terça-feira, 29 de março de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO


29 de março

O ÚLTIMO GALO

Elmar Carvalho

Quando, por uma curta temporada, fui morar na zona rural, passei a prestar atenção no canto dos galos. Ficava alegre ao ouvir esse cantar vibrante, metálico, que parecia uma trombeta anunciando o amanhecer. Ao ouvi-lo, sabia que o dia vinha chegando, e que logo a vida ativa começaria. Com a alvorada dos galos, eu tinha a certeza de que os fantasmas bateriam em retirada, e já não iriam assombrar ninguém. Esses animais, por alguns, são vistos como guerreiros, por causa da crista vistosa, a lembrar um elmo, do bico adunco, como de ave de rapina, e sobretudo por causa dos esporões agressivos, que ferem como punhais, que cortam como esporas, que dilaceram como cilícios.

São associados a vigias, por causa da corneta denunciadora de seu canto. Por causa do episódio bíblico, em que Cristo disse a Pedro que este o negaria três vezes, antes que o galo cantasse, naquele dia triste e de mau presságio, parecem denunciar a fragilidade e a pusilanimidade do homem. Por isso, galos metálicos são colocados nos campanários das igrejas, como advertência para que não reneguemos Cristo novamente, ou, talvez, por causa de outro simbolismo que desconheço. Mas sempre significando que devemos manter vigilância sobre nós mesmos. Vigiai e orai para que não entreis em tentação – disse Jesus. O galo, como um sentinela vivo no seu poleiro ou como simulacro de metal nos mirantes ou nas torres dos templos, há de nos lembrar a negação de Pedro e a admoestação de Cristo.

Adolescente, creio que ao cursar o antigo ginásio, li o poema de João Cabral de Melo Neto, afirmando que um galo sozinho não teceria uma manhã, mas que sempre haveria a necessidade de outros galos. Foi um dos meus primeiros grandes contatos com a poesia moderna, uma vez que eu já conhecia relativamente bem os poetas do romantismo, do parnasianismo e do simbolismo. Julgo não ter tido nenhuma dificuldade em interpretar o poema de João Cabral. Entendi bem as suas rupturas sintáticas, as supressões de palavras, como se as frases e os versos estivessem truncados, mas na verdade apenas “enxugando” o texto, através de elipses sem nenhum enigma. Achei criativos e apropriados esses cortes, porém só “materializei” as metáforas há poucos dias.

Foi quando, em certa madrugada, ouvi uma alvorada festiva de galos, aqui em Regeneração. As aves, por razão que desconheço, estavam excepcionalmente inspiradas e ativas. Um canto era desferido aqui perto, outro respondia mais além. Um vinha do nascente, o outro parecia estourar no poente; um à esquerda, o seguinte à direita. De repente, a cantiga amiudou, e eu já não sabia ao certo de onde provinha o alvoroço musical. Houve um momento em que os cocorocós pareceram formar uma mesma e única massa compacta, a se entrecruzarem, se entretendendo como no poema. Então, em minha mente, o poema se tornou uma imagem, e senti que os cantos formaram fios, que formaram teia; teia, que formou tecido; tecido, que formou tenda; tenda, que formou um circo, onde todos os galos se esgoelavam. Porém, os fios se foram desfiando, se esgarçando, se desfazendo, quando foi minguando o número dos galos que cantavam.

Até que o sol estrangulou o canto na garganta do último galo.

4 comentários:

  1. Joserita Maria de Melo Carvalho31 de março de 2011 às 00:11

    Dizem que quando nasce o dia, o galo canta bem alto para avisar ao galinheiro que continua vivo e no comando. O canto tem a função de assustar eventuais desafiantes e foi a forma que ele encontrou para controlar seu território...rs


    Quanto ao canto do galo no episódio bíblico acho que, como já era de noite, e o galo canta na madrugada, ao raiar do dia, foi somente uma questão de "espaço de tempo", Jesus quis mostrar a Pedro, que tinha acabado dizer que daria a vida por Ele, em tão curto espaço de tempo o negou, o quanto ele(Pedro) era covarde, medroso, limitado.... e essa advertência realmente serve para que nós vigiemos e oremos p/ não negarmos a Cristo e nem nos engonharmos de fazer a Sua vontade.

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  2. Ah agora lembrei...quando a gente morava em Parnaiba compramos um galo p/ criar. O bicho era grande e bonito! Era sagrado ele cantar toda madrugada, as 04:00, 4:30 e as 05:00, e cantava bem alto. Apesar dos nossos vizinhos nunca terem reclamado, pelo menos p/ nós, achamos melhor nos desfazermos dele, sob protesto das meninas, uma vez que nós mesmo muitas vezes nos incomodávamos com aquele "relógio" vivo que nunca atrasava.

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  3. Não sei se é porque eu já morava em Teresina, mas não estou me recordando desse penoso tão zoadento.De qualquer sorte, com a maestria de nossa mãe, deve ter rendido uma gostosa cabidela...

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  4. rsrs.... Meu irmão realmente teria dado uma gostosa cabidela se fosse na casa da mamãe....mas este acontecido foi há pouco tempo.... na minha casa, e como eu não tenho o dom da nossa mãe p/ culinária pedi ao meu marido p/ vender o zoadento em questão.

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