quinta-feira, 15 de junho de 2023

O sanfoneiro Beja dos Canjicas

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O sanfoneiro Beja dos Canjicas


Pádua Marques

Cronista, contista e romancista


Era coisa de todo ano, no dia que na nossa escola se comemorava o São João, a gente já vendo mais um pouco as férias de julho lá mais na frente, ele ser recebido e reverenciado como um rei. Traziam pra ele a melhor cadeira, era servido refresco, um bolo, as gentilezas das professoras e da diretora. Dias antes alguém da secretaria passava na sua casa pra tratar sobre sua vinda pra tocar na nossa festa de quadrilha.

Beja. O nome de batismo devia ser Benjamin. Mas era nesse diminutivo pelo qual era conhecido aquele homem de estatura baixa, olhos claros e de pouca fala. Talvez fosse essa mania de todo sanfoneiro. Por ocupação ele era motorista do Senai, era tio da Bernadete, da Elizabeth, do Toinho Pitanga, da Ana Maria e de outros que não lembro agora. Mas Beja dos Canjicas, da família Procópio, na rua Tabajara, tocava sanfona como ninguém. 

Naquele dia era especial quando ele estava ali sentado abrindo e fechando o fole de sua sanfona e o som alegre e conhecido invadindo o coração e o sorriso dos meninos e meninas, as salas de aulas. O pátio de recreio e a cozinha onde estavam dona Preta e dona Inês, as duas zeladoras e merendeiras, ficava infestados de São João. Tudo era festa e admiração quando Beja puxava uma música conhecida. 

Aquele homem extraordinário, que era vizinho da nossa escola, ali no outro lado da rua, que nunca fui de prestar atenção se ele tinha filhos e se algum deles aprendeu a tocar igual ao pai com aquele silêncio interior, o sestro de fechar os olhos e deixar que os dedos achassem as teclas pretas.

E os meninos iam pra perto, olhando e se admirando dele. Da rapidez com que passava de uma música pra outra, silencioso, de pouco prestar atenção em quem estaria por perto. E quando acabava seu serviço ali mesmo, todos nós ficávamos um pouco tristes com a volta daquele silêncio de sala de aula, uma voz mais alta de professora aqui e outra ali. Ninguém queria mais nem voltar pra sala de aula no bom e hoje quase sexagenário Grupo Escolar Epaminondas Castelo Branco. 

Um dia, já passados muitos anos e eu já adulto e tendo corrido e ganhado o mundo, fiquei sabendo que seu Beja dos Canjicas havia morrido. Aquilo dito por parentes e conhecidos, antigos colegas de grupo escolar, de vizinhos, me deixou um vazio grande, do tamanho de uma música interpretada por Luiz Gonzaga na letra magnífica de Patativa de Assaré, a maior, mais triste e ao mesmo tempo mais solene sobre os nordestinos, Triste Partida.

(Texto extraído do livro O Menino, de Pádua Marques) 

quarta-feira, 14 de junho de 2023

DUAS TIRADAS DE A. TITO FILHO

 

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DUAS TIRADAS DE A. TITO FILHO


Elmar Carvalho


Pelos misteriosos mecanismos da memória, a lembrança de A. Tito Filho me acudiu hoje com muita insistência. Tinha com ele certa amizade, e ele me tinha consideração e respeito intelectual. Tanto que, espontaneamente, me pediu organizasse um livro para ele publicar. Entreguei-lhe o A Rosa dos Ventos Gerais, no início dos anos 1990, mas com a sua morte, em 1992, não pôde cumprir a promessa.

Falei desse caso ao professor M. Paulo Nunes, que assumira a presidência da APL, e ele submeteu o calhamaço ao Conselho Editorial da entidade, e, sob a relatoria do professor Wilson Andrade Brandão, a publicação foi aprovada e o livro terminou vindo a lume através da Editora da UFPI. Depois, esse livro foi reeditado com a supressão do artigo definido de seu título.

Certa feita, encontrei A. Tito Filho perto dos elevadores do prédio da Delegacia do Ministério da Fazenda. Aproveitei para lhe perguntar sobre o modismo, que então começava, de não mais se chamar mulher de poetisa, mas de poeta. Ele disse não concordar com isso, e respondeu-me que, da mesma forma, se fosse para se seguir essas "novidades", não deveria existir a palavra mulher, mas “a homem”, nem princesa, porém “a príncipe”.

Não foram exatamente essas as palavras, mas algo semelhante, no mesmo sentido. Isso foi dito com a sua saudável e bem-humorada ironia. Eu também não entendia essa mudança gramatical, contudo, para não ser tachado de antiquado e nem de machista, assimilei essa espécie de neologismo, vamos dizer assim.

Noutra ocasião, estava eu na Academia, que já frequentava com relativa assiduidade, quando um intelectual, algo ingenuamente, perguntou ao mestre se a pronúncia de determinada palavra deveria ser "naiscimento" ou nascimento. O velho professor lhe respondeu com outra pergunta: - Fulano, existe um i entre o a e o s? O outro lhe respondeu, como não poderia ser diferente, que não. A. Tito Filho, incontinenti, arrematou: - Então, Fulano, a pronúncia é nascimento.

A. Tito Filho, entre seus pares, foi o primeiro a me acenar com a imortalidade acadêmica. Certamente nesse aceno falou mais forte o seu coração generoso e a sua amizade, no intuito de estimular um ainda jovem poeta.

19 de maio de 2010    

domingo, 11 de junho de 2023

REALIDADE FANTÁSTICA

 

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Arte: Elmara Cristina



REALIDADE FANTÁSTICA


Elmar Carvalho

 

Velhas borboletas empoeiradas

saídas do fundo dos baús.

Velhas borboletas obsoletas

              e de

              asas

enferrujadas querendo

aprender de novo a arte de

     bor-    bor-       bor-

  bo-    bo-      bo-

       le-      le-         le-

   to-      to-                to-

        a-          a-               a-

                vo-      vo-           vo-

ar.                  ar.                      ar.

              Lâmpadas

votivas destroçadas, estrelas

cadentes geladas, luzes

apagadas pelos inimigos da

          claridade.

Antigos

            alfarrábios cheios

            de traças e cupins

            com as amareladas

            páginas dissecadas

reescritos.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Paçoca de gergelim

 


Paçoca de gergelim

 

Pádua Marques

Romancista, contista e contista

 

Nestes dias de junho, cheios de alegria por tudo quanto é canto por causa dos festejos de Santo Antônio, São João e São Pedro, me ocorre lembrar de uma comida que até hoje ainda me causa contentamento e saudade, a paçoca de gergelim. Na nossa casa era coisa de uma vez por outra minha mãe fazia com aquele capricho. Ninguém até hoje fez uma igual, bem pilada e fininha.

Minha mãe tinha uma paciência e uma resignação que até hoje me impressionam. Fosse na cozinha ou fazendo algum trabalho de costura de roupas, ao lavar as panelas e os pratos, lá estava ela de cabeça baixa e concentrada, de pouco falar com quem quer que fosse naquela hora. E era assim que minha mãe fazia a paçoca de gergelim, aguardada pelos meninos e meninas ali em volta da mesa grande de quase dois metros, hoje com mais de noventa anos.

Em nossa casa tinha um pilão, que a mamãe dizia e repetia ser ainda do tempo de minha avó. Tinha esse pilão pouco mais, se muito, de um metro, feito de madeira robusta, duas bocas e de cintura fina. Era um pilão que ficava sempre de pé. A mão dele era quase da mesma altura, com aquelas duas partes mais grossas que o meio do corpo. E minha mãe, depois de torrar numa panela de ferro o gergelim misturado com farinha branca e uma pitada de sal e açúcar, se punha a pilar com aquela cadência e uma paciência que só ela sabia ter.

Minha mãe sabia mais que ninguém pilar gergelim, milho pra aluá, arroz, farinha branca pra um caldo, fosse o que fosse. Às vezes quando havia necessidade, dava esse trabalho pra algum de nós meninos ou meninas, os maiores e já com sustança nos braços. E ficava ali por perto olhando se a paçoca estava no ponto.

Pouco tempo, não mais que alguns minutos, aquela farinha ia mudando de cor. E algum menino sempre ficava com vontade de meter a mão pra provar aquela farinha, assim num quase marrom, avermelhada. Paçoca de gergelim não era necessariamente comida dos tempos de São João. Mas era quase sempre feita naquele tempo. E servia e muito pra o café das três ou da noite. Depois de pronta e provada por minha mãe, a paçoca ia sendo distribuída a cada um de nós numa tigela.

Mas o gergelim não era apenas pra fazer paçoca. Era santo remédio, segundo minha mãe, pra curar gripes fortes porque, pisado no pilão e tirado o leite, era um expectorante, como hoje se diz. Curava catarro nos peitos e dava alívio quando a gente tossia.

E depois de beber aquele leite de gergelim sem açúcar lá íamos nós os de meninos gripados procurar os fundos de uma rede, se aquietar. Mas a gente gostava mesmo era da paçoca. Aquele gosto bom de, nem salgado e nem doce. Pra tomar com café era uma beleza!   

Depois o pilão voltava pra seu lugar na cozinha, o canto da parede, perto dos dois potes de barro, os dois ali silenciosos com aquelas tampas de folhas de Flandres pintadas de azul com flores brancas ou amarelas, compradas há muito tempo no Mercado da Coronel Jonas.

Esse pilão ficou até muitos anos em nossa casa. Até que por falta de uso, às vezes de ano em ano pra pilar o milho de nosso aluá de todos os meses de junho, o cupim foi comendo aos poucos até não servir mais, ficou velho igual aos homens. Virou um pilão velho coberto de poeira. Ninguém ligou mais pra ele, ninguém mais se lembrou dele ou tratou de perguntar se estava bem de saúde. A mão de pilão, essa durou mais tempo. Mas ficou a recordação da paçoca boa de gergelim, fininha, de cor rosada, grudando no céu da boca.

(Extraída do livro O Menino, de Pádua Marques) 

terça-feira, 6 de junho de 2023

ENTREVISTA COM AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA

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ENTREVISTA COM AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA

 

Entrevista com Affonso Romano de Sant’Anna, publicada no Jornal O ESTADO – Teresina, nos dias 27/2/1978 e 5/3/1978, concedida aos professores Carlos Evandro Martins Eulálio, José Reis Pereira e à Jornalista Glória Sandes, no Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí, em 22 de fevereiro de 1978. 

CARLOS EVANDROO que se passou mesmo com a poesia brasileira a partir de 1950?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: A meu ver foi o seguinte: de 1956 a 1958, as coisas estão muito definidas: Concretismo em 1956, Neoconcretismo em 1958, tinha o Grupo Tendência de Minas em 1957, tinha Praxis em 1962, Violão de Rua, o Poema Processo em 1967 e, em 1968, o Tropicalismo. Eram grupos que vieram se revezando. Mas houve um fenômeno: como o Concretismo dissolveu a palavra e transformou a palavra em sílabas, começou a valorizar a letra, começou a valorizar o poema cartaz, no aspecto visual, e, depois, mais tarde, o poema processo acabou com a palavra e passou a fazer arte semiótica pura. A poesia chegou a um impasse, um beco sem saída, primeiro com a exaustão estética. E chegou a um ponto que os concretos nos manifestos davam por encerrado o ciclo histórico do verso. Eles acabaram com o verso. Veio o poema-processo e acabou com a palavra. De repente, a poesia ficou num beco sem saída. E aconteceu que o silêncio que a poesia se impôs se confundiu com silêncio imposto ao País e, em 1965, surgiu, com uma violência bastante notável, a música popular, que recuperou o silêncio que se havia imposto à palavra, através de Chico, do Caetano, de Vandré, e toda essa geração. A palavra deles passou a preencher o vazio que a poesia não estava preenchendo, inclusive de vanguarda, por ser uma poesia muito de elite, e havia a carência do povo brasileiro por palavra, porque não havia mais o discurso do político. A música popular passou a ser um grande discurso nacional, daí uma série de festivais de canções. Em qualquer sindicato, escolinha, tinha festival da canção, entre 1965 e 1968, por aí. A poesia brasileira entrou numa espécie de recesso e a música ocupou um espaço que era o próprio espaço da poesia literária, razão pela qual o Chico, Caetano, o pessoal todo passou a ser estudado dentro dos colégios e faculdades como autores. Primeiro, o texto deles dizia alguma coisa, segundo é que eles estavam fazendo um texto mais sofisticado. O Caetano foi aprender com os Concretistas poesia de vanguarda; o Chico é filho de um modernista de 1922, que é Sergio Buarque, que fez uns textos mais sofisticados, e assim por diante. Esse período da música popular, a meu ver, durou até 1973. Em 1973, as coisas mudaram. Há dois sintomas para isso dos quais eu participei. Houve uma exposição na PUC, no Rio, chamado Expoesia, que significava exposição de poesia (...) nessa exposição participaram 600 poetas e tinham uns 3 mil poemas mais ou menos, e aceitei que se inscrevessem todas as pessoas que chegassem com uma coisa lá que se chamasse de poesia. Não se estava discutindo mais o conceito de poesia, porque o Concretismo tinha dito que poesia era uma coisa, Práxis outra, Violão de Rua dizia que era outra. Todo mundo sabia o que era poesia e ninguém chegava a um acordo. Então resolvi fazer uma exposição onde todo mundo chegasse lá e expusesse o que achava que era poesia. Houve, inclusive, uma sala reservada para o Neoconcretismo, para Práxis, todo movimento tinha uma sala, porque era uma espécie de retrospectiva. Só não participou o grupo concreto de São Paulo. Mandei uma carta e eles responderam que não participavam de reunião eclético-caritativa. Eu estava dando oportunidade aos outros grupos de se manifestarem e eles eram contra isso, e ainda afirmaram, na carta, que poesia era, ou não era, quer dizer era Concreta ou não era. Mas a exposição Concreta foi substituída por uma exposição de poesia concreta alemã que estava sendo exibida no Rio, na ocasião – magnífica exposição, com trabalhos de primeira qualidade. Ao lado desses movimentos tradicionais, apareceram dezenas de grupos totalmente desconhecidos, e os poetas que depois se chamariam marginais, dessa antologia de Heloísa Buarque de Holanda, “26 Poetas Hoje”. Então, o que essa Expoesia mostrou, e também foi mostrado no Jornal de Poesias, que eu editei em 1973, no Jornal do Brasil (...) é que era hora da abertura e isso inclusive em termos políticos (...). Eu também achei que o poeta estilisticamente tinha que requerer liberdade primeiro dentro da própria literatura, ao invés de falar liberdade lá fora e ficar sob pressão de um grupo determinado, sob opressão de uma estética. E, de lá pra cá, houve uma liberação, uma volta à palavra que tinha “acabado”. Foi reachada a obra, descobriu-se o encanto da palavra de uma maneira até caótica, muitas vezes, meio passadista, neorromântica, mas não tem importância: o universo deve ser refeito sempre com a força que as pessoas têm,

JOSÉ REIS: O brasileiro consome poesia?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: - O que é publicado hoje em poesia vende. Tem um livrário de poesia incrível no Brasil. No Rio e São Paulo têm dezenas de revistinhas e livrinhos mal feitos, porque o poeta descobriu um outro veículo fora do convencional. Ao invés de procurar o editor e sofrer humilhação com editora e tal, ele prefere editar a coisa batida à máquina em papel pobre, e as pessoas passaram a comprar o livro e dar de presente. O livro passou a circular para três, quatro ou cinco pessoas. Eu já me encontrei com diversos poetas que estão vivendo de poesias. O sujeito já vendeu 10 mil exemplares do livro dele porque, como fez uma edição mais barata, pode vender a 10,00. Se fosse fazer uma edição editorial teria que pagar o livreiro, o editor e o distribuidor. Você sabe que o distribuidor ganha 50%, livreiro 20% e o editor 10%. O autor ganha 10%, só. Então, se você edita e vende, recupera seu dinheiro.

GLÓRIA SANDES: Os poetas não-vanguardistas, ou melhor, os tradicionais teriam alguma contribuição a dar à poesia? 

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: A minha visão de literatura é muito democrática, eu acho que tudo cabe dentro da história da literatura. Uns dos meus problemas com a vanguarda é que ela sugere uma história da literatura onde só entram vanguardistas. Não, todo mundo faz parte da história, inclusive as pessoas que não querem fazem parte contra a vontade. O poeta que está fazendo trova, cordel, soneto, pertence à Literatura (...). Num ensaio que publiquei nesse livro, que se chama “Por um conceito de literatura Brasileira”, quero exatamente chamar a atenção para isto, de que é necessário estudar a literatura de massa. No Rio, tem um poeta chamado Neimar de Barros, que publicou um livro chamado “O Deus Negro”. Sabe quantos livros ele já vendeu? 700 mil exemplares. Tem um problema aí que eu acho que é de ordem sociológica, mas é também de ordem estética, considerando que, dentro da dialética, a quantidade e a qualidade estão relacionadas. O estudante e o escritor não podem não tomar conhecimento de que tem um poeta que está vendendo 700 mil exemplares. Tem que prestar atenção nisso, saber porque ele está vendendo e eu não estou vendendo.

GLÓRIA SANDES: - Não é o problema do “esquemão”?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Tem um mistério nisso. Eu sou a favor de um ensino de literatura onde estes problemas sejam considerados.

JOSÉ REIS: - Como você vê o piauiense Mário Faustino, o que ele deixou como poeta e como crítico, qual sua influência?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: A influência dele foi muito grande, na década de 1950 para 1960, tanto como crítico no Jornal do Brasil. Aliás mais como crítico do que como poeta. A poesia dele eu acho uma poesia boa, mas um pouco conservadora ainda. Ele, talvez, por ter morrido cedo, não desenvolveu a poesia mais pessoal. Quer dizer, vejo muito, ainda, Ezra Pound atrás da poesia dele. Vejo muito a leitura que ele fazia de poesia atrás dessa poesia. Uma poesia que inclusive não é vanguardista no sentido das vanguardas da época. Ele queria ser um crítico de vanguarda, mas a poesia dele não era vanguardista: era discursiva, metafórica, palavrosa etc. Acho que a contribuição histórica dele é importante. Ele tinha uns “insights” algumas dicas que ele dava que eram muito importantes.

JOSÉ REIS: Em um dos livros que você está escrevendo, uma antologia, é verdade que vai incluir Mário Faustino?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Exato. É uma série que nós vamos fazer pela Sumus Editorial, tentando publicar os poetas que de 1950 prá cá deram alguma contribuição.

GLÓRIA SANDES: Torquato Neto entra nessa lista?

AFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Não. Torquato Neto não chega a ser um poeta importante dentro da Literatura Brasileira. Ele era um letrista bastante hábil. Ele se beneficiou bastante do contato que teve com os concretistas em São Paulo, mas não chegou a produzir uma obra, desapareceu antes. O que existe é o culto a Torquato Neto. Este é outro assunto, pertence à Sociologia da Música Popular.

GLÓRIA SANDES: No Rio ele é muito cultuado?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: É. Por alguns grupos. Mas acho que isso pertence a uma área contígua. Pelo fato dele ter morrido numa situação trágica e ter se transformado num símbolo – ele se transformou em elemento sacrificial, sacrificado de uma geração, como sucedeu com a música popular americana, com Jane Joplin e outros. Ele era um indivíduo muito hábil. Poderia ter desenvolvido uma obra, mas infelizmente isso não foi possível.

GLÓRIA SANDES: Qual sua opinião sobre a Navilouca, de Torquato Neto?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Aquela revista é curiosa, mas não é tão inovadora quando se pensa. Isso é outra coisa que precisa ser esclarecida. Tem outro poeta, ligado mais ou menos ao poema processo, Sebastião Nunes, que fez umas coisas dez anos antes da Navilouca, e naquela linha, muito mais rigorosa, mais importantes e mais bonitas. Inclusive mostrei neste curso uma coisa dele: um livro que vinha dentro de um envelope chamado Finis Ópera. São folhas soltas. Ele é artista plástico-visual. Pois toda aquela ideia que aparece na Navilouca, da arte suja, da arte sórdida, da coisa meio marginal, isto tudo já estava sendo feito por grupos anteriores. Posso falar inclusive uma coisa meio dura sobre ela e revistas semelhantes. Não sei se isso vai servir para alguém. Mas acho que certas verdades se tem que ir dizendo. A Navilouca é uma diluição dos cacoetes concretistas misturada com a Arte Povera, um movimento artístico italiano que no Brasil foi representado por cinema de lixo, por coisas semelhantes. Então aquele mau-gosto intencional que tem na revista não chega a ser uma inovação. Foi uma maneira dos concretos de São Paulo, que politicamente são muito hábeis, de continuarem a manter o controle sobre alguns jovens poetas que estavam surgindo. Tanto é que surgiram mais umas cinco a seis revistinhas semelhantes à Navilouca. Eles lançam uma revista e depois outra semelhante com outro nome etc., mas o projeto deles continua se repetindo.

GLÓRIA SANDES: Você acha que no Brasil a gente continua a fazer uma arte, uma literatura colonial, que sempre nos coloca como colonizados culturalmente? Muitas vezes a gente se espanta com o pessoal que a gente acha genial, por exemplo, no caso da revista Graphis: Muita coisa que se faz aqui está lá...

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: É. O Brasil sofre de uma coisa que alguns sociólogos de São Paulo chamaram de política da dependência cultural. O Fernando Henrique Cardoso, principalmente, defende essa tese de que somos um país de terceiro mundo, dependente, culturalmente do que se faz em Nova Iorque, Londres e Paris (...) Mas em todo lugar que você vai, no mundo, as pessoas estão se queixando que são dependentes das outras, porque hoje todo mundo é dependente de todo mundo.

CARLOS EVANDRO: Até que ponto você considera a literatura brasileira de vanguarda original, de característica genuinamente brasileira?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Eu não sei se me preocupo muito com esse negócio. O problema é o seguinte: não existe nada totalmente original. Você pega os concretistas, que tinham a pretensão de exportar poesia: a gestação do concretismo é toda estrangeira. Você pega Joyce, Mallarmé, Pound, os poetas japoneses, todo o paideuma concretista é estrangeiro. Você pensa: que milagre engraçado, de repente, eles leram 30 autores estrangeiros e produzem uma poesia brasileira! ... Até que ponto essa poesia é brasileira?  (...) É como a Bossa Nova. Até que ponto é brasileira? Ela é jazz e muitas outras coisas. Então o negócio nacional acho muito complicado. Por exemplo: algumas pessoas acusam os estruturalistas brasileiros de serem cópias de estruturalistas franceses... passaram um tempo lendo os filósofos alemães Hegel, Marx, Freud, Heiddeger são os que influenciaram os franceses. Por outro lado, esses pensadores para chegarem às conclusões deles andaram lendo os franceses e ingleses anteriores (...).

GLÓRIA SANDES: A pergunta me parece que foi mais no sentido de um caminho próprio da literatura brasileira de vanguarda, assim como se exige do bom poeta que siga o seu caminho (...)

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Num poeta como o João Cabral, você detecta influência de Drummond, depois de Valery, claramente. Mas o Cabral achou o caminho dele. Não quer dizer que ele não tenha influência. Porque todo mundo tem. Ele achou qual a sintaxe, a linguagem dele, uma linguagem pessoal.

CARLOS EVANDRO: E no caso Affonso Romano de Sant’Anna, quais seriam as reminiscências projetadas na obra?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Minha primeira poesia, de Canto e Palavra, acho que tem alguma coisa, muito longe, de Drummond. Já esse livro mais recente, o Poesia sobre Poesia, a primeira parte, considera-se bastante original, na medida em que tento uma poesia que mistura ensaio e poesia; poesia com nota de pé de página, despreocupada de uma série de quesitos que interessavam à vanguarda. Nesse sentido, acho que ela é original, porque corresponde a um problema meu específico, quer dizer, eu como professor (que teve que teorizar e saber tudo) e como poeta (que se quiser teorizar e saber tudo está liquidado. Ele tem que trabalhar muito com o inconsciente dele). Então é uma solução muito biográfica, muito pessoal, por isso acho que é mais original.

JOSÉ REIS: Afonso, fazer literatura e poesia se aprende ou a pessoa “já nasce poeta etc. literata”? Se se aprende, que caminhos deve seguir?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Acho que tem um certo aprendizado. Tanto é que nos Estados Unidos existem algumas escolas. Frequentei, durante nove meses, um curso desses lá. Era um curso internacional de escritores. No curso doméstico (deles) eu frequentei o internacional. Tinha aula de tradução, aula para aprender a escrever romance, poesia, tudo. E, na conclusão de seu curso, você ia fazer prova, traduzia, entregava um romance, epopeias, sei lá, um poema, um negócio concreto. No Brasil, começamos a fazer experiência semelhante. Na PUC mesmo fizemos várias vezes o curso de Criação Literária, convocando o aluno de Letras para escrever o texto dele, que é o contrário do que acontece, porque, nos cursos de arte, o sujeito está lá desenhando, nos cursos de música, por exemplo, o sujeito aprende a tocar piano. E no curso de letras o sujeito fica estudando o texto do outro. Então isto é um erro. Ele tem que produzir o texto dele.

CARLOS EVANDRO: A Universidade do Piauí começou recentemente um movimento assim, chamado de Carpintaria Linguística.

JOSÉ REIS: Utilizando o título de Autran Dourado. Estou juntando Autran Dourado com Mário Faustino, porque o Autran Dourado fala de Matéria de Carpintaria, e o Mário Faustino tem um texto sobre Diálogos de Oficina, nesse sentido de que o fazer literário é uma oficina.

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Isso acho fundamental. Porque certas coisas você aprende sozinho mesmo, com muito sacrifício. Mas tem uma série de macetes, uma técnica que você pode aprender com outra pessoa. Lembro que li, quando tinha uns 16 ou 17 anos, um livro chamado “A Arte de escrever” (...) Acho que talvez tenha sido isso que me forçou a começar a escrever, me ajudou bastante. Descobri que o texto era um negócio dinâmico, rico.

GLÓRIA SANDES: Agora uma perguntinha do balão. Como você vê a proliferação de formas sintéticas do conto. Não prejudicaria o surgimento de escritores “de fôlego?”

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Não. As pessoas, aliás, estão escrevendo cada vez livros maiores. É porque tem mais gente escrevendo hoje. Tem um romancista paulista, pouco conhecido, que elogiei muito na Veja. Evelson Soares Pinto. Escreveu um livro de 800 páginas em corpo 8, chamado “A Crônica de Valente Parentino”. Um livro ótimo. 

GLÓRIA SANDES: O que acha, particularmente, dos minicontos?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Gosto. Gosto muito, principalmente dos de minha mulher, a Marina Colassanti. Ela tem um livro chamado Zoológico, que é de minicontos surrealistas sobre animais. E está terminando um agora.

GLÓRIA SANDES: Quem, no Brasil, é melhor no romance, na poesia e no conto?

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Tem que entrar muita gente, porque depende das gerações. Por exemplo, na faixa do modernismo, realmente o Drummond é, disparado, o melhor. Acho o Drummond o maior poeta do século. Esses poetas como o Mário Chamie e os Concretos têm um controle do verso muito grande. Quando querem fazer verso, fazem com muita habilidade, escrevem muito bem (...). Você pode é não gostar do texto deles, mas que o sujeito sabe o que está fazendo, sabe. De poesia, se você quer nomes, de gente que eu gosto, de gente nova, tem a poetisa mineira chamada Adélia Prado, que pra mim é a maior revelação de poesia no Brasil ultimamente. Tem um livro chamado Bagagem e está lançando outro pela Nova Fronteira, um de que estou fazendo a introdução. (...) Tem alguns poetas da geração marginal que eu gosto, que estão naquela antologia dos 26 poetas da Heloísa. O Antonio Carlos de Brito tem umas coisas boas. Chico Alvim, gosto de umas coisas dele; e outros. Em poesia tem outros, o Domingos Pellegrini.  Esse menino que ganhou o prêmio da Remington, em Minas. (...) Na ficção, por exemplo, gosto muito do Rubem Fonseca. Acho excelente; Inácio Loyola acho mais ou menos, o João Antônio acho bom escritor, mas faz um gênero que não gosto. O Moacyr Scliar? Ele sabe fazer as coisas, mas o texto não me diz, é um negócio emocional. O J. Veiga? Muito bom. O Autran é muito bom. A Nélida Piñon, por exemplo, é uma escritora muito difícil de se ler, mas muito boa. O Osman Lins? Gosto. É difícil também de ser lido. Assis Brasil? Acho muito desigual. Tem um romance “Beira Rio Beira Vida” que acho fraquíssimo. Já um outro, que cheguei a criticar na Veja, “Rebelião dos Órfãos”, tem umas coisas muito boas. É uma coisa curiosa, o Assis Brasil participou dessas coisas de vanguarda, mas o texto dele é meio conservador em certas coisas. (...).

GLÓRIA SANDES: Por que os poetas jovens estão se identificando muito com Fernando Pessoa? Mesmo os que não leem gostam...

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: (...) Ele se tornou mais influente porque era místico, exotérico, e com a onda hippie no mundo inteiro, macrobiótica, zen, essas coisas todas, ele entrou em circulação. Porque não é um poeta racional. É muito emotivo, aquela coisa que jorra muito. É uma leitura, um discurso mais fácil. Então capta mais o jovem.

GLÓRIA SANDES: E Da Costa e Silva, o que dá o nome daquela praça?

CARLOS EVANDRO: Afrânio Coutinho diz que ele teria motivado as aspirações de poéticas de Abgar Renaut, Drummond de Andrade...

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Ele é bastante conhecido nessa faixa da passagem para o modernismo, pré-modernista. Tinha um certo prestígio. Tinha inclusive uns poemas que são assim formalmente meio ousados. Mas aquilo era mais ou menos moda na época. O Hermes Fontes, a Gilka Machado, Martins Fontes, todos eles tinham assim certa invenção pré-modernista.

domingo, 4 de junho de 2023

Elmar Carvalho é entrevistado por Marcelo Magno na Clube News


O POETA E SEU LABIRINTO...

 

Fonte: Google



O POETA E SEU LABIRINTO...

Opúsculo de Elmar Carvalho

 

Wilton Porto

 

Como eu, Elmar Carvalho, foi lapidado na era do chumbo grosso, ferino, mortal, de quando os militares "subiram" ao poder do governo do Brasil e permaneceram por 21 anos.

Escritores em geral, cantores, artistas plásticos...

Todos éramos perseguidos de alguma forma.

Vivíamos num "labirinto", acuados, como se Minotauros perseguissem e se aproveitassem dos jovens.

Os Teseus estavam prontos para tirar do meio social quem se atrevesse a andar fora da cartilha: o AI5, terror dos terrores.

O título deste livro, com certeza, é o Poeta, que se via, e via tantos companheiros presos, amordaçados.

O eu-lírico, já na abertura do livro, na primeira estrofe, bem o esclarece:

 

"Perdido e cego caminhaste pelos labirintos,

teseu e minotauro de teu próprio destino,

nos confrontos que travaste com teu ego".

 

Quando o Poeta Elmar surgiu como pedra preciosa da literatura piauiense, imperava no nosso  país a literatura "marginal ou mimeografada". Isto em 1970, como forma de driblar o arrocho militar.

Tabloides e poesias, artes em geral, inclusive quadrinhos e cinema usaram deste meio de se expressar.

Através do Jornal Inovação, usamos muito deste meio.

Assim, Elmar foi mostrando seu talento de várias maneiras.

Na poesia "Autobiografia Zodiacal", o Poeta se diz multiplicador de ideias, quando em todos os signos, ele se enquadra. E dentro de cada signo, o lado mais forte: "Coração como Touro indomável". "Fúria de Leão".

E neste poema, o traço concretista.

Conclui de forma contundente:

"Armado de arco e flecha (a flecha é uma cauda de Escorpião)".

Esta(s) estrofe(s) em forma de flecha.

 

No poema EM TRANSE o eu-poético bem nos envolve nos acontecimentos da época do medo:

"eu vi o caos

do nada.

Perdido no

tempo parado

e no espaço desfeito (...)

Vi sangues azuis,

cobras multicores

lagartas de fogo" (...).

 

Nesta poesia, notamos que o poeta descreve de forma simbólica, o destroço em que estávamos atolados.

A geração marginal surgiu em 1970. Neste período, os intelectuais seguiam o pensamento de Leminski:

 

Leminski, um dos grandes representantes dessa geração, define o termo marginal:

 

“Marginal é quem escreve à margem,

deixando branca a página

para que a paisagem passe

e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,

sem nunca saber direito

quem veio primeiro,

o ovo ou a galinha”.

 

No poema

AMOR CONCRETO

Elmar mais uma vez se vale do concretismo, por onde Leminski fez morada:

 

“no vór-

                   ti-

      ce voraz

dos abrasados amantes abraçados

o amor se faz (...)

   ver      tiginoso

   vér      ti

         ce

inver      tido.”

 

Elmar ama o simbolismo com suas assonâncias, aliterações e jogos de palavras.

 

"recendente de maresia

que me

leva/lava/lavra

como se eu fora um

fruto do mar.

(Poema Paisagem Marinha).

 

No poema

"Mulheres na Lagoa do Portinho"

parece que o eu-poético estava em sintonia com Cruz e Sousa, no ativar as assonâncias.

 

"Esmeradas esmeriladas esmeraldas -

da mulher bonita

de sinuosas dunas e viagens

furta-cores furtaram

outros tons e sobretons".

 

O Poeta Elmar

sintoniza perfeitamente com a poesia contemporânea. No entanto, possui uma verve aguçada no romantismo não piegas, e não se intimida, caso queira pegar o trem do épico de Camões.

É eclético e se preciso, se multiplica como Fernando Pessoa.

Elmar possui a veia briosa da sonoridade. Sua poesia é pura música aos nossos ouvidos.

Ele é capaz de numa poesia erótica, levantar a mais escrota das críticas.

 

No poema

Autobiografia, página

22-23

ele é religioso e crítico.

 

"Subi montes, rompi charcos,

atravessei grutas sem luz,

com os ombros esmagados

ao peso da férrea cruz (...).

Sofri e cantei perdido nos lupanares.

Em dias de sol escaldante e incandescente

fui casto Dante

e Baudelaire delirante e indecente,

pelas tardes mornas de ressacas e orgias (...).

E nos palácios dourados de Mefisto,

no meio de mentira e desengano,

fui Satã,

fui Cristo,

fui Humano".

 

O Poeta Elmar Carvalho, tão conhecido pela grandeza da cultura e das poesias iluminadas, trabalhadas como artesão.

Em tudo que escreve se percebe o mítico, o místico, o nada misógino.

 

Elmar é um Poeta em tom maior.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

O Cassino Esperantino




O Cassino Esperantino


 *Fabrício Carvalho Amorim Leite

 

O Cassino Esperantino, instalado no Retiro da Boa Esperança, era de uma graça peculiar. O edifício barroco, de um tom violeta vibrante, era opulento. Com suas largas portas de cedro que se abriam para um piso de pau-d’arco acetinado. Colunas internas em forma de arcos davam a impressão de sua luxuosidade. Do alto, via-se as sacadas belas e panorâmicas para a igreja.

 

No centro da cidade, a igreja e o cassino ficavam lado a lado, simbolizando o dualismo entre a fé cristã e o impulso hedonista que caracterizava o Retiro da Boa Esperança.

 

Dentro do Esperantino, era comum escutar os ruídos das moedas caindo sobre as mesas murmurantes, a música doce misturada com o baralhar das cartas, e o cheiro dominante de cigarro, Scotch e da fragrância francesa. Apesar do cenário mundial carregado pela guerra, a indulgência pela diversão reinava.

 

E os mais ricos divertiam-se no templo pagão após receberem a benção do septuagenário Padre AmaDeus, um contrário ao cassino e falso moralista. Discretamente, contava-se que o velho padre possuía inclinação para flertes, dentre outros desvios ao direito canônico.

 

- É um monumento à perversão. – Pregava o clérigo em suas ladainhas, sob o olhar desconfiado do prefeito, do juiz, o sacristão e os outros fregueses do Esperantino.

 

Apesar disso, Antônio Severino, o garçom, com seu paletó social branco e corpo franzino, tinha orgulho de seu trabalho no local. Enquanto recebia o salário e gorjetas em cruzeiros, os “homens encourados” da zona rural eram pagos “por ‘sorte’, ou seja, de quatro bezerros ou crias nascidas de caprinos, bovinos ou suínos, um pertencia ao vaqueiro. ”

 

O Retiro era uma cidade de pouco menos de dez mil habitantes. Com ruas de calçamento rústico e outras de terra batida.

 

Severino morava com a esposa Joana e seus nove filhos na empoeirada Rua da Seriguela, em um casebre de pau-a-pique à margem do Rio Longá, que banhava a cidade, e o utilizavam para pescaria e complemento do sustento.

 

A Seriguela coalhava-se de casebres com seus proletários. Sem saneamento básico, crianças e doenças multiplicando-se a cada dia, num compasso tão apressado como os peixes do rio, esses engordados pelo esgoto da cidade.

 

Severino, habitualmente feliz, soube em uma noite de trabalho, através de um cliente que também era empregado do governo, que o cassino iria fechar:

 

- O Presidente deseja acabar com o jogo de azar, disse-lhe.

 

- Tem certeza, ou é só rumor de beata invejosa, - Perguntou o garçom, com as mãos já frias e trêmulas.

 

- Então, irei falar pessoalmente com o Prefeito Pitombeira. Ele é o meu antigo cliente e vai esclarecer esse mal-entendido – disse Antônio, com confiança.

 

Antônio, com a habilidade obtida por várias décadas servindo os doutores da cidade, aproximou-se com elegância da mesa do Prefeito e perguntou-lhe sobre o encerramento do cassino.

 

- Sim, é verdade. A notícia saiu no Pasquim e chegou um telegrama da União. Está acima do meu posto. – Falou, com desengano.

 

- Como? - Questionou Severino ao arregalar os olhos.

 

- Em seguida, o Prefeito, sempre a arriscar-se agradar a todos por uns votos, jurou ao garçom que os seus direitos seriam preservados...

 

Descrente da própria sorte, Severino se senta na melhor cadeira do cassino e, imitando os ricos clientes, pede uma garrafa de whisky. Com os olhos já emocionados, percorre o teto do edifício, as cadeiras ao estilo Luís XV, e o amplo balcão de mogno, onde serviu várias doses, e, finalmente, fala:

 

- Não há problema, vou voltar para o Sertão, diz, ecoando a frase até a última gota do escocês.

 

Em casa, bêbado pela primeira vez, não teve forças para dar a grave notícia a Joana. Ela era uma morena de forte presença em sua vida, com o tempero das duras lições, que apenas o observava.

 

De repente, Joana levantou-se do banquinho onde estava, com seus braços modelados pelo trabalho doméstico, e o abraçou com fervor. Continuaram em silêncio, olhando os seus filhos pela janela, ainda pequenos, mas já tão ligados ao rio.

 

A indignação da cidade, pelo fechamento do cassino, tomou todas as feições e vontades. As bíblias, em mãos, tornaram-se as velhas trincheiras dos ditos homens sérios. E, decerto aos outros o estigma de pagãos.

 

O Padre AmaDeus continuava a pregar, mas agora com um tom de vingança na sua voz. Certo, para ele, de que tinha razão na sua cruzada. 

 

Passados alguns anos da saída do retirante, o furor em fazer-se em pedaços o velho imóvel causava seus ruídos: o atrito das pás e picaretas sobre as paredes largas construídas por escravos, às ordens dos mestres de obras, o cheiro de poeira misturada com barro seco criava um cenário de desolação e ruínas.

 

Do cassino, salvaram-se, na beira da calçada da igreja, a roleta e o balcão, tornando-se um amargo lembrete e um último sulco de desafio contra o pároco que celebrou a queda do culto pagão.  

 

Ao meio dia, estaciona um carro-pipa d`agua no novo lar agreste de Severino. Em seguida, o indiferente motorista buzina com pressa e entorna o líquido raro nos galões juntos na entrada.

 

Severino, da varanda, ao ver a cena, cabisbaixo e inerte, finge um sorriso, enquanto olha para a pequena imagem de Nossa Senhora da Boa Esperança na sala de visitas e transporta-se de volta a igreja da cidadezinha.

 

Joana deita a cabeça fatigada pelo calor no mourão da cerca que rodeia a casa, e mira firme o horizonte árido, rubro e cinza, com os filhos a brincar nos rastros da poeira sem fim. 

(*) cronista e contista.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Mário Faustino e os arigós do Piauí

 

Fonte: Google

Fonte: Pensar Piauí/Google
Fonte: Jornal Rascunho/Google


Mário Faustino e os arigós do Piauí

 

Carlos Evandro M. Eulálio*

 

Meu Caro Bené é o título do livro que reúne as cartas de Mário Faustino a Benedito Nunes, publicado pela Secult/PA, com organização, apresentação e notas da profa. Lilia Silvestre Chaves. (1) As cartas de Mário datam de 1950 a 1962. Elas refletem não apenas os laços de amizade que uniam o poeta ao filósofo, mas também marcas que o identificam como um dos notáveis poetas de vanguarda dos anos [19]50, época de maior efervescência literária no País, após o modernismo de 1922.

Sobre as cartas, afirma Lília Silvestre Chaves: Algumas cartas falam de poemas que estava escrevendo na ocasião, descrevem seu pensamento acerca de sua criação poética, enfim, revelam suas mais íntimas ideias sobre o amor e a literatura [...] e minuciosos relatos de viagens, comentários sobre leituras e preferências artísticas em geral (FAUSTINO, 2017, p. 23). 

As três primeiras cartas do livro, datadas de 27/12/1950, 29/01/1951 e 16/02/1951, foram escritas em Teresina, onde o poeta se encontrava, em visita aos seus familiares.  Mário retornou a Belém no dia 1º de março de 1951. As outras cartas que constam no livro, foram escritas das seguintes localidades: da Califórnia (USA), onde em Covina o poeta fazia o Curso de Língua e Literatura Inglesa (2) (1951/1952); de Stuttgard-Alemanha (28/09/53), quando em passeio pela Europa; do Rio de Janeiro (1955/1962), onde fixou residência; de Santiago do Chile (19/09/1957), e de Nova York (1960/1961), onde trabalhou no Departamento de Informações Públicas da ONU.

Na primeira carta, enviada de Teresina, o assunto predominante diz respeito a impressões que lhe causaram a cidade, sua vida cultural, e aos contatos que manteve com algumas pessoas, sobre as quais se mostra surpreso por encontrá-las no Piauí. De início faz referência ao Caderno de Letras Meridiano.(3)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  Diz o poeta: Agora a surpresa: sabes que aqui tem gente culta, inteligente, moderna e de espírito à beça. Se eu arranjar, vou te mandar os três números de uma revistinha de novos daqui: Meridiano. Em seguida, sem citar o nome, Faustino se refere ao poeta Hindemburgo Dobal Teixeira (H. Dobal – 1927-2008):  Tem um rapaz que escreve uns belos poemas, muito simples, muita poesia e muito bom gosto, traduz otimamente ingleses e americanos (inclusive o Eliot e Cummings). Eu dizendo tu não acreditas. Desse mesmo rapaz, que não só tem talento, mas também uma boa cultura, li um interessantíssimo artigo sobre o egoísmo inglês e a generosidade dos saxões e dos latinos, intitulado “D. Quixote versus Robinson Crusoé”. Esse rapaz cita Santa Teresa, Lope de Veja, Quevedo, Calderón, Shakespeare, Unamuno, Bunyan, John Donne, com uma seriedade espantosa. Só tu vendo.

O encontro dos dois poetas aconteceu na casa de H. Dobal, intermediado pelo médico e escritor Clidenor de Freitas Santos. Na mesma carta de 27/12/1950, Mário retoma o assunto acerca do Caderno de Letras Meridiano: Nessa revista tem gente que escreve falando em Claudel, Péguy, Rilke, Goethe, uma coisa incrível! Este Norte é mesmo o tal. Tem muita gente estudiosa por toda parte, até no Piauí!!!

Sobre o engenheiro Cícero Martins (1909 – 1988), projetista e executor de obras importantes em Teresina, como a antiga ponte sobre o rio Poti e o Hospital Getúlio Vargas, escreve:  Aqui há um clube deles, chamado Clube Telúrico Euclides da Cunha. Vê só! O presidente dele – Cícero Ferraz de Sousa Martins – sujeito que conhece quase tudo o que o Mendes, (4) por exemplo, conhece - em uma entrevista àquela revista - disse da finalidade e do caráter do clube, de um modo bem gozado. Vai ver, depois. Estou te vendo a rir, mangando destes arigós: mas haverias de ver, se estivesse aqui. Aliás, esse termo arigós (grifo nosso), atribuído aos intelectuais que Mário Faustino conheceu no Piauí, onde esteve em 1951, antes de viajar para os Estados Unidos, é empregado na carta de uma forma carinhosa, com sua habitual dose de ironia e bom humor.  

Eis o que diz o poeta a respeito do dr. Clidenor de Freitas Santos, médico psiquiatra, professor, escritor e político: Conheci também um sujeito maravilhoso, um psiquiatra – Clidenor de Freitas Santos – que está construindo um sanatório de loucos como há poucos no Brasil, aqui em Teresina. Tem ele uma vasta cultura. Emprestou-me montes de livros sobre Shakespeare. Fala de qualquer assunto de uma maneira fantástica. Queria que visses a biblioteca dele. Tem e lê o que há de mais moderno em criação e crítica. Uma discoteca melhor que a do Meira. (5) Bethoven quase completo, muito Bach, muito Mozart, muito Stravinsky, muitos modernos. Uma beleza.

Sobre o sanatório de loucos, a que se refere o poeta, trata-se do Sanatório Meduna, construído pelo dr. Clidenor de Freitas Santos (1913-2000), e inaugurado em 21 de abril de 1954, uma iniciativa que inovou o tratamento psiquiátrico no Nordeste brasileiro. Foi desativado em maio de 2010, pela própria direção do hospital.

Mário também esteve com o dr. José da Rocha Furtado (1909-2005), médico e político brasileiro, primeiro governador do Piauí, eleito por voto direto, após o fim do Estado Novo. Diz o poeta sobre esse grande líder político da época:  Queria que conhecesses o Rocha Furtado, governador daqui. Um grande rapaz. Fala alemão, inglês, francês, italiano, espanhol. Conhece e lê o latim, está estudando grego. Tem uma cultura enorme. Queria te ver conversando com ele sobre Goethe, do qual ele tem imensa bibliografia. A cultura dele é toda germanizada. Só sai Nietzsche, Keyserling, Spengler, Goethe, Schiller, Novalis, Hoelderlin, Kleist, Klopstock, etc. etc.; coisas de que eu não penso nada. Uma cultura de alemão, mesmo, de monstro. E que sujeito decente! Um gentleman! De uma honestidade incrível! Católico, apostólico, romano e praticante! Foi ele que me levou para assistir a uma Missa do Galo maravilhosa.

Sobre o celebrante da missa, escreve: A missa foi celebrada por um padre negro que é um colosso. Dedica-se à matemática e à física – é professor dessas matérias nos colégios daqui – mas tem uma cultura geral monstruosa. É o padre “Zé Luiz”. (6) Nunca vi sujeito tão humilde. Fez um sermão que eu quisera ter estenografado para te mandar. (7)

O poeta finaliza a carta, reiterando seu fascínio com tudo que conheceu no período de sua estada no Piauí: Concluindo, Bené, por aqui tem gente da classe do Mendes ou do Bitar. (8) Se estivesse aqui seria ótimo. Ficarias besta só em encontrar nesta “Chapada do Corisco” uma quantidade de bibliotecas três vezes mais ricas que a do Mendes.

  Em alguns trechos desta e das outras cartas, Mário fala de suas leituras em Teresina: Ilíada (Estou no segundo canto da Ilíada. Uma maravilha); A tempestade, de Shakespeare (Que coisa, senhor! É de chorar de alegria); The Marchant of Venise, de Shakespeare (O mercador de Veneza - Outra beleza). Sobre música: Aqui a novidade é que tenho ouvido muita música (Bach, Mozart, Beethoven, Chopin, Debussy, Stravinsky...) Cinema: Digo-te, que continuo na mesma vida por aqui. Vi mais alguns bons filmes, continuo leituras sobre cinema. 

 Onde quer que estivesse, Mário Faustino se mantinha atento e aberto a tudo que dizia respeito à literatura e às artes em geral. Além de compulsivo, Mário era um leitor atualizado, procurando expandir o seu repertório de conhecimentos sobre literatura, sempre à caça de novos valores no campo das letras. Para tanto, aproximava-se daqueles que, como o próprio Mário, admiravam e produziam com qualidade a poesia, o teatro, o cinema e a boa música.

 

*Carlos Evandro M. Eulálio, professor e crítico literário, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, ocupante da Cadeira 38, tendo como patrono o poeta popular João Francisco Ferry.

*Notas

1. FAUSTINO, Mário. Meu caro Bené: cartas de Mário Faustino a Bendito Nunes / Mário Faustino; organização, apresentação e notas Lília Silvestre Chaves. Belém: Secult-PA, 2017.    

2. Mário Faustino conquistou mediante concurso internacional uma bolsa de estudos em Língua e Literatura Inglesa, (1951/1953), promovido pelo Institute of International Education, dos Estados Unidos, no Pamona College, Covina – Califórnia.

3. A revista Meridiano surgiu com o propósito de encontrar novas alternativas para o projeto modernista em nosso meio. Tinha ainda a finalidade, conforme o crítico literário M. Paulo Nunes, de acompanhar o ideal estético-formal do pós-modernismo de 1945. A esse respeito, ele diz: “[...] quando surgiram várias revistas em diferentes estados do Brasil, [...] nós fundamos O Meridiano, dentro desse espírito, de procurar fazer eco às ideias do modernismo e lançar uma proposta fundamental de renovação da literatura piauiense” (EULÁLIO, Carlos Evandro M. Discurso de posse. Teresina: Nova Aliança Ed. 2022, p.27). O título Meridiano, segundo relatou o romancista O. G. Rego de Carvalho ao escritor Halan Silva, adveio de uma revista que circulou na Bahia e que teve a participação de Jorge Amado e de Da Costa Andrade, que era piauiense (SILVA, Halan. As Formas Incompletas: apontamentos para uma biografia. Teresina: Oficina da Palavra / Instituto Dom Barreto, 2005, p. 78).

4. Francisco Paulo do Nascimento Mendes, ensaísta e professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Pará, autor do ensaio “O Poeta e a Rosa, primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino”, publicado no Suplemento Arte-Literatura, da Folha do Norte, Belém-PA, no dia 25 de abril de 1948.

5. Augusto E. de Bastos Meira Filho, engenheiro, historiador, escritor e jornalista paraense. (Nota de Lília Silvestre Chaves, in Op. cit. 2027, p. 31)

6. Conforme informações do professor e historiador Paulo Libório, obtidas no Arquivo da Arquidiocese de Teresina, Monsenhor José Luiz Barbosa Cortez (Padre Zé Luiz) nasceu em União-PI, no dia 21/4/1904. Ingressou no Seminário em 15/2/1928 e sua Ordenação presbiteral aconteceu em 6/12/1936. Era Mestre de Cerimônias de nossa catedral, Capelão e professor do Colégio das Irmãs Catarinas de Teresina, professor do Liceu Piauiense, da Escola Normal Antonino Freire, do Seminário e dos colégios Leão XIII e Diocesano. Foi membro do Conselho Arquidiocesano, do Conselho Estadual de Cultura do Piauí e Sensor Diocesano para espetáculos públicos. O título de Monsenhor foi-lhe dado pelo Papa João XXIII. Faleceu em Teresina no dia 15 de dezembro de 1981.

7. Processo de escrita formado de sinais abreviativos convencionais que permitem transcrever as palavras quase tão rapidamente quanto são pronunciadas. O mesmo que taquigrafia.

8. Orlando Bitar, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito do Pará, poliglota e homem de vasta cultura. (Nota de Lília Silvestre Chaves, in Op cit, 2017, p. 31).    

ERRATA

 

ERRATA: O poema “Tédio”, da página 67/68 deste livro, atribuído a Socorro Mota Araújo, é de autoria de Elmar Carvalho. Datado de 08.09.77, está publicado em seu livro “Rosa dos Ventos Gerais”, 3a. ed., Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2016, p. 83.  Fernando B. Ferraz

ERRATA

 

Wilton Porto

 

Publiquei, nas redes sociais, o relato intitulado lado "Minha visão, em comentário, sobre o livro Fundação Cultural Assis Brasil - uma história a contar, de autoria de Fernando Ferraz.

Neste livro, às páginas 67-68, consta o poema "Tédio", e foi impresso como autora, Socorro Mota Araújo(S.M.A.), que era aluna do Colégio Estadual "Lima Rebelo", onde eu era Professor.

Este poema, publiquei-o na coluna CULTURESCREVENDO, sob a minha responsabilidade, no Jornal Norte do Piauí, quando eu estava à frente da Fundação Cultural "Assis Brasil".

Acontece que, tão logo publiquei dito poema, Elmar Carvalho contatou comigo, informou-me, que a poesia era da autoria dele e que constava do livro publicado por ele(Rosa dos Ventos Gerais).

Este livro ganhou uma proporção extraordinária. Porém, quando da publicação do poema, no Culturescrevendo, eu ainda não o havia lido.

 

Fernando Ferraz, ao publicar o poema, se baseou em pesquisas, para o livro sobre a Fundação Cultural "Assis Brasil". É lógico, que ele não poderia imaginar este engano e má intenção da aluna, uma vez que ela era estudante de segundo grau.

Para sanar o erro, que o maior culpado sou eu. Estamos publicando a ERRATA, escrita por Fernando Ferraz, que foi anexada ao livro, após publicação.