SIMÃO PEDRO
A lembrança me traz ainda a cantiga alegre ouvida nos tempos de criança: “Acorda Maria Bonita, acorda vem fazer o café, o dia já vem raiando e a policia já ta de pé...” Esse canto vivo e forte estremecia toda a rua como um forte trovão no inicio do inverno. Saía porta a fora em disparada atraído pelo canto pra ver aquela mulher se aproximando. Lá estava ela, uma figura enorme para os nossos padrões de mulher, a pele negra se escondia atrás de uma tanga encarnada, seus peitos enormes e arfantes desafiavam a gravidade com seus bicos enormes. A voz continuava firme: “-Acorda Maria Bonita...” Um lenço colorido emoldurava sua cabeça com pontas que balançavam pelos ombros; argolas enormes pendiam da suas orelhas pequenas e uma chupeta azul desbotada e suja caía pendurada no seu pescoço.
A visão que eu tinha era de uma Deusa Africana, ali materializada. Eu acompanhava aquele quadro em silêncio, assustado; os olhos compridos percorriam aquela imagem, me impressionava tudo aquilo. Aos poucos a alegria do canto ia cedendo, dando lugar a uma tristeza imensa. Perturbada, aquela mulher que sorria agora chorava em minha frente, lágrimas caíam da suas faces, um rosto transtornado agora buscava a multidão que de longe assistia ao espetáculo que se desenhava ali. As pessoas pareciam indiferentes àquela criatura, muitos zombavam e riam daquela pobre alma, ela permanecia ali, sem que ninguém ensaiasse um acolhimento. De repente vi aquela mulher se apequenando diante da multidão e num grito de desespero correu ao seu protetor pedindo socorro: - “Papai Turuka, me ajude!” . De braços abertos aquele homem acolhia a pobre e infeliz criatura. Eu, aos poucos, me aproximava para ver de perto e não perder nenhum detalhe da cena. Via-o envolvendo aquele corpo com um lençol. Ela, agitada e chorando muito, deixava escapar palavrões terríveis. Só se acalmando quando ele colocava em suas narinas um chumaço de algodão embebido em amoníaco.
A multidão ia aos poucos se dispersando. A pobre mulher estava em silêncio agora, dormia um sono profundo. Depois, despertando da letargia, não se dava conta do que tinha lhe acontecido. Nos períodos de calmaria, era uma dona de casa impecável, cozinhava como ninguém e gostava de ver tudo limpo e arrumado. Não tinha casa, vivia a maior parte do tempo na cadeia pública da cidade. Fez de lá por muito tempo o seu lar. Cuidava da cozinha, fazia a limpeza, lavava e passava, atendendo os presos e a própria polícia, sem ganhar um tostão.
Nas horas vagas era ainda abusada sexualmente pelos que ali zelavam pela segurança. Foi mãe de uma grande prole, nascidos da exploração a que era submetida. Suas crises se tornavam mais freqüentes após os partos, quando seus filhos eram dela apartados. Nas crises, gostava de usar uma chupeta e sempre carregava uma boneca nos braços, parecia querer substituir os filhos que dela eram separados. A sua condição não permitia exercer seu papel de Mãe junto a eles, devido a sua debilidade. Seu nome de batismo era Ester, e a ele acrescentaram o sobrenome de: “doida”. Não sei a qual família pertencia, mas dizem que ela era do bairro Cariri. Seu último pouso, foi o Novo Hotel, morou ali alguns anos com a Dona Celestina e o Seu Miguelzinho.
Nos últimos anos, conservava ainda aquele lenço colorido e as argolas redondas, na face estampava ainda um sorriso tímido. Seus seios caíam por cima de uma enorme barriga, seu corpo em quase nada lembrava aquela deusa africana. Morou ali ainda por muito tempo, só saindo por conta de uma briga que teve com a delicada Isabel Puba, que morava ali num quartinho na lateral do Hotel.Depois dessa confusão, uma filha apiedada da sua condição, resolveu finalmente dar a ela o lar que tanto sonhou.
A sua última crise por mim testemunhada, se deu em junho de 1970, com a partida do seu protetor, o “papai Turuka”. Ela ao tomar conhecimento do fato, inconformada com a perda, entra em desequilíbrio. Corre despida até o cemitério e é encontrada escavando o túmulo do seu protetor com as próprias mãos. Por três dias rondou aquele lugar, que ficou guardado por dois homens, pra evitar sua ação. O tempo passou, mas ela sempre que nos avistava , com os olhos cheios dágua, fazia a pergunta de sempre: - “ Cadê o Papai Turuka ?” Nas minhas reflexões fico a perguntar, por onde andas, Ester? Pra onde foi o teu canto? O que a vida fez com teus encantos? Por onde anda nossa Deusa Africana?
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