, eu não desconhecia a existência da máquina que se destinava a manter o cérebro vivo e em atividade. Corriam boatos de que ela já fora testada com várias cobaias humanas, cujo fim nunca se soube. Mas as autoridades negavam que já a tivessem usado, e alegavam que só a usariam em caso de extremo interesse público e com o consentimento da família. Ocorre que eu não tinha família: era solteiro e meus pais já haviam falecido.
Como já disse, eu era um cientista, e dirigia um projeto ultrassecreto e de capital importância para o meu país. Foi exatamente por isso que me mataram e foi exatamente por isso que mantiveram o meu cérebro em funcionamento. O projeto traria lucros astronômicos ao meu país e astronômico prejuízo a outros países. Foi isso que selou o meu destino, colocando-me nessa situação que jamais poderia imaginar, nem mesmo nos meus piores pesadelos. Após sair do meu estado de perplexidade, comecei a avaliar a aterrorizante situação em que me encontrava, sem corpo e com o cérebro aprisionado em uma máquina. Nesse ponto, os médicos e os psicanalistas passaram a conversar comigo, através da máquina, com mensagens diretas ao meu cérebro ou a minha mente, se o leitor preferir. Certamente, imaginaram o meu desespero, o desespero de um homem que era apenas um cérebro. Veio conversar comigo o chefe do meu departamento, um general. Disse que a decisão de me submeterem à experiência da máquina de ativação cerebral se devia ao fato de que precisavam de minha colaboração ao projeto que eu liderava. Respondi-lhe que estava atordoado, e que não pretendia colaborar. Ele não insistiu. Para não repisar os fatos e não alongar essa narrativa, devo dizer que o meu desespero foi sempre aumentando, até eu entrar em profunda crise depressiva. Ficava a recordar o tempo em que tinha corpo e podia me locomover à vontade. Em que não ficava confinado numa máquina, sem sentidos, e apenas podendo transmitir meus pensamentos através da parafernália tecnológica. Eu era um atleta, um desportista, e agora sequer tinha um corpo. Tinha amigos, com os quais conversava, jogava e participava de festas e tertúlias. Tinha mulheres com quem fazia sexo. Tinha uma noiva, que eu amava, e com quem pretendia casar-me, e agora estava reduzido a um cérebro incrustado nas entranhas de um artefato que o mantinha em atividade. Veio a saudade, veio a solidão. Sequer podia ler os livros que amava. Não podia fruir nenhum tipo de arte. Veio-me a lembrança da Sibila de Cumas, que pedira e ganhara uma longa vida, tão longa em anos quanto a quantidade de grãos de areia que continha em sua mão, mas a quem fora negada a juventude, e que foi envelhecendo, se enrugando, como um pergaminho amarrotado. Essa Sibila, na solidão de seu exílio no templo, quando perguntada sobre o que desejava, dizia querer a morte. Foi o que passei a desejar intensamente. Mas sequer eu poderia matar-me. Quando o general voltou a me contactar, disse-lhe que desejava apenas morrer. Prometeu-me que se eu continuasse a ajudar a equipe no desenvolvimento do projeto, quando este fosse concluído, desligaria a máquina. Não tendo nenhuma alternativa, resolvi ajudá-lo com todo o meu empenho. Dia após dia, ano após, colaborei com o projeto, na esperança de alcançar a minha libertação através da morte, seja porque a minha alma se desprenderia de meu cérebro, se alma existisse, e voaria livre em outra dimensão, seja porque eu descansaria na inconsciência do não ser. Com a minha colaboração decisiva, o nosso trabalho foi coroado de êxito. O general se propôs a cumprir a promessa. Pedi para gravar esse depoimento, sem jamais ter a certeza de que eles o gravariam, e sobretudo sem nunca saber se ele seria divulgado. Agora, enquanto espero a minha morte, lembrei-me dos peixes ornamentais dos aquários, vivos, mas confinados em uma caixa de vidro. Mas os peixes pelo menos têm companheiros, têm corpos, com os quais nadam no pequeno espaço que lhes deram, e têm os seus sentidos. E eu sequer tenho corpo. Sou apenas um cérebro exilado no compartimento hermeticamente fechado de uma máquina que me mantém vivo. Vivo? Nem mesmo sei se isso é vida, ou se é uma morte pior do que a morte. Como a Sibila, desejo apenas morrer.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO


Na primeira foto, a sede da Academia Piauiense de Letras. Na segunda, o presidente Reginaldo Miranda e o ex-presidente Paulo Nunes.

3 de fevereiro de 2010

Fui à APL, para desempenhar minhas funções de 1º secretário. Aproveitei para tirar uma fotografia do belo e sóbrio sobrado da Miguel Rosa, perto do cruzamento com a avenida Frei Serafim, onde funciona o sodalício. Lá encontrei o presidente Reginaldo Miranda, entusiasmado com os seus planos e projetos, e no firme propósito de executá-los fielmente. Um pouco depois, chegou o professor Paulo Nunes, ex-presidente da entidade e membro da atual diretoria, que certamente contribuirá com o seu dinamismo e esforço para que o presidente atinja o seu desiderato. Reginaldo já está concluindo a arte final do Notícias Acadêmicas e promete manter a sua periodicidade mensal. Também já está adotando providências para retomar a regularidade da publicação da Revista da Academia, bem como publicar as edições atrasadas. Tem uma obra literária considerável, sobretudo no campo da historiografia, tendo escrito a monumental História do município de Regeneração. É um cidadão de gestos mansos, um legítimo diplomata, bem sucedido em suas atividades, especialmente advocatícias e culturais, de sorte que lhe antevejo uma profícua gestão à frente da Casa de Lucídio Freitas.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO


DIÁRIO INCONTÍNUO

2 de fevereiro de 2010

Voltei há pouco de minha caminhada na avenida Raul Lopes, que durante estas minhas férias venho fazendo quase diariamente. Escolhi o seu calçadão para esse saudável exercício porque é um local adequado, possui uma bem conservada floresta à margem do rio Poti, tão degradado, com as suas águas poluídas e estagnadas, exceto na época chuvosa; porque vejo outras pessoas a caminhar, e isso me estimula a persistir nesse esforço em prol da saúde. Fora das férias, caminho apenas às sexta-feiras e aos sábados, e excepcionalmente aos domingos. Às vezes, acompanho (ou sou acompanhado por) algum amigo e me entretenho em agradável conversação, ou sigo sozinho, e me deleito a ver as árvores frondosas, os pequenos arbustos, e as diferenças entre as variadas folhagens, sem descurar da beleza das flores, que ornam a margem do calçadão. Isso faz com que me sinta bem e prossiga com mais vigor na caminhada. Hoje, durante algum tempo, caminhei ao lado do Dr. João Borges Caminha, advogado aposentado do Banco do Brasil, que foi meu professor de Direito Agrário na velha Salamanca da UFPI. Após a sua aposentadoria, tanto na universidade como no banco, o mestre começou a escrever sobre a História do Piauí, tendo lançado recentemente um livro sobre a História de Ipiranga, sua terra natal. Temos entabulado várias conversas sobre assuntos diversos, mas com mais frequência sobre a História de nosso estado.

Nessas marchas, acompanhei a construção da ponte estaiada João Isidoro [da Silva] França, mais conhecida como ponte do sesquicentenário. Sem dúvida será muito útil e bela, e vai desafogar o tráfego das pontes da Frei Serafim e da Petrônio Portella. É uma obra monumental, no sentido de grandiosidade e de beleza, com os cabos de sustentação a ornamentá-la, como raios ou um grande leque, quase a lembrar uma desfraldada cauda de pavão. As obras continuam firmes, com a construção das “alças” e da avenida de acesso à ponte. Quando, recentemente, Alberto Silva morreu, demagogos e oportunistas defenderam que essa obra passasse a ter o nome do ex-governador, que já foi prodigalizado com grandes e várias homenagens. Ressalvo, obviamente, aqueles que agiram de boa fé, seja por ignorância ou por paixão política. Provavelmente, desconheciam a importância histórica de João Isidoro França, que foi fundamental para Saraiva, no início da construção de Teresina, pois esse mestre de obras era uma espécie de arquiteto e engenheiro sem universidade, diligente em sua labuta, e sempre a cobrar de Saraiva, através de cartas, as providências necessárias para que as obras seguissem seu curso normal. Devia ter interesse cultural, porquanto em sua casa, na praça da Constituição, hoje Marechal Deodoro, fazia representar peças teatrais, o que era de admirar, considerando-se a Teresina da época. Entre as suas principais obras, destaca-se a igreja do Amparo, que ainda hoje alveja suntuosamente. Dela foi vigário, por muitos anos, o grande historiador monsenhor Chaves, que escreveu obras seminais e clássicas sobre a história do Piauí, inclusive especificamente sobre Teresina. O prefeito Sílvio Mendes, de forma firme, com a autoridade moral de quem possui a razão, defendeu a permanência do nome de João Isidoro França, e o manteve, com muita justiça, aliás.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO


Na primeira foto, o professor Paulo Nunes, no alpendre de sua casa. Na segunda, Revista Presença, editada pelo Conselho Estadual de Cultura, e criada na curta e paradigmática gestão do professor Paulo Nunes, como secretário de Estado da Cultura. As matérias de capa, sobre os 100 do Arquivo Público do Piauí, se devem a Paulo Machado, Cineas Santos, Síria Emerenciana Nepomuceno Borges e Paulo Nunes.

01 de fevereiro de 2010

Estive, na parte da manhã, com o professor Paulo Nunes. Fui conhecer as novas instalações do Conselho Estadual de Cultura, que ele preside com muita dedicação e competência. Foi ele um dinâmico e profícuo presidente da Academia Piauiense de Letras. Mostrou-me o amplo e bem dividido prédio, inclusive a sala de reunião do Conselho, o auditório/teatro e uma sala que está destinada às aulas de computador. Falou-me de seus projetos e metas. Aproveitei para lhe dar duas sugestões: que as aulas de informática não sejam apenas sobre o básico, mas que ensinem também computação gráfica, editoração de livro, manejo de fotografia, criação de blog etc., e reivindiquei a promoção de um sarau, talvez poético e musical, nas noites de plenilúnio, para usar uma palavra tão do gosto dos simbolistas, no amplo espaço aberto do prédio, que bem se presta a essa finalidade. Nessa visita revi o poeta Jonas Piauí, que me deu o mais recente número da revista Presença, editada pelo Conselho, que por sinal foi criada pelo professor Paulo, em sua curta, porém profícua gestão de secretário de Cultura do Estado. Disse ao poeta, em tom de blague, que ele era o mais piauiense dos piauienses, pois trazia o nome do Estado em seu próprio nome. Quando estávamos em meio à conversa, chegou meu velho conhecido e amigo Fonseca Neto, futuro confrade na APL. Na agradável conversa, o mestre Paulo nos contou que o seu pai, Francisco de Paulo Teixeira Nunes, era um verdadeiro ecologista, pois, como prefeito de Regeneração, combatia a prática das queimadas, tão praticada pelos nossos rurícolas. Só que, para minha tristeza, vejo hoje grandes empresários da chamada agroindústria destruírem vastas glebas de floresta, da noite para o dia, para transformar tudo em carvão, na ganância desmedida do lucro fácil e imediato, sem nenhuma criatividade e empreendedorismo. Contou-nos Paulo Nunes que um caboclo, de nome Mariano, um pernóstico inocente e bisonho, dissera ao alcaide que, por não conhecer sua ordem, fizera uma grande queimada “aritmética portuguesa areoplana”, o que nos provocou boas gargalhadas. Dina, mulher desse homem simplório, foi convidada para a inauguração do campo de aviação, construído pelo pai do professor Paulo, oportunidade em que um avião pousou e decolou. Perguntada sobre o que achara da operação aeronáutica, disse que não achara vantagem alguma, pois o avião descera e subira inteiriço, sem bater as asas. Sem dúvida, essa mulher simples tinha um olhar de poeta, e viu o aeroplano como uma grande ave metálica e de asas duras. Novamente, gargalhamos a valer.

Na conversa, o professor Fonseca Neto nos contou que ontem, domingo, em Parnaíba, o secretário estadual da Educação, Antônio José Medeiros, disse para o ex-ministro José Dirceu que em 1979 o presidente Lula estivera naquela cidade, em sua luta para criação do Partido dos Trabalhadores, hóspede do Reginaldo Costa, que juntamente com Franzé Ribeiro, fundara o combativo jornal Inovação, de que fizemos parte Canindé Correia, Vicente de Paula (o Potência), Bernardo Silva, Danilo Melo, Mário Carvalho, João Maria Madeira Basto, Jonas Carvalho, Ednólia Fontenele, este escriba e vários outros intelectuais. Aliás, foi o grupo desse jornal, mormente o Reginaldo e o Canindé, que organizou o comício, realizado no bairro Guarita, na carroceria de um caminhão, no qual discursei, na qualidade de presidente do Diretório Acadêmico “3 de Março”, Campus Ministro Reis Velloso, Universidade Federal do Piauí. Naqueles idos, tirar fotografia não tinha a facilidade oferecida pelas máquinas digitais de hoje, cujas imagens logo podem ser transmitidas pela internet e até mesmo por telefone celular. Por esse motivo e também porque não soubemos adivinhar que o Lula, um torneiro mecânico, iria chegar à presidência da República, não registramos o comício em fotografia. Assim também não ficou registrada fotograficamente a minha participação no grande comício do retorno de Chagas Rodrigues ao Piauí e à política, após dez anos de ausência no Distrito Federal, que acontecera um pouco antes, no coreto da bela Praça da Graça, onde morei por vários anos. Fui convidado igualmente pelo fato de ser o presidente do diretório acadêmico, pois nunca fui filiado a nenhum partido político, porquanto sempre achei que um poeta não deveria pertencer a nenhuma agremiação política, devendo ser um franco atirador, a fustigar as mazelas da sociedade e da política, sem tomar partido de nenhum partido, para fazer um trocadilho cretino. Contou-nos Fonseca Neto que o Lula visitou oito cidades nessa viagem ao Piauí, e que pernoitou, numa dessas visitas, em Campo Maior. Por essa razão, ele foi, juntamente com o Antônio José Medeiros e Altino Dantas, vereador de São Paulo, buscá-lo nessa cidade, para ele embarcar no aeroporto de Teresina, de volta à paulicéia. Quando o fusquinha estava a 20 quilômetros de Teresina, já se aproximando do posto da Polícia Rodoviária Federal, um dos pneus estourou, terminando o veículo por fazer o chamado “cavalo de pau”, ao girar sobre si mesmo. Lula se propôs a trocá-lo e foi retirar o estepe. Lamentavelmente, para surpresa dos passageiros, o pneu estava vazio. Mas o professor Fonseca Neto foi reconhecido por um seu aluno, que ia passando, e deu carona ao Lula. Ironicamente, esse aluno foi repreendido severamente por seu pai, por ter dado carona a um estranho. Um estranho que hoje é o presidente da República Federativa do Brasil.