Anita e Belinha. Foto meramente ilustrativa. |
JOÃO PINTO (*)
Na noite seguinte da morte de minha cadela, fui dormir de rede na sala, apenas cochilei um pouco e pulei fora. Sobre a mesma janela aberta fiquei de cócoras, com a mão na arma, esperando o ladrão para quando arrombasse o portão da frente e, ao penetrar um pouco no quintal, talvez com um pé-de-cabra para derrubar a porta e querer nos render, dali mesmo eu daria um tiro bem no peito dele para vingar o coquetel de veneno de rato misturado a calabresa salsicha e a farofa. Fiquei como ela, atrás de qualquer ruído mesmo de um gato intruso.
Porém não foi isso o que aconteceu, de luz apagada na sala e também na área da frente que dava ao portão, dali de uma brecha da janela, com a mão na arma, vi para o meu espanto a silhueta da minha cadela, que azunhava desesperada o portão. Acho que queria uma recepção de algum membro da família para abrir o portão, e assim passou um bom tempo tentando e resmungando. Depois como ninguém lhe viesse abrir o portão, saiu do portão pequeno e, por debaixo do outro maior, por onde alguém havia empurrado a quentinha, entrou. Balançava o rabo de contente, cheirava o seu território e dava umas cambalhotas no ar. Ah, quase não aguentava em ver a minha Puka tão contente, depois de morta, voltar ao aconchego ali na frente da casa. Aí a silhueta dela ficou de quatro e veio vindo para o rumo da porta. Baixei a guarda da arma e, em sacudidelas violentas, as lágrimas desciam pelo rosto. Só que não a vi mais ficar na porta como era seu jeito, as duas patas deitadas no chão e a bunda tocando a porta. Quando dormia ali na sala, ela sabia que estava ali e respeitava meu sono, às vezes tocava de leve a porta para se comunicar comigo, para dizer que era o meu escudo.
E estando nesse devaneio, de repente a cadela já se encontrava de novo bem próximo do portão, cheirou o portão e lançou as patas dianteiras ficando de pé, depois usou alguma brecha do portão e saiu do quintal. Azunhou novamente o portão, deu um grande uivo e dobrou à esquerda, no beco onde havíamos feito a sua cova. Já sabia que aquele aparecimento nunca mais iria se repetir porque a minha comoção ficara no limite de suportar uma presença tão cheia de dor.
Na noite em que envenenaram a bichinha, o sacripanta malvado havia parado um automóvel na frente de casa, além da minha casa, jogou o produto na casa da dona Maria e da Lukésia, e assim fazia a limpeza dos nossos bichinhos. Um homem que mata um cachorro é a pior espécie de gente, a alma dele vive na nojeira mental e nunca teve o amor de um cão. A Puka passou por um processo lento de morte, lembro que, ao acordar pela manhã, estava toda encolhida na sua casinha. Quando me viu, veio quase cambaleando, de expressão triste, com o tremor por todo corpo. Fizemos o que podemos para salvá-la, de manhã, o Bruno deu ainda leite numa mamadeira improvisada, ia lambendo tão devagar e depois apanhei a comida envenenada que havia vomitado. E ficamos esperando algum desfecho.
Por volta de duas horas da tarde, a cachorra deu um latido enorme e indescritível, varou pela casa adentro e buscou um canto da casa, toda já com as órbitas tão demonstradas de despedida que logo foi cercada de mais carinho. Levamo-la para sua casinha. Lá a tremedeira se acentuou com os rompantes dolorosos. Aí teve uma hora que se aquietou ao fundo da casinha, fez um ruído estranho entre os dentes, foi estirando as patas, os olhos ficaram de uma cor amortecida e a língua ficou totalmente roxa do veneno. Cavamos um buraco aqui perto de casa. Pegamos pelas patas e acomodamos aquele projeto de carinho no buraco.
De noite, reunida a família, de olhos marejados, a gente ia se lembrando dela. Do gesto do Bruno quando a tomava pelas quatro patas e ia rodopiando ela numa curtição; do Lucas quando dizia, Cadê a minha Negona; da Gina, ao entrar pelo portão, com a bolsa na mão tocando nela de leve, Não, não! Do Ruan que, quando ia levando um petisco dizia com expressão de comando, Sente, sente! E deste gari que fazia a limpeza pela manhã, colocava-a na corrente. A sua primeira merenda matinal era um pão integral que colocava entres as patinhas. Depois bebia água, ou leite em dias especiais. E assim roncava a manhã toda, talvez sonhando já com o céu.
Mas, o que ficou dela talvez, não foi a cadela com seu lado hipotálamo, foi o amor que tinha no coração, o gesto de os meninos colocar a mão na cavidade da boca, as cambalhotas, trepar ali na janela, e fazer do seu lado moleque o registro de dois anos incompletos dentro da nossa memória.
(*) Contista e cronista. Natural de Luzilândia - PI. Reside em Manaus, onde é professor.
Caro João Pinto,
ResponderExcluirFiquei comovido com sua crônica sobre a morte de sua cadelinha.
Faz algum tempo publiquei uma crônica do poeta Wilton de Magalhães Porto a respeito da morte da cachorrinha dele.
São duas emocionantes elegias em prosa.
Tomei a liberdade de ilustrar sua crônica com a foto de minhas Anita e Belinha, sobre as quais já publiquei alguns textos na internet, assim como sobre a brava cadelinha Mel, de uma vizinha de Regeneração.
Hoje fico muito comovido quando leio ou vejo na televisão a maldade que nosso semelhante faz contra os animais.
Já, também, escrevi crônicas sobre a preguiça e o jumento. São nossos irmãos menores.