sábado, 20 de agosto de 2011

A PROFISSÃO DOS PEIXES

Rubervam Du Nascimento





“A Profissão  dos Peixes”, de Rubervam du Nascimento, 150 págs., 1987, Teresina, PI,  é uma edição do próprio autor.  


DEPOIMENTO MAIS QUE NECESSÁRIO

Francisco Miguel de Moura*


Pelos meados dos anos 70, tempo do boom e do desbunde, da ficção e da revista Cirandinha, quando Leila Diniz já se tinha ido e a fobia dos generais comia os cordeiros poetas da todamérica, inclusive no Brasil, onde o Nordeste era menos cabra da peste e mais o país-dos-coitadinhos, nesta Teresindia dos rios Poty e Parnayba, eis que numa boca-de-noite aparece em minha casa um rapaz bigodudo como um gato preto, desengonçado, inquirindo as menores coisas da vida e do mundo para entender as grandes navegações que fazíamos, os filhos do silêncio, neste planeta de espanto. E não vinha só, trazia debaixo do braço um calhamaço de muitas páginas bem cuidadas, em forma de livro, e me queria opinião.
 
Fui-lhe sincero como sempre sou: “Quer deixar, deixe; não garanto o tempo, que eu não tenho pressa para a arte”.
 
Pouco sabia eu que minha pressa não-transparente menos transparecia ainda em Rubervam du Nascimento (1). Assim mesmo o seu nome esquisito, com uma ligação sonora tal qual se fala: d = u = du.  Era certeza já? Era dúvida? Não, era só de teimosia. Que tempos revoltos para Rubervam, meus irmãos! Era a revolução política, era a revolução nas artes, e a revolução dele no corpo e na alma, na vida e na lida.

Digo isto para remembrar, dez anos depois, ou mais...  Continuamos no jornal, na revista, nas coletâneas, e na repartição do pão de cada dia e do sono de cada noite.
 
Agora temos Rubervam du Nascimento aqui, e outro: Poeta crescido até mais não poder mais, com A Profissão dos Peixes, ovo que vi naquele calhamaço de lembrança e raiz e no qual acreditei.

Contei a única história que tinha para contar, em poucas linhas, de nosso primeiro encontro de poetas – eu já, ele ainda. Que quereis mais que diga sobre a A Profissão dos Peixes?  É um balbucio como de crianças. Quem sabe o que elas dizem? E elas dizem tão profundamente que chega a gente a adivinhar. A poesia de Rubervam parece com ele mesmo, não é singular isto? Poderia tecer comentários sobre as metáforas intrigantes como a de aprendiz de peixe, atividade que o poeta se atribui (2).  Farei noutro lugar, onde possais ler e reler, e rir do crítico.
 
Mesmo assim, reconheço que o cachimbo de crítico me faz a boca torra, e encaminho-vos para essas poucas observações, quando na leitura de Rubervam du Nascimento:

- A singular disposição das palavras no verso e do verso no poema (espaço, repartição, vocabulário, sintaxe entrecortada etc.);
- O artesanal encadeamento num todo-tempo, formando sua visão épico-lírico-dramática fundamental e fundadora do mundo (3);
- E as metáforas e figuras encadeadas e entrelaçadas, umas sobre as outras, tornando o texto denso e difícil, mas não obscuro.
 
Se se pode lembrar um grande poeta relativamente ao conteúdo, no momento me ocorre Fernando Pessoa, também um épico moderno, naquele Poema em Linha Reta, o poema da porrada (4). Porque o livro de Rubervam du Nascimento é um livro sonhado, vivido e até sofrido, mas não confessional, haja vista a poderosa dose de invenção ou re-invenção dos seus personagens e símbolos: os peixes podres e as pipas, os miguelitos, as manhãs de canoa entre Teresina e Timon, e a infância na palavra perdida e reencontrada na Ilha de Si Mesmo.
 
Como um detetive que se detém nas menores coisas, o poeta está na palavra, na raiz da palavra, no sumo da palavra, no fio da palavra. Vai buscá-la mais feia e sem sentido e lhe dá alma, parte e reparte, junta e agrupa umas às outras na tentativa de restaurar a verdade do homem, onde o grito primal e os demais sons são os elos da vida, da inteligência e do sentido do ser (5).

A poesia vem quando o homem se quebra, a totalidade deixa de existir e o homem acredita num deus decaído – ele mesmo – o homem moderno.
 
A propósito, cabe lembrar uma passagem de Theodore de Banville, num tributo ao poeta Charles Baudelaire: “Foi capaz de conferir beleza a visões que não possuíam beleza em si, não por fazê-las  romanticamente pitorescas, mas por trazer à luz a porção de alma humana ali escondida.” (6)

Era isto que eu queria dizer-vos de Rubervam du Nascimento e não tive palavras. Pois fique dito: - O poeta é grande e a poesia, maior; poesia que não morre e se morrer vai demorar muito, porque é um rastro de cometa, caminho de luz na escuridão do mundo.
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Notas:
 1 - “O poeta palavra poeta / pra que tudo / no homem / se inicie”
(A Profissão dos Peixes, pg. 24);
  2 - “O não / pastor de almas / mas aprendiz / peixe”. (Idem, pg.23);
  3 - “Reafirmo nas constantes remontagens dos textos e dos anos a     difícil tarefa de domar a vida e a palavra no corpo do poema” (Idem, pg. 14);
 4 - “Nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões de tudo (...) / Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, / Vil, no sentido mesquinho e infame da vileza.” (Fernando Pessoa, Poema em Linha Reta, in Obra Poética, Nova Aguilar, Rio, 1983, pg. 352); 
 5 – “Escuto som que insisto / não / verbal / em nome dele me acho / sem fala não há urgência / principal / mente na escrita (A Profissão dos Peixes, pg. 23);
6 – “Ele não aceitou o homem moderno em sua plenitude, com suas fraquezas, suas aspirações e seus desesperos. Foi assim capaz de conferir beleza a visões que não possuíam beleza em si, não por fazê-las romanticamente pitorescas, mas por trazer à luz a porção de alma humana ali escondida; ele pode revelar, assim, o coração triste e muitas vezes trágico da cidade moderna. É por isto que assombrou, e continuará a assombrar a mente do homem moderno, comovendo-o, enquanto outros artistas o deixam frio.” (Tudo o que é Sólido se Desmancha no Ar, Marshal Berman, pg.130, Caminho das Letras, 1987).

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*Francisco Miguel de Moura, poeta, ficcionista e critico literário, editor da Revista Cirandinha, membro da Academia Piauiense de Letras, residente em Teresina - PI.
E-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br          

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