13 de abril
MANHÃ CHUVOSA
Elmar Carvalho
Como disse Fernando Pessoa, em versos, hoje o dia deu em chuvoso, ao menos no início desta manhã um tanto friorenta. Do alpendre, eu via a chuva cair sobre as grandes árvores do quintal vizinho. Fiquei a imaginar uma chuva torrencial, batida por forte ventania, numa grande floresta, e sobre como seria a reação dos animais. Qual a sensação das aves pousadas nos galhos? Frio, medo, arrepio, calafrio, desconforto, alegria, ou um misto de tudo isso? E como reagiriam os outros animais, em seus buracos na terra ou nos troncos das árvores, nas tocas, nas locas, nas furnas, nos socavões das serras e nas cavernas? Teriam medo, quando do ribombar dos fortes trovões? Teriam pavor da luz ofuscante dos relâmpagos, a ferir a densa treva das florestas fechadas? Ou simplesmente enfrentariam, com a maior naturalidade, esses fenômenos e circunstâncias, já que acostumados com eles desde o nascimento, sem o uso de agasalhos e sem telhados?
Já cantei a chuva num longo poema. E tomei banho de chuva na minha infância, mas não tantas vezes como acho que deveria. Alguns anos atrás, já adulto, quando eu estava num dos cimos da Serra Azul, caiu uma forte chuva, inesperadamente. Logo se formou um córrego, que se precipitava pela encosta abrupta. Numa depressão que havia, formou-se uma espécie de piscina, que nos proporcionou um banho inigualável. Antes, quando havia um sol forte, nos abrigamos numa pequena choça de caçador; ela que nos deu sombra, jamais conseguiria nos proteger da chuva, com seu teto esburacado. Mas essa proteção era tudo que não queríamos. O que desejávamos mesmo era o afago da chuva, enquanto nos deliciávamos na piscina a que me referi. Estávamos no cume do monte o Hulk, que não era verde como o incrível personagem de que lhe adveio a alcunha, o Zé Francisco Marques, o Ximenes, que foi nosso guia e era caçador em suas folgas de servidor público, meu irmão Antônio José e eu. Faltava na composição desse grupo de intrépidos aventureiros o meu cunhado Zé Henrique, por motivo que já não recordo. Já lá se vão mais de dez anos em que fomos abençoados e benzidos por essa chuva que nos surpreendeu no alto de um dos morros azuis de Santo Antônio do Surubim.
Mas hoje foi muito diferente. A chuva era mansa e eu estava abrigado. Primeiro, no aconchego do apartamento, depois, pelo guarda-chuva, negro como manda a praxe mais tradicionalista. Ao seguir pelo largo corredor do Pingo d' Água, ouvia o som dos pingos da chuva a tamborilar na seda distendida pela armação metálica. O ramo de uma trepadeira, que descia de uma enorme mangueira, com seus brotos espiralados como delicado pingente de minuciosa ourivesaria, com seus caprichosos volteios e arremates, com suas folhas recortadas em arabescado desenho, enfeitava esta manhã chuvosa. Continuei meu percurso até a repartição a ouvir a percussão dos pingos sobre o tecido sonoro do guarda-chuva.
Conforme o ponto onde as gotas caíam, o som podia ser mais suave ou mais seco, mais grave ou mais agudo, cada qual com a sua própria peculiaridade. Esses sons respingados me fizeram lembrar as páginas iniciais e antológicas de Confesso que vivi, de Pablo Neruda, quando o mestre, ao discorrer sobre sua infância, recordava que sua mãe, durante as grandes chuvas andinas, em que as goteiras rebentavam na casa, colocava diferentes vasilhas para recolher a água que escorria dos furos do teto. De acordo com a intensidade do gotejamento e do tipo de recipiente, os sons variavam, tanto em volume como em timbre, indo da surdina aos mais altissonantes e dos mais argentinos aos mais profundos. Talvez tenha sido essa melodia pluvial, a lhe embalar os sonhos juvenis, que lhe tenha despertado para a música encantada e silenciosa da poesia.
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