segunda-feira, 7 de junho de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS

Elmar Carvalho


O CORTEJO DOS PÁSSAROS

Era um homem bom. Sem arestas. Nunca se lhe ouviu palavras ásperas, nem de queixas, nem de azedumes. Servidor público, nunca ambicionou cargos comissionados. Mas sempre sustentou a família com dignidade. Entretanto, sem luxo nem ostentação. Dizia-se cristão, e frequentava todas as igrejas de sua cidade, tanto a católica como as evangélicas. Quando lhe questionavam sobre isso, respondia que todos somos irmãos em Cristo e em Deus, e que as igrejas eram as diferentes maneiras de se buscar Deus; e que todos buscavam Deus, mesmo os que não frequentavam nenhum culto, mesmo os que se diziam ateus. Dizia que uma pessoa não tinha culpa de não ter fé. Em suas folgas, prestava serviços em hospitais e abrigos de órfãos e idosos. Pedia esmola em benefício dos desamparados. As moedas pareciam se multiplicar em suas mãos, e ele conseguiu construir umas pequenas casas para seus velhinhos. Discretamente, alimentava os vira-latas da cidade, que vagavam sem dono, à procura de restos de comida. A cajazeira de seu quintal era abrigo de pássaros, pois ele tinha o hábito de lhes jogar alimentos. Havia mesmo quem dissesse haver visto passarinhos pousados em seus ombros ou em suas mãos. Sua fala era mansa, baixa e pausada, como se temesse incomodar ouvidos mais sensíveis. Parecia evitar a palavra eu, embora de forma velada, quase imperceptível. Muitas vezes parecia absorto, como se estivesse ausente de si mesmo. Nessas ocasiões seus lábios pareciam se mover, como se estivessem falando. Todos sabiam que ele estava contrito, em fervorosa oração. Todos se sentiam bem e confortados em sua presença. Um dia, quando falava em Deus, quando falava do seu desejo de a cada dia se aproximar mais Dele, com ar de mansa felicidade, de verdadeira beatitude, silenciou, porém mantendo um leve sorriso nos lábios. Pensaram que estava a meditar ou a orar, alheado do mundo e de si próprio. Depois de alguns minutos, constaram que ele havia morrido, na mais profunda paz, sem medo, sem sofrimento. Quase toda a cidade foi a seu sepultamento. Foram velhos, mendigos e órfãos, que ele ajudara de alguma forma. Viram alguns cães acompanharem o cortejo. Muitos acharam que era simples coincidência a presença dos vira-latas. Mas quando viram, adejando sobre a cova, uma revoada de pássaros, que voltearam até o momento final da cerimônia fúnebre, já não acharam que fosse tanta coincidência assim. Ainda mais porque o bando era composto por diferentes tipos de aves. Quando tudo terminou e todos abandonavam a necrópole, os pássaros, que ninguém sabia de onde vierem, modularam diferentes gorjeios; fizeram uma grande espiral em direção ao céu, e depois sumiram no azul do horizonte longínquo.

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