sábado, 6 de julho de 2019

Fazenda Paraíso

Fonte: Portal Entretextos


Fazenda Paraíso

Renato Castello Branco
Historiador, romancista e memorialista

Quando chegamos à fazenda, o sol abrasava no zênite. Ali, na ilha dos Mulungus, já se estava a apenas cinco quilômetros do oceano. Mais um pouquinho e o rio desaguaria no estreito e desértico litoral piauiense, de estranha beleza. Então era uma sucessão de praias infinitas, alvas dunas e coqueirais, batidos eternamente pelo vento nordeste.

Atracamos no porto das Canoas, e seguimos pela picada que conduzia à casa de telha, no alto do barranco. De longe avistei, antes de tudo, o secular pau d’água de minha infância, abrindo sua imensa galhada. No alto, empuleirado em seus galhos pujantes, o jirau de troncos de carnaúba, de onde vínhamos olhar o Parnaíba desfilando suas águas. Lá iam as águas rolando, arrastando galhos de árvores, balseiros, verdes moitas flutuantes, que o rio arrancava das margens, de algum barranco. Às vezes, caíam em funis, rodando, rodando, até afundar. Certa feita eu vira um desses funis, em época de enchente, empolgar uma canoa, girando-a, girando-a, num irresistível sorvedouro, até arrastá-la para o fundo. Os canoeiros, grandes nadadores, conseguiram escapar. Entregaram-se às águas deixaram-se levar sem resistência, para só então escaparem, afastando-se a nado. Ai! Saudades de minha infância, das brincadeiras com os primos e os filhos dos agregados, caçando passarinhos, montando cavalo em pelo, banhando nas águas do rio! Subíamos a pé pela margem alguns quilômetros. Depois lançávamos à corrente e vínhamos descendo as águas, nadando ou boiando agarrados a um tronco.

Caminhamos mais um pouco, galgamos o barranco e divisamos a casa de telha, com seu varandão ocupando toda a frente. Lá estava o letreiro, pintado em letras primitivas, numa chapa de madeira: Fazenda Paraíso.

Quando alcançamos o alto do barranco, a cachorrada da fazenda veio a nosso encontro, latindo e abanando o rabo, hesitante entre ser agressiva ou acolhedora. Atrás deles logo divisei Cazuza, inconfundível após cinquenta anos de ausência. Envelhecido como envelhecem os sertanejos, curtido de sol e chuva, humilde e simples, e ao mesmo tempo com inata dignidade. Abraçamo-nos. Ou melhor, a princípio abracei-o eu, ele inibido e duro, braços tesos, entre os meus. Depois prevaleceu seu coração e se desfez em ternura, abraçando-me também.

Mal entramos na velha casa da fazenda, repleta de memórias, larguei no quarto minha sacola, bebi um copo de água fresca do pote, retirando-a com uma caneca de alumínio de longo cabo, e convidei Cazuza para tomarmos um banho no rio. Ele riu com um riso maroto de garoto apanhado em flagrante. E descemos juntos para o porto das Canoas. Tiramos a roupa e atiramo-nos n’água, nadando, espadanando, como fazíamos em criança. Ficamos um longo tempo dentro do rio, pendurados na borda de uma canoa, conversando. Falamos da infância, dos animais, do cavalo Dois de Ouro, da eguinha Melindrosa, nossa amante, do touro zebu Monte Negro, dos cachorros Rompe Nuvem e Vai-ou-Racha. Eles eram parte do nosso mundo e nossa vida, como velhos companheiros inesquecíveis, nossa versão nordestina do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Já agora éramos apenas dois velhos, amigos, recordando uma infância comum.

Voltamos para a casa de telha onde Sensata, a mulher de Cazuza, nos esperava com uma panelada, com pirão escaldado. Na panela, afloravam tripas e miúdos de boi, pedaços de linguiça e partes de chouriço. Assustei-me com a perspectiva de ingerir um prato tão rico. Mas não quis desapontar Sensata. Servi-me do mínimo essencial para não ferir sua susceptibilidade de quituteira famosa.

Lembrava-me de Sensata em menina. Quem a visse hoje – murchos os olhos, murcho o busto, murcha a boca sem dentes – não poderia imaginar o que ela fora na adolescência, sua beleza agreste, seu viço, seus modos provocantes.

Um dia meu avô apanhara Sensata e Cazuza se bolinando atrás de uma moita de murici. Enxotou-os aos brados, ameaçando-os com terríveis punições. Mais tarde, porém, surpreendi-o, bem humorado, contando a cena à minha avó. Minha avó, ao contrário, ficou chocadíssima e mandou chamar dona Perpétua, mãe de Sensata, para contar-lhe o ocorrido, o que lhe valeu uma surra de umbigo de boi.

Depois do almoço espichei-me numa rede de tucum, armada na varanda, para descansar. Nas ripas do telhado, de troncos de carnaúba, lagartixas desfilavam, balançando as cabecinhas. Mais adiante, uma casa de marimbondo-chapéu, redonda e chata. Um beija-flor invadiu a varanda, pairou no ar com as asas vibrando invisíveis, e desapareceu como um clarão. Pouco a pouco, adormeci.

Fonte do texto e da foto: Portal Entretextos.

Publicado originalmente em janeiro de 1988, na edição 28 da revista Globo Rural.  

quinta-feira, 4 de julho de 2019

ZEFERINO E A MATEMÁTICA MODERNA


Fonte: Google
Fonte: Portallider/Google


ZEFERINO E A MATEMÁTICA MODERNA

Elmar Carvalho
  
No meu périplo campomaiorense, por ocasião da inauguração do Memorial e da sede da Academia Campomaiorense de Artes e Letras revi o Zeferino Alves Neto, um guerrilheiro da cultura e agora blogueiro. Foi meu professor de matemática, creio que em 1969, no meu primeiro ano do antigo curso ginasial, no único ano em que estudei no Colégio Santo Antônio, de que foram fundadores, entre outros, os velhos mestres padre Mateus, professor Raimundinho Andrade e o juiz Hilson Bona.

A seguir, estudei o segundo ano ginasial na cidade de José de Freitas, da qual guardo ótimas lembranças. Fiz o terceiro e o quarto ano, de volta a Campo Maior, no Colégio Estadual, que hoje, com muita justiça, tem o nome do professor Raimundinho Andrade.

Devo dizer que Zeferino, o ZAN, foi o único professor de matemática de que não tive medo, e observo que foi através de suas aulas o meu primeiro contato com a então chamada Matemática Moderna, cheia de sinais gráficos, desenhos geométricos e noções de conjunto, e outros artefatos pavorosos.

Sempre tive terror dessa matéria, e por isso escrevi em versos:  A matemática / me enlouquece: / por isto meu pensamento / salta de mais infinito / a menos infinito (…).   Alguns professores dessa disciplina aparentam ter certa inclinação para o sadismo, e parecem se comprazer com o medo que infringem aos discípulos. ZAN sempre foi um humanista, um guerreiro do bem, e não torturava seus alunos com ameaças e perspectivas de reprovação.

Como em 1975 deixei definitivamente Campo Maior, com minha ida para Parnaíba e depois Teresina, por décadas o perdi de vista. No começo dos anos 2000, quando lancei meu livro Rosa dos Ventos Gerais em Brasília, voltei a vê-lo, uma vez que ele foi a essa solenidade cultural. Depois, consegui rastreá-lo através dos mares internéticos.

Com o seu retorno a nossa cidade natal, tenho-o visto mais amiúde. Conversamos algumas vezes. Em seus comentários em blogs e sites, nota-se o seu apurado senso de humor e a sua preocupação com a cultura e o bom andamento da administração pública. Além de escritor, radialista, jornalista, blogueiro, é eminentemente um homem de teatro, tanto como teatrólogo, como também na qualidade de ator e diretor.

Embora a sua veia humorística esteja sempre afiada e armada, noto-lhe a preocupação constante em não ferir as pessoas, mas apenas em divertir-se e diverti-las. Portanto, o caríssimo ZAN sempre será Zeferino, mas jamais Zé Ferino, para fazer um trocadilho cretino, e continuar no meu rimar genuíno, sem perder o tom e o tino.  

17 de março de 2010

quarta-feira, 3 de julho de 2019

A batalha das cocadas na frente da casa-grande

Fonte: site da APAL/Google


A batalha das cocadas na frente da casa-grande

Pádua Marques
Escritor e jornalista

A miséria estava batendo agora na porta da frente de casa da família de Simplício Dias da Silva desde quando o imperador dom Pedro I lhe virou as costas por causa de seu envolvimento e obediência cega ao juiz de fora João Cândido de Deus e Silva e gente do Pernambuco e do Ceará, que agora queriam uma república pra o Brasil. O antes senhor da Parnaíba, que recebia nobres, estudiosos, comerciantes interesseiros e até piratas na sua casa, amargava o desprezo político e a pobreza, a ponto de sua mulher, dona Isabel Thomásia ter arranjado um negro pra vender cocadas na porta de casa.

A cozinheira, tão logo passava a hora do almoço, se punha a fazer as cocadas pra que tão logo amanhecesse o dia vinha o negro da casa, Pano Véi, lá de dentro com o tabuleiro forrado com um pano de sacos pra esquina da rua Grande, esperar a freguesia de embarcadiços, soldados, gente de repartições públicas e quem descia ou subia nas canoas indo pra Tutoia no Maranhão. Isso de domingo a domingo. Vez por outra dona Isabel e o marido, agora doente, ficavam na janela de cima olhando o movimento embaixo.

Por volta das nove horas, já o sol queimando o lombo dos negros que trabalhavam no porto lá embaixo, Pano Véi já estava em serviço fazia tempo. Olha a cocada! Olha a cocada! E nesse sentido só desmontava aquele negócio quando já não tinha nenhuma cocada e o que sobrava era algum farelo. Corria pra dentro da casa-grande e ia prestar contas com a dona do negócio. Quando muito, recebia um tostão, que logo iria ser gasto lá embaixo no cais com um mercado de cachaça ou de fumo.

No outro lado da rua a família Miranda Osório era um tormento pra o antes todo poderoso e destemido Simplício Dias da Silva. Desde o assassinato de Raimundo em 1812 e a recusa de Simplício em ser governador do Piauí, as coisas andavam de mal a pior pra família. Dívidas, traições e tudo o mais se acumulavam naquela casa de paredes encardidas. Na igreja nem ia mais por causa da inchação nas pernas e sentindo uma dureza no pé da barriga. E agora mais aquela, de até na venda de cocadas da mulher encontrar um concorrente, o negro Mão de Pilão.

Tanto um quanto outro eram negros ainda novos beirando quando muito, os trinta anos. Mão de Pilão talvez fosse até mais velho. Mas quem era que iria se preocupar com idade de cativo? Talvez pra criar sua empresa que lhe garantisse um tostão pra aguardente, arranjou com seu dono um ponto pra venda de frutas na frente de casa de Miranda Osório. E em pouco tempo já vendia muita manga, bananas, limões doces, melancias, abacates, fumo de mascar e rapé, doce de leite e cocadas.

Pano Véi estava começando a ficar com raiva daquele negócio. Trabalhava que nem um burro botando água pra o senhor tomar banho, limpava a igreja, a frente da casa, o quintal, cortava um galho de árvore, fazia uma limpeza nos cemitérios da família, enchia os potes da cozinha e ainda de manhãzinha tinha que torrar a cabeça naquele terror de sol vendendo cocada pra dona Isabel na esquina! Se quebrasse alguma cocada e tendo que voltar pra dentro do tabuleiro ou algum freguês não pagasse, era castigo na certa.  Era vida de cão aquela sua! Agora me vinha Mão de Pilão, com tabuleiro de frente com mais coisas pra vender e lhe tirando freguesia! Ia fazer um bonito com aquele negro.

Mão de Pilão ficava de lá olhando o movimento e falando alto toda a lista do que vendia. Olha o limão doce! Olha a manga, olha a manga! Olha a cocada de coco fresco! Aqui tem rapé e tem fumo! Três tostões, três tostões e é pra acabar!  Os fregueses iam e vinham. Passavam e acabavam comprando isso ou aquilo. O negro suado e satisfeito ia colocando num caixa de madeira o apurado e cantando uma canção alegre, aprendida com as mulheres da vida lá embaixo no cais do porto.

Pano Véi esperou dar mais movimento na rua Grande, justo quando acabava de atracar no cais do Porto Salgado uma canoa vinda da Tutoia, no Maranhão, carregada de lenha. Era carga pra casa de Simplício e outros principais da Parnaíba. Havia vendido pouco sua a cocada naquela quinta-feira. Enquanto isso Mão de Pilão, de lá, aproveitava quem estava subindo o barranco e gritava ainda mais alto, intimando, fazendo troça com ele.

O negro enjeitado da casa de Simplício Dias foi se aproximando do tabuleiro de Mão de Pilão com as duas mãos cheias de areia. Esperou um freguês pagar e ir se retirando com umas frutas. Jogou areia por cima como se fosse chuva. A areia caiu direitinho em cima das cocadas de Mão de Pilão. O nome feio comeu. Filho dessa, filho daquela. Acabaram se atracando. Foram ao chão e as vaias acompanharam. Foi cangapé pra todo lado e pra cima dos tabuleiros. As frutas, o rapé e o fumo em frente da casa de Miranda Osório, enfim, tudo que tinha no tabuleiro de Mão de Pilão se espalhou. Reboliço dos diabos.

Foi o bastante pra aparecer gente de tudo quanto era lado vinda da frente da matriz, do cais e de tudo mais. Por sorte não puxaram facas. Veio milícia e prendeu os dois negros arruaceiros. Sabendo de quem eram, foram cada um levados aos seus donos. Simplício ficou sabendo do ocorrido logo depois da dormida do almoço. Pano Véi levou uma pisa de umbigo de boi e teve a comissão do dia confiscada. Simplício Dias da Silva, mesmo já sem saúde, não queria ninguém com valentia e autoridade maior que a dele na Parnaíba. E muito menos partindo de negros!   

terça-feira, 2 de julho de 2019

Lançamento de Coleção Florianenses - nº 8



Na oportunidade a Academia Piauiense de Letras entregará a Cristóvão Augusto Soares de Araújo Costa, membro da diretoria da Fundação Floriano Clube, e um dos organizadores da coletânea, juntamente com Rosenilta Maria de Carvalho Attem e Teodoro Ferreira Sobral Neto, a Medalha e o Diploma do Mérito Centenário. O anuário vem prestando relevantes serviços à memória histórica de Floriano e do Piauí.

Na contracapa do volume a ser lançado, disse o escritor e jornalista Paulo Chaves: "... a Coleção Florianenses traz agora seu oitavo número, o volume 8, recheado por 27 perfiz biográficos raros. Dentre estes, o querido e brilhante Luiz Paulo de Oliveira Lopes, historiador e professor meritoso, que agora desfalca pela vontade divina o grupo devotado que tão bem organiza a Coleção".

O DIA EM QUE MATEI FONSECA MENDES

Elmar Carvalho, Rubem Freitas e Antônio Gallas, no começo dos anos 1980, na Praça da Graça


O DIA EM QUE MATEI FONSECA MENDES

Pádua Marques
Joranlista e escritor

Por uma deferência especial do jornalista e secretário municipal Arlindo Neto (Arlindo Leão), recebo mensalmente, em primeira mão, o Jornal O Piagüi Culturalista, um jornal alternativo voltado para literatura, arte e história. Em o  Piagüi Culturalista encontramos, contos, crônicas, poesias e fatos da história da Parnaíba e do Piauí.

Ao folear a edição deste mês de junho que me foi entregue bem de manhãzinha pelo Arlindo Leão, deparei-me com uma crônica do escritor Pádua Marques relatando sobre o dia em que ele, Pádua Marques tinha matado o Fonseca Mendes.

Fonseca Mendes, brilhante  jornalista, poeta e escritor,  oriundo do Maranhão,  assim como eu, trabalhamos juntos no Jornal Norte do Piauí, nos anos 1970. 

Aos sábados, após recebermos o famoso "vale" corríamos para o bar da tia Noemia Cerveira (também de Tutóia)  para degustarmos uma deliciosa "loura suada" com um tira gosto de torresmo ou qualquer outra guloseima.  O Bar ficava na Rua Almirante Gervásio Sampaio por trás da Antiga AABB, hoje Caixa Econômica, na mesmo rua onde ainda funciona a redação do Jornal Norte do Piauí.

Mas, vamos deixar de lero-lero  e ver o que interessa: a crônica O DIA EM QUE MATEI FONSECA MENDES do colega escritor e acadêmico Pádua Marques:

                      (Antônio Gallas)

Eu havia chegado em Parnaíba e estava passando pela sucursal do O Dia, dirigida pela diligente Marize Assunção. Não ganhava um tostão com isso, mas pra não perder o gosto e a tarimba de escrever fui ajudar aquela nova amiga. O Trabulo Júnior havia me chamado em Teresina, mas chegando lá ele olhou pra mim e me vendo negro, feio e magro certamente duvidou que eu fosse jornalista de formação. Insistiu pra que eu ficasse, mas vendendo assinatura de jornal.

Voltei decepcionado, mas não deixei a amiga na mão. Continuei ajudando com alguma noticia aqui e ali. Ainda era o tempo da máquina de escrever e alguma coisa que acontecia aqui em Parnaíba levava uma semana pra ser registrada em jornal porque não tinha ainda televisão. A Marize, lá pelo final do ano, me incumbiu de representar o jornal num coquetel oferecido pra imprensa pela Caixa Econômica Federal, festa organizada pelo Rubem Freitas.

No coquetel encontrei, ali na praça da Graça, o Osmar Dias, única pessoa que conhecia, por ele ser amigo de minha irmã e ser simpatizante do Inovação. Ele me apresentou a algumas pessoas, entre elas, o Zé Luiz e o F. Carvalho, que à época andavam fazendo muito sucesso com o Correio do Povo, um jornal pequeno, quinzenal, do tamanho de uma folha de papel sulfite e que muito me lembra o Opiagui. Dava um trabalho danado pra fazer.

Entre discursos, homenagens e coisa e tal, falaram nos jornalistas veteranos e aqueles que haviam morrido. Lembro muito bem de ouvir discursos do Renato Bacelar sobre seu pai Raul e Fonseca Mendes. Meu erro foi não prestar atenção e ouvir errado. Ainda naquela noite e já entrando pela madrugada conheci outras pessoas de rádio e de jornais. Na volta à sucursal na segunda-feira, redigi uma matéria falando sobre a festa e a Marize mandou pra Teresina.

Na matéria falei do coquetel, dos homenageados e dos mortos. Entre os mortos estava Raimundo Fonseca Mendes. Na sexta-feira o O Dia chegou e, no canto direito, lá em cima na página dois estava minha matéria. Dois parágrafos apenas, mas que me deixaram muito satisfeito, feliz mesmo. Mal sabia o que estava por vir, uma tremenda barriga. Depois fui convidado pra ajudar o F. Carvalho e o Zé Luiz no Correio do Povo. A redação ficava no Edifício Anelle, atrás da Caixa Econômica.

Um belo dia à tarde, estava eu debruçado no parapeito e olhando pra quem passava na Gervásio Sampaio, quando quem vejo? Raimundo Fonseca Mendes em carne e osso, a passos lentos e de camisa xadrez. Entrou na galeria onde sua filha Rita Holanda tinha uma loja, um salão de cabelereiro, algo assim, perto do escritório do Thote Ibiapina. Fiquei sem chão debaixo dos pés.

Mas não disse nada pra ninguém. Se fosse hoje, com as redes sociais e até mesmo no tempo em que a televisão tinha grande alcance, meu erro teria sido suficiente pra um processo por danos morais e materiais e com direito a uma baita indenização. Mas saiu

apenas num jornal e já naquele tempo ninguém se importava com o que saia em jornal, principalmente se fosse de Parnaíba. Raimundo Fonseca Mendes morreu mesmo de morte morrida.

Fonte:Blog do Professor Gallas

domingo, 30 de junho de 2019

Manhã prestes a abrir

Fonte: Gloogle


Manhã prestes a abrir

Celso Pinheiro (1887 – 1950)

Manhã prestes a abrir o cálice doirado!
Na casinha de palha andam todos alerta.
Pois antes que a manhã seja uma rosa aberta,
Há de este amor surgir o fruto iluminado!...

Dona Flor com o semblante heril transfigurado,
Tem anseios de mãe... A parteira desperta,
Pitando o seu cachimbo, aguarda a hora certa,
E me diz que não tenha o mínimo cuidado!...

De súbito, porém, a sombra de um perigo...
Eu, pálido, a tremer, minha alegria tolho,
E vou ver o Dr. — velho médico amigo!

Mas ao volver ao lar me comovo e confundo:
Ela, ingênua, a sorrir, mostrando-me o pimpolho,
Sugere-me votivo o seu nome — Raimundo!...  

Fonte: site Escritas

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Simplício Dias à espera de Napoleão Bonaparte na praia da Pedra do Sal

Fonte: Google


Simplício Dias à espera de Napoleão Bonaparte na praia da Pedra do Sal

Pádua Marques
Jornalista e escritor

Se pudessem dizer pelo menos alguma coisa, um nome feio por menor que fosse e não parecesse ofensa e insubordinação, aqueles soldados famintos, com sede e os pés cheios de bolhas certamente diriam que o capitão Simplício Dias da Silva, aos trinta e cinco anos, estava fazendo papel de palhaço em cima daquelas pedras e com os olhos vidrados pra dentro do mar, na praia imensa e sem vida da Pedra do Sal, naquela manhã de fevereiro de 1808.

Tudo porque o governador da capitania do Piauí, Carlos César Burlamaqui, que passava o dia lá na distante Oeiras limpando as unhas com a ponta de um punhal e de vez em quando fumava um cigarro filado de um cabo puxa saco, cismou de mandar pra Parnaíba um estafeta, instruindo o capitão Simplício Dias da Silva de que ficasse com os olhos bem abertos porque o Piauí corria o risco de ser invadido pelo general e imperador Napoleão Bonaparte, à época com trinta e nove anos.

Burlamaqui recebeu notícias de que a França havia riscado Portugal do mapa da Europa e tudo indicava que o príncipe dom João corria risco de ser preso e até morto em Lisboa, se não desse a qualquer hora com a família nas costas da Bahia, o que realmente acabou acontecendo. Vinha de mala e cuia com um monte de ministros e de assessores. Instruía o governador ao comandante militar sobre a defesa do litoral piauiense e confiava na perícia do parnaibano. Simplício se encheu de moral e armou logo de manhã uma confusão na cozinha porque a criada não havia cozido os ovos e o leite não havia chegado.

Depois de calçar as botas lustradas a esmero, fardado e medalhado, descendo pra frente da casa de morada, reuniu a tropa, nada mais que uns trinta soldados rasos, dois oficiais e uns cinco escravos como pessoal da logística. Marchar até a distante praia da Pedra do Sal, umas quatro léguas e meia de Ilha Grande de Santa Isabel pra dentro, esperar que aparecessem os franceses, que segundo alguns fofoqueiros da praça da Graça, seriam comandados pelo próprio imperador, que ao que constava, muito queria conhecer o delta do Parnaíba e principalmente o porto dos Tatus.

Simplício Dias da Silva naquela manhã estava com a cachorra! Mandou perfilar a tropa e a banda executar o hino de Portugal e aquela música do Airton Senna. Depois subiu as escadas à procura de dona Isabel Thomásia pra dar algumas instruções, em caso de ocorrer algum infausto na campanha. Os negros iam levando em grandes caixas de madeira, a farinha, a carne seca e nas ancoretas a água pra beber. Só e não tinha outra coisa não. Os soldados armados com espingardas velhas de encher pela boca, estavam um aqui e outro ali reclamando porque não haviam recebido as diárias.

Foi emocionante e ao mesmo tempo triste a expedição dos voluntários da Parnaíba que iriam enfrentar Napoleão Bonaparte e os seus soldados naquela que se chamaria a Batalha da Pedra do Sal. Choro e ranger de dentes. Ranger de dentes mesmo era pra os escravos tendo que levar na cabeça e nos ombros todos aqueles apetrechos, aquela arrumação toda sabendo que iriam voltar com a cara calçada de vergonha. Atravessaram o Igaraçu e entraram de ilha adentro. Simplício e os oficiais montados a cavalo e os soldados a pé e ainda cantando, que era pra ninguém ficar mangando ou reclamando uns dos outros. Castigo era meia dúzia de bolo de palmatória de número dois, aquela que tem um furo no meio.

Depois de cinco horas de marcha batida havia gente arrenegando de ter deixado o bem bom da caserna! Um sol de rachar os miolos. Carnaúba pra tudo que era lado e depois as enormes dunas de areia quente queimando o solado dos pés. Levaram um dia inteiro nessa arrumação. Simplício de vez em quando olhava pra trás pra ver se alguém estava fazendo corpo mole ou querendo correr no rumo do Labino. Ao final da tarde avistaram as pedras enormes. Os animais, os soldados e os negros estavam enfadados, mas ninguém reclamou ou deu um piu! O pessoal da logística foi logo tratando de montar as barracas onde iriam dormir o capitão Simplício Dias e os oficiais.

Passaram dez dias esperando um sinal que fosse vindo do mar. Comendo carne seca com farinha branca e bebendo água racionada. Ninguém tomava banho. Nos três primeiros dias os soldados passavam o dia marchando e recebendo instruções de combate. Mas do quarto dia em diante, como ninguém era de ferro e nem via e nem ouvia um sinal de vida, uns foram saindo e ganhando as pedras, outros pescando, outros fazendo poesia.

E outros se danaram a escrever os nomes de esposas, namoradas, amantes e casos nas pedras. Era letra de tudo quanto era jeito e tamanho. Anita, Solange, Marilda, Pretinha, Diane, Lucineide, Socorrinha, Angélica, Bruna, Fransquinha, Lurdinha, Patrícia, Rebeca. Encheram as pedras de declarações de amor, corações e de nomes. Simplício fazia que não estava vendo nada. Passava o dia riscando o chão de areia fofa com um graveto e mandando os oficiais menores procurarem o que fazer ou indo até a parte da cozinha de campanha olhar pra dentro das panelas.

A água e a paciência dos soldados estavam acabando, mas ninguém reclamava de nada. Tinha soldado que estava achando aquilo uma beleza que não iria nunca mais se repetir tão cedo. Simplício Dias da Silva começou a ficar impaciente e desmotivado. Olhava pra aquele mundo de água salgada e não via um sinal de nada. Já começava a criar uma escuma nos cantos da boca quando chamou todo mundo e mandou que debandassem. Napoleão deve ter desistido com medo. Só podia ser!  

quinta-feira, 27 de junho de 2019

O calango à francesa

Fonte: Google



O calango à francesa

Pádua Marques
Jornalista e escritor

Simplício estava feliz, embora por dentro com o coração aos pedaços. Havia tempos que sentia e via sua fortuna e opulência saindo de dentro de casa e indo parar na mão de agiotas em São Luiz. Tudo por conta das investidas que achou de dar nas tramas da política, as intrigas com vizinhos por causa do irmão Raimundo, assassinado quase na porta de casa e de brigar por terras que não eram suas e nem seriam de seus descendentes.

Constance e Apolinaire Dabreux chegaram numa canoa larga puxada a remos por doze negros, vindos da Tutoia, no distante Maranhão. Era por volta do meio dia quando subiram o barranco que dava para a casa de Simplício Dias da Silva e sua família. A francesa subiu numa liteira carregada por dois criados enquanto o marido foi montado num cavalo pequeno.

Simplício e dona Isabel receberam os visitantes ainda na parte de baixo do sobrado de paredes encardidas, de dois andares, no meio entre um outro de esquina e a igreja, de frente para um campo de areia onde a vista mal alcançava. A mulher do anfitrião brasileiro estava vestida sem muita ostentação. Não era bonita. Morena, baixa, rosto latino e tinha uma verruga embaixo do lábio. Em Constance causou uma certa repugnância, mas se conteve. A filha, uma menina de seus onze anos, de pouca presença.

Era o que se esperava de uma criança nascida e criada naquele lugar de pouca gente civilizada, com as poucas ruas cheias de soldados, homens rudes e negros suados, embarcadiços e negras nos mais diferentes ofícios. Constance tão logo subiu as robustas escadas de madeira para acomodar a bagagem, trouxe na volta uma caixa. Chamou a menina e entregou pedindo que abrisse o presente. Uma bonita boneca de porcelana, olhos pintados de azul e cabelos humanos.

Uma joia na frente daquelas suas de pano ou de sabugo de milho feitas pelas criadas. Recebeu e tratou de se retirar sem agradecer. Era acanhada demais e mais ainda com estranhos. Para dona Isabel Thomásia, um xale negro de renda espanhola e um corte de seda azul turquesa. Simplício havia ganhado de presente de Apolinaire Dabreux um rico estojo de escrita com tinteiro de prata e cuja tampa era de cristal da Boêmia.

Os dois homens agora conversavam na janela de cima do segundo piso enquanto olhavam o serviço dos negros lá embaixo no cais. Olhando em volta, nada era verdade do que Constance ouviu pela boca de outros franceses encantados com a América do Sul. Simplício e sua família estavam arruinados. A pobreza começava a bater na sua casa pela porta dos fundos e a cozinha era testemunha. Mas com o casal estrangeiro, Simplício quis fazer bonito.

Na missa de domingo, Constance e Apolinaire Dabreux, Simplício Dias e dona Isabel Thomásia ficaram na parte reservada aos principais. Após a demorada celebração foi ordenado que entrassem três negros, todos jovens, entre quinze e vinte anos. Era a orquestra de que tanto Constance e o marido ouviram falar ainda no porto de Marselle, de que um rico comerciante no Piauí mantinha às suas custas. Executaram duas peças sacras curtas e saíram silenciosos. Estavam vestidos com roupas ordinárias e mal cortadas. Mas um detalhe chamou a atenção, estavam descalços.

Apolinaire Dabreux acompanhava a música dos escravos com os olhos fechados, a mão na boca escondendo uma certa surpresa e reprovação. Como podia numa terra daquela, distante da sua França e da civilização, alguém à custa de muita teimosia e violência meter na cabeça daqueles negros um rasgo de arte, uma arte que só era possível e vinda da Europa? Simplício olhava para o casal francês como que procurando aprovação. Estava radiante.

No almoço, servido na parte de baixo do sobrado, a mesa estava farta. Fazia muito tempo que isso não acontecia. A louça estava limpa, os talheres lustrados à custa de muita areia lavada e sabão de coco. Bananas, mangas e laranjas vindas do distante Maranhão, carne de gado ensopada, perus e galinhas assados, vinho do Porto e água de coco. Constance ficou admirada com aquela bebida. Apolinaire não demonstrou muito gosto pela novidade. Mas bebeu um copo.

De repente, assim do nada, todos sentados em volta da mesa enquanto a criadagem trazia e retirava pratos, entra um calango. Simplício, que vinha convalescendo de umas bolhas nos pés, foi o primeiro a dar sentido. O lagarto feio, pele entre o negro e o cinzento e que quando parado ficava balançando a cabeça, atarantado, correu para debaixo da mesa e quase se perde embaixo dos vestidos das mulheres. Gritos e mais gritos se ouviram. Os criados vieram com pedaços de pau e cabos de vassoura tentando achar e espantar o bicho.

Já nesse instante as duas mulheres haviam subido as escadas e estavam muito aflitas. Um calango. Simplício se pôs a dizer para Apolinaire Dabreux como era viver numa terra ainda cheia de animais venenosos e até de vez por outros selvagens. O francês ia ouvindo tudo, concordando e consigo pensando. Não, aquela terra perdida da América do Sul iria apenas ser outra Jamaica, Haiti e Cuba. Não e nunca seria como a França! Na sua França jamais se teriam calangos à mesa.    

terça-feira, 25 de junho de 2019

UM NOVO FICCIONISTA PIAUIENSE: JOSÉ DE RIBAMAR NUNES




UM NOVO FICCIONISTA PIAUIENSE: JOSÉ DE RIBAMAR NUNES

Cunha e Silva Filho

           Professor formado em Letras (UFPI), com especialização  em Teoria do Texto e  em  Literatura de Língua Portuguesa, além de  ser advogado e ex-funcionário do Banco do Brasil,  José  de Ribamar Nunes,  já maduro,   lança um  livro   de ficção, uma novela   para ser mais específico, cujo  titulo  logo   espicaça a curiosidade do leitor  pelo seu nome pitoresco  e sugestivo, caracterizando,   de início,  uma  narrativa  definidora  de um  determinado  espaço social e cultural  de Teresina, capital  Estado  do Piauí: Morro do Querosene, Prefácio de Celso Barros Coelho (Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2019. 206 p. Coleção Século XXI, nº 24. Capa e Revisão de Adriano Lobão Aragão.

     Por coincidência,    conheço  o autor  e sei  que é uma pessoa  muito   dedicada e  envolvida  com  a vida literária e cultural   piauiense e, por  essas razões, seria de se esperar que,  a qualquer  tempo,   viesse  a  publicar   uma obra  de estreia  que,  por suas  qualidades   de texto fluente  limpo, correto,  revela um  novo  ficcionista    com domínio  da história a ser contada,  com   perfeita harmonia  no desenvolvimento  de seus capítulos,  de resto,   muito bem  divididos e ainda mais agradáveis à leitura  por serem   curtos na maioria, o mais extenso  não ultrapassando  umas três páginas.

      Ora, uma estratégia  dessas  adotada pelo autor não é fácil de   contentar o leitor   a menos que  o capítulo  concentre em si  bem relatadas  células narrativas,   nos dando a sensação  da unidade  de cada    peripécia e nos impelindo  a ler com prazer os  relatos seguintes do livro.

   Nesse diapasão  de expor  seus vivíssimos, dinâmicos    e saborosos   relatos, perfazendo ao todo  cinquenta e um capítulos,  o narrador nos instiga a conhecer  a vida de bairros pobres teresinenses, alguns meus  velhos conhecidos do  tempo de menino  em Teresina,   como  o Porenquanto a Vermelha, a Piçarra quando partia  com amiguinhos da minha infância e  começo da adolescência em direção  aos banhos do rio Poti,  ou  quando passava  pelos  trilhos  da velha Estação  Ferroviária, ou pelo  velhusco  25 BC.        

     O enredo do Morro do Querosene  se desenvolve  em torno  da vida de aperturas  financeiras da família  de dona Joana que, primeiro, morava  no bairro  pobre do Porenquanto,  depois, sendo obrigada,   por não poder pagar o aluguel,  a fazer mudança para um novo   bairro,  a Piçarra.

     Dona   Joana, mãe dedicada  aos filhos, empregada  doméstica,   ainda  se virava em outras atividades   a fim  de prover  o sustento da família  e ainda mais porque  o marido  a deixara   sozinha à procura    de trabalho em outra terra.   Dos filhos pequenos, em número de quatro,  um deles, o João Luís, vai  desempenhar papel  decisivo na  história,  peça humana de menino a fazer girar a história  e a mostrar o quanto   a memória infantil-juvenil   é capaz de guardar  o bom  e o ruim  da existência humana e, se possível,  tentar  superar  as vicissitudes.   O movimento dos capítulos é acelerado, não havendo nem tempo  para   o leitor  se sentir  entediado, já que  a narrativa  o empurra para a frente  e satisfaz  o leitor  curioso  de conhecer novos e  palpitantes episódios  da novela.   
  
    Pode-se afirmar que  o personagem João Luís,  tão bem elaborado pelo autor, está fadado a ser uma  criação literária   que seguramente    comporá  a galeria de figuras  infanto-juvenis  da história da ficção piauiense (como aconteceu com Pedrinho,  em Ternura (1993),  romance de Francisco Miguel de  Moura). Sem tal grandeza de  personagem, a narrativa  não teria o bom resultado  que, a meu ver, teve em termos  de composição   ficcional. João Luís é  um personagem  que  salta do texto à vida  pelo convencimento de atributos  humanos   que o autor nele infunde com naturalidade,  sem artifícios  nem jogos de marionetes. Outros  na narrativa até podem  ser  rotulados  como apenas  figurações  sem  suporte   ficcional.

     A ficção de autores piauienses tem  tido razoável fortuna  crítica  em  romances  ou novelas   vivenciados  na cidade de Teresina. De autores do Piauí, posso bem lembrar aqui, no passado mais remoto ou menos remoto, ou mesmo atual, O Manicaca (1909), de Abdias Neve (1876-1928),  narrativa  ambientada na Teresina dos derradeiros anos do século XIX, ou menos remoto,  parte de Ulisses entre o amor e a morte (Teresina, Meridiano,1986),  de  O.G. Rego de Carvalho, Rio Subterrâneo (Teresina: Meridiano, 8ª edição,1888 ),  parte em Teresina, também de O. G. Rego de Carvalho, ou mais atual, Entardecer (2007),  de José Ribamar Garcia,  Meia-vida (1999),  enfocando  principalmente a área do troca-troca de Teresina, de Oton Lustosa, o excelente romance Vozes da  Ribanceira, no qual o cenário principal é o Poti (2003), também de  Oton  Lustosa,   Sabor de vingança (2015),  centrado no espaço da crescente  violência urbana  teresinense de Milton Borges.

    O narrador do  Morro do Querosene, em terceira pessoa,    apresenta um traço  singular:  dando voz ao  pensamento  da  perspectiva   de um personagem,  emprega, aqui e ali,  o discurso indireto livre,  o que  reforça uma forma  multifocal de  narrativa.  Mesmo quando  falando  de João Luís,   a voz do narrador  se orienta  pela perspectiva  ou  ângulo de visão  do pequeno   João Luís. Sendo assim, é    através sobretudo das aventuras infanto-juvenis desse personagem encantador   que a novela  propicia  uma visão por dentro  e por fora  da  realidade social e cultural  daquele  entorno   da Piçarra chamado Morro do Querosene – lugar tão  badalado nas suas    peculiaridades   de ser  o espaço da  prostituição e ao mesmo tempo  de residências  populares  das ruas  circunvizinhas.

      Duas observações  farei ao autor a seguir. Uma, de ordem de construção  textual do primeiro parágrafo   da narrativa, na qual separaria com um  ponto final a frase “Era um dia de domingo” e começaria com  maiúscula  a frase seguinte: “Pela manhã, de um mês de junho amenizava o calor  abrasador de Teresina que só atingiria  o ponto mais alto dali a dois ou três meses.”  A segunda observação  seria    de ordem técnico-narrativa e  se refere ao próprio narrador que se trai e se transforma, por um segundo de tempo de leitura,  em autor, através do uso de um dêitico, na expressão adverbial de lugar “aqui no Piauí” (p. 170). Desse modo,  ele sai da condição de  narrador (elemento interno do enunciado ) e passa à condição de autor (elemento  externo à narrativa )  no fluxo narrativo  em terceira pessoa. Bastaria para contornar   isso,  eliminar  o dêitico e a contração  “no.”

    O Morro seria um espécie de  centro nevrálgico da narrativa  -  uma espécie de personagem   inanimado   dos acontecimentos,   das alegrias, das tristezas, das tragédias,  dores, das desventuras, dos  incidentes  hilariantes    daquela  população  pobre  que ali residia. Para trás, ficara  definitivamente   o bairro Porenquanto, ao qual, malgrado a pobreza,  já estavam  habituados. Deixaram   um travo   de saudades de amizades e  brincadeiras  infantis.

     Por ouro lado,  o novo bairro da Piçarra começava a despertar no  pequeno João, porque  oferecia mais espaço aberto,  a antevisão  do principal  divertimento  da  sua fase da infância e adolescência   - o futebol  - símbolo de outros meninos  de várias gerações  de brasileirinhos   apaixonados por esse esporte, esse  “grande catalizador” assim definido pelo pensador e crítico literário  Tristão de Athayde ( Alceu Amoroso Lima, 1893-1983).

       A novela é igualmente uma  história  que, se não fosse exemplo de  honestidade   e de dignidade  de alguns de seus personagens despossuídos,  caso houvesse descambado  para  uma dimensão de personagens  desprovidas  de dignidade,  bem poderia ser um  prato cheio para uma novela  neopicaresca   tendo como  protagonista  as aventuras  do menino  João Luís. Entretanto,  o autor  perfilou  um personagem   da envergadura moral   desse menino  que, pelo comportamento   reto,  bem poderia   se enquadrar  numa novela de formação (Bildungsroman) se a continuidade do tempo  dos  episódios atingisse a maturidade  do herói.

      A novela  faz um recorte  temporal  que, grosso modo,  a situaria entre  os meados dos anos 1950 à primeira  metade dos anos 1960, numa Teresina ainda não  tomada  pelos anos  de modernização  mais  intensa  e de formação de novos bairros  com vida urbana    frenética    acossada pela violência. É nessa  Teresina  que  a vida de João Luís se vai consolidando  pelas diversas experiências  e mudanças  físicas, psicológicas, sociais e      culturais, em especial a passagem delicada de criança a rapazinho,  a descoberta do sexo, o onanismo,   as motivações,  ainda que  pueris,  amorosas,   o aprendizado do  sexo com marafonas e outras experiências  com  vícios  incentivados por más companhias.

       Da mesma forma, a visão social cedo despertada   pela frequência do protagonista na fase de crescimento  a outros ambientes sociais  mais   elevados  vai-se alargando  na consciência do João Luís, mas sem que a narrativa  entre no limiar da problematização  das relações de classe.

      Não há esse intenção  pelo menos abertamente declarada. No entanto,    o que  a narrativa  exibir são realidades estratificadas,  a dos despossuídos, dos remediados,  dos ricos. Duas saídas se vislumbram  para a mobilidade social:  a) por inciativa própria  e grande determinação  que possa  elevar   alguém a uma posição socialmente melhor. Poderia ser aqui  o caso de João Luís;  b) pela via de um casamento melhor (Maria Antônia, irmã de João Luís)  para um filha de pais  humildes.

      A importância da obra Morro do Querosene se reveste nas descrições  e narrações   precisas  e documentais  de uma ficção de costumes   de um bairro  periférico   de Teresina, de  situações  da realidade  vivida e presenciada  pela população  que ali  vivia  à sombra  protetora ou não do Morro. O quotidiano desse enclave social  radiografa, com mão de  mestre,   o pequeno mundo de seus habitantes  sujeito  às intempéries do dinamismo   social avassalador. . A família da  laboriosa  e honesta  dona Joana é apenas  uma   amostra do que seja  um fiel  retrato social  de uma dada fase passada   da vida teresinense.

    Julgo que, com essa obra inicial,   José  de Ribamar Nunes   se insere  de fato e de direito,   sem alardes nem   apadrinhamentos,   na história da ficção  atual do Piauí.       

domingo, 23 de junho de 2019

BARRAS DAS SETE BARRAS


Fonte: Acesse Piauí/Glogle

BARRAS DAS SETE BARRAS

Elmar Carvalho

                                   Ao historiador e amigo
                                   Dr. Wilson Carvalho Gonçalves

Barras ...
Barras do Marataoan ...
Dos cânticos de pássaros
e cântaros e címbalos de águas
em cantatas e cascatas
no rocio róseo-violáceo da manhã.
Barras das sete barras
– candelabro de sete braços de prata
líquida a escorregar macia
no dorso duro das pedras.
Barras do Longá alongando-se
e se estilhaçando em rondas de lãs
                                em rendas de espumas
nos bilros das pedras tecelãs.
Terra dos Governadores,
            do desgoverno das dores
das ciliciadas paixões
deliciadas na Ilha dos Amores.
Terra de uns olhos fluidos,
feitos de mágoas, magia e garrice,
embebidos na ciganice das águas.
Terra dos milagres da Alda,
a que morreu virgem,
na vertigem de um sonho
que num átimo se fez e desfez.
Barras da barragem
– miragem verdoenga
de minha origem/aragem avoenga.
Barras de risos e de ais
             de sempre e de jamais.
Barras das sete barras
Barras dos sete punhais
 de rios que se tecem pavios
e desvarios de réquiens
e exaltações, lembranças
e exalações ...