Karleno Bocarro (*)
Goethe não compartilhou do entusiasmo com que Herder, Wieland, Klopstock e Schiller acolheram a Revolução Francesa. Acusado de conservador e inimigo da liberdade, defendeu, trinta e cinco anos mais tarde, para o amigo Eckermann, a sua posição: comoviam-lhe as vítimas do terror revolucionário, indignava-lhe o recurso à violência como solução aos problemas humanos. Além disso, os possíveis benefícios da Revolução não eram, na época, conclusivos. Para Goethe, os eventos humanos mudam de forma a cada 50 anos; o que é perfeito em 1800 pode encontrar-se, em 1850, em decomposição.
A cidade de Nova York recompõe-se rapidamente. Logo a Freedom Tower estará no local do principal alvo dos atentados de 11 de setembro, as Torres Gêmeas. A normalidade retorna, o mundo segue adiante, e os atentados terroristas não nos chocam mais. O evento histórico que inicia o nosso século parece precisar de datas comemorativas para ser relembrado. A literatura busca respostas: deixou-nos ele alguma lição, ou a sua interpretação encontra-se presa a concepções ressentidas de pensamento?
Para a escritora paquistanesa Kamila Shamsie, e o seu colega caribenho Caryl Phillips, falta na literatura, em especial a norte-americana, um grande romance que vá além dos eventos do 11 de setembro e discuta a prisão de Guantánamo, a guerra contra o terror, “sobre como aquilo tudo pode acontecer e se tornar algo dominante no governo dos Estados Unidos sem uma reação do povo” [sic]. Palavras que confirmam a filosofia de Richard Rorty. Para Rorty, as medidas do governo Bush contra o terror trariam a morte de instituições democráticas e o conformismo à população. Mas talvez precisemos, nós, os escritores, conceder um tempo maior (os 50 anos imaginados por Goethe?) aos nossos colegas norte-americanos para o romance que Shamsie e Philips tanto lhes cobram. Entre aqueles, porém, que ficam no 11 de setembro há sim excelentes romances, tanto europeus, como norte-americanos (infelizmente nenhum paquistanês ou caribenho): Sábado, de Ian McEwan, Die Habenichtse, de Katharina Hacker, Extremamente Alto & Incrivelmente Perto, de Jonathan Safran Foer, Terrorista, de John Updike, e O Homem em Queda, de Don DeLillo.
No ensaio, In the Ruins of the Future, publicado três meses após o 11 de setembro, DeLillo fala do mundo como uma narrativa que finda no pó e na destruição. Ao escritor cabe inventar uma contra-narrativa, a qual virá à tona como uma espécie de cura às dores abertas pelos erros da época. O escritor quer entender o 11 de setembro e suas consequências. Ainda é cedo? Além de nos faltar o tempo, a compreensão, como a cura, requer paciência. DeLillo, porém, adverte: nossas ideias, assim como o idioma, não podem separar-se do mundo que as provoca. É grande o risco de distorcermos a realidade. O escritor, segundo DeLillo, deve iniciar suas reflexões em meio a ruínas (das torres); ele imagina a ordem inicial aos ataques – o momento em que o Mal dá o primeiro sopro –, desespera-se com a exigência do tema, pois antes mesmo da Política, da História e da Filosofia há o espanto original: justifica-se a perversão terrorista?, e assume um compromisso com as vítimas. Pessoas caem das torres, algumas de mãos dadas… Esse compromisso com o sofrimento não é brincadeira de idiotas! A literatura faz então a contra-narrativa, une corpo e alma; indica que mesmo no caos convulsivo do aço e do concreto há espaços para a beleza humana, expressa nos gestos de sacrifício e esperança.
DeLillo precisou de mais seis anos para escrever um dos melhores romance sobre o 11 de Setembro, Homem em Queda. Seis anos de muito trabalho: esperar, escrever, corrigir, pensar… A tarefa nunca é fácil. No mesmo ensaio, DeLillo nos fala do terrorista: a vantagem que ele possui é uma força monstruosa. O terrorista conhece apenas uma ação; reduz o mundo a um só plano, o da destruição.
Ambiento o meu romance, As Almas que se Quebram no Chão, antes dos ataques de 11 de Setembro. A história, contudo, cobre o primeiro ataque ao World Trade Center, o de 26 de Fevereiro de 1993. Marco, o protagonista, uma personagem de caráter duvidoso, encontra-se no aeroporto de Berlim quando lê a manchete do atentado no El País, e comenta: “Castigo merecido! O que querem os americanos com torres gigantes rasgando o céu?’. Na mesma linha de raciocínio, Noam Chomsky, o grande linguista, numa série de entrevistas – publicada no Brasil com o título “11 de Setembro” – atribuiu aos Estados Unidos, com sua política externa intervencionista, a responsabilidade pelos atentados às Torres Gêmeas.
Para Marco, assim como para Chomsky, a preocupação não é com a dor e o pânico das vítima. Em relação à opinião dos escritores Shamsie e Philps, próximas a um anti-americanismo comum no meio intelectual, podemos responder com um conceito de Samuel P. Huntington, o “choque de civilizações”. As ideias encontram-se hoje contaminadas por um forte sentimento anti-ocidental e são seletivas com qual sofrimento devem identificar-se.
Talvez o mundo pouco tenha mudado desde os atentados de 11 de setembro. A violência e a estupidez permanecem. Mas nos consola a presença, na literatura, de escritores como Don DeLillo que nos ajuda a lembrar de suas vítimas.
Karleno Bocarro é escritor, autor de “As almas que se quebram no chão” (É Realizações, 2010) e de “O Advento” (no prelo).
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