segunda-feira, 6 de setembro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS



O CORCUNDA E SUAS ALMAS

Elmar Carvalho

Chamava-se Perácio Pinto Pereira. Mas os amigos íntimos o chamavam simplesmente de PPP ou Pereirão, quando estavam mais efusivos nas rodas de cerveja. Ele parecia gostar do aumentativo. Integrara a Força Expedicionária Brasileira – FEB. Nas paradas de 7 de setembro, desfilava na avenida Frei Serafim, a ostentar as brunidas medalhas de herói. Guerreara na Itália e ficara com neurose de guerra. Sempre fora um tipo excêntrico, fanfarrão e falastrão. Também tivera a sua dose de herança genética da esquizofrenia, que atacara vários membros de sua família. A doença progredira, com a guerra e com a idade. Quando voltou da Itália, lecionou Geografia e História no Colégio das Irmãs, por pouco tempo. Certo dia, em que as alunas adolescentes estavam a fazer algazarra nas cadeiras de trás da sala, durante a aplicação de prova, Pereira, em linguagem desabrida, como era do seu feitio, com seu vozeirão tonitruante, mandou que elas fizessem silêncio, senão mandaria “pau na retaguarda”, no sentido de que as reprovaria. As alunas se sentiram ofendidas com a linguagem metafórica do mestre, e foram se queixar para a irmã diretora do educandário, e o certo é que Perreira foi exonerado do cargo.

Após esse episódio burlesco, que faz parte de seu anedotário, foi lecionar no Domício. Em suas aulas, contava piadas, com o seu jeito extrovertido e expansivo. Às vezes, com nítido exagero, contava as suas verídicas e supostas proezas nas batalhas contra o fascismo italiano. Contava detalhes, quando falava em esguichos de sangue e em pedaços de cérebros estilhaçados. Suas excentricidades e esquizofrenia progrediam a olhos vistos. Certa ocasião, quando narrava um episódio de guerra de que teria sido protagonista, sentado em cima da mesa, e não à mesa, como seria o usual, um aluno irreverente lançou pela janela uma forte bomba de São João, que certeiramente foi parar debaixo da mesa. Quando o artefato estourou, Pereira se jogou ao chão, e saiu rolando para debaixo de uma carteira, gritando a pleno pulmões: “Soldados, entrem nas trincheiras, o inimigo está atacando!” Somente com muito esforço, o diretor conseguiu acalmá-lo e convencê-lo de que não havia guerra; que estava na época dos festejos juninos, e um aluno gaiato, ainda não identificado, jogara um traque poderoso na sala de aula.

Com a velhice, além da loucura, que então já era acentuada, Pereira adquiriu uma proeminente corcunda. Andava bastante curvado. Parecia um pequenino Atlas, a carregar o mundo nas costas. Um dia lhe perguntaram sobre a causa de sua corcunda. Pereira olhou fixamente o interlocutor, e com ar sério e compungido, imerso em sombrios pensamentos, como se estivesse impregnado de remorsos e sofrimentos, respondeu que não tinha corcunda; que andava curvado pelo peso das almas dos homens que matara em Monte Castello. E saiu a cantarolar uma linda e triste melodia italiana.

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