segunda-feira, 13 de junho de 2011

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


SONO MISTERIOSO

Elmar Carvalho



Na madrugada do dia 17 de dezembro de 1997, na pequena cidade de Brejo das Almas, Carlos Gomes, de 17 anos de idade, não acordou no horário de costume, e, portanto, não foi tomar o café, juntamente com seus pais e a irmã Sandra, mais nova que ele. Algum tempo depois, Helena, a mãe, foi ao quarto do filho. Chamou-o, sem obter resposta. Empurrou a porta, que estava apenas encostada, e viu o filho deitado na cama, aparentemente imerso em sono profundo. Chamou-o em voz alta, em voz cada vez mais alta, mas ele não não esboçou qualquer reação. Sacudiu-o freneticamente, porém o jovem se manteve inerte e silente.

Helena começou a chorar, achando que o filho estava morto. Mandou a diarista chamar a vizinha. Logo se espalhou a notícia de que o rapaz estaria morto. Não demorou muito, foram adotadas providências para que o rapaz fosse velado. A empresa funerária trouxe a urna em que foi depositado o corpo do rapaz, rodeado pelos castiçais metálicos. Perto da cabeça do adolescente, foi colocado um estilizado crucifixo, com os seus raios de prata. Foram feitas as orações. Mulheres, empunhando rosários, rezaram o “terço”.

Um vizinho, homem judicioso e prudente, após observar o suposto cadáver por várias vezes e por diversas vezes tocá-lo, tanto na região da glote como do pulso, pediu um espelho. Colocou o objeto bem perto do nariz de Carlos durante algum tempo, e depois verificou a sua superfície brilhante com muita atenção. Já eram três horas da tarde. O cortejo fúnebre sairia às quatro horas. Tomé – era esse o nome do vizinho – fez nova verificação, desta feita apalpando o tórax, na área do coração, para dizer, com firme e alta voz:
- O Carlos está vivo. Tenho certeza do que afirmo. Deve ter tido um ataque de catalepsia. Mandem chamar um médico, para melhor examiná-lo, com os seus conhecimentos e aparelhos.

A afirmativa causou perplexidade, mas quase todos não acreditaram que o rapaz pudesse estar vivo. Todavia, como Tomé reiterasse sua conclusão, dizendo enfaticamente ter certeza do que dizia, e até chegando ao ponto de declarar que ia ser cometido um crime, pois iriam enterrar uma pessoa viva, os parentes resolveram chamar o clínico geral mais respeitado de Brejo das Almas. Ante fato tão inusitado, ele veio o mais rápido que pode. Após meticulosa verificação e depois de haver auscultado o adolescente por três vezes, o médico disse, com toda a autoridade da ciência de que se sentia investido:
- O Tomé tem razão. O rapaz está vivo. Ele deve ter sofrido uma espécie de catalepsia e a qualquer momento poderá voltar a si.

Após afirmativa tão categórica, ainda mais vinda de um médico experiente e sábio, algumas pessoas começaram a murmurar que, de fato, o corpo não estava muito pálido e nem estava muito frio; que, na verdade, sua cor parecia a de quando estava vivo, e tinha certo calor, o calor de quem não morrera. Por precaução, a família resolveu deixá-lo no caixão até o dia seguinte, à espera de que ele acordasse.

Às dez horas da manhã, como o sono se mantivesse inalterado e não houvesse nenhum sinal de decomposição, resolveram levar o corpo adormecido de Carlos para a sua cama. O boato já se espalhava pela cidade, relatando o assombroso acontecimento. As mais diferentes hipóteses foram levantadas, algumas sem pé nem cabeça, outras sem o menor fundamento científico. Os mais realistas diziam que ele tivera um forte ataque de catalepsia, outros afirmavam que ele teve uma espécie de coma, por motivo inexplicável. Um leitor de ficção científica conjecturou que ele teria algum defeito congênito no cérebro, que o levara a esse sono invencível.

As mais diferentes emissoras de televisão vieram fazer reportagem com o estranho acontecimento. Uma delas, entrevistou o mais famoso psiquiatra do país, que a acompanhava, mediante vultoso cachê. O especialista, do alto de sua fama e autoridade, afirmou, aparentando ter certeza absoluta do que arguia, que o rapaz, durante o sono, tivera o mais terrível pesadelo que se pudesse imaginar, e por esse motivo o seu cérebro, não distinguindo a realidade virtual do sonho da realidade verdadeira, por mecanismos de defesa misteriosos, resolvera mergulhar o jovem naquele sono total, absoluto. Vieram equipes de cientistas do estrangeiro, com a mais sofisticada parafernália de aparelhos, que instalaram no acanhado hospital da cidade, para examinar o rapaz. Em troca, seria paga uma considerável importância à família de Carlos e os equipamentos seriam doados ao hospital. Levaram o resultado desses exames, mas nunca se soube ao certo a que conclusão chegaram.

Diante de tamanha publicidade, a casa do rapaz adormecido se tornou um ponto turístico. Começaram a chegar levas e mais levas de turistas. Novas equipes de cientistas vieram estudar o fenômeno e novas reportagens foram feitas, pelos diferentes meio de comunicação. O caso ganhou foro de sobrenatural. As lendas e as mistificações começaram a se espalhar. A cidade prosperou com o turismo, e o Carlos Gomes passou a ser considerado quase um herói de Brejo das Almas, apesar de nada haver feito de extraordinário, exceto a façanha de dormir. Uma das lendas dizia que no dia em que ele acordasse a cidade seria destruída, mas, em compensação, uma outra asseverava exatamente o contrário: no dia em que ele vencesse aquele sono, que parecia eterno, Brejo das Almas seria desencantada, para se transformar numa civilização adiantada, uma espécie de nova Atlântida, em que as ciências, a cultura, as artes floresceriam em todo o seu esplendor.

Foi construído um prédio onde Carlos era exposto à visitação dos turistas, cuja entrada era do mesmo preço dos grandes museus internacionais. Vários servidores mantinham a edificação limpa e em perfeito funcionamento, bem como executavam a vigilância com rigor, pois aquele corpo adormecido era fonte inesgotável de riqueza, além de haver promovido o renome da cidade. Um dia, quando menos se esperava, um dos vigilantes viu um dos turistas se aproximar de Carlos e retirar algo do cós da calça. O guarda correu e teve tempo de evitar que o corpo inerte há muitos anos fosse apunhalado. O caso foi investigado, e rotulado como tentativa de homicídio. O criminoso disse que pretendia salvar a cidade, porquanto, matando o dorminhoco, ele jamais acordaria, e a cidade jamais seria destruída. A vigilância, a partir de então, foi redobrada, e Carlos foi colocado numa redoma de vidro blindada.

O mais renomado escritor veio fazer a biografia do mais famoso adormecido do mundo. Trouxe uma equipe para fazer o trabalho de pesquisa. Para sua profunda decepção, descobriu que Carlos Gomes não tinha biografia. Fora apenas um adolescente de vida absolutamente vulgar, sem nada de extraordinário. Como estudante e jogador de futebol fora apenas medíocre, sem nada que o distinguisse. Como ser humano, não fedia nem cheirava, não fora santo e nem demônio. Enfim, a célebre personalidade não tivera tempo de construir a sua biografia. Tornara-se notável apenas por causa do sono em que misteriosamente jazia. Para não publicar uma legítima obra em branco, o grande escritor resolveu escrever um livro-reportagem, com os enfeites, adiposidades e redundâncias do estranho caso que acabo de relatar.

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