domingo, 31 de julho de 2011

FLAGRANTES & INSIGHTS


PLACA DE BRONZE

Elmar Carvalho

Na exploração despudorada e desenfreada da vaidade humana, o rapaz insistiu, por várias vezes, para que um amigo meu lhe desse determinada importância para a realização de uma “obra social”, sob a promessa de que ele seria homenageado com uma grande placa de bronze, a ser outorgada pelo prefeito. Já incomodado e aborrecido com o assédio, meu amigo disse ao “benfeitor”, que não passava de conhecido picareta:
   - Olhe, façamos o seguinte: não precisa me dar a placa; peça ao prefeito para lhe dar o valor correspondente a ela em dinheiro, e você terá mais lucro do que com o que eu poderia lhe dar.

sábado, 30 de julho de 2011

TRABALHO DE CESTARIA E RENDA

ELMAR CARVALHO


tramas e tramóias
arma(dilha) a(r)mada
a(r)mada arma(dilha)
entocadas nas tocaias

amantes amadas
amando (tr)amando
entre teias e r’amas
com as armas a(r)madas

entre rendas e redes
a engrenada moenda
do amor entrelaçado

faz uma teia de renda
em forma de rede de pe(s)car
e me amor(tece) e me amor(daça)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO

28 de julho

O JARDIM DOS POETAS

Elmar Carvalho

No domingo, fui ao mercado central com a Fátima, com o objetivo de que o Didi e a sua mulher comprassem roupa de banho, pois iríamos à praia de Pedra do Sal. Como sei que essas compras sempre demoram um pouco, para passar o tempo fui visitar o Jardim dos Poetas, e dessa forma rever a placa com o meu poema, que ali existia. Era um poema integrante dos PoeMitos da Parnaíba, em que eu homenageava a Luse, que eu conheci, quando morei na Praça da Graça, no apartamento dos Correios. Era ela uma figura interessante, alegre, algo extrovertida, que gostava de usar umas saias com belas estampas florais. Era professora de piano. Apesar de um tanto gorda, curiosamente, segundo depoimento de um amigo meu, dançava com muita leveza, graça e elegância. É falecida há vários anos.

O Jardim dos Poetas foi construído na gestão do prefeito Paulo Eudes, idealizado pelo teatrólogo e escritor Benjamim Santos, quando este era o secretário municipal da Cultura. Era na verdade, em síntese, uma espécie de antologia em concreto da poesia e dos poetas parnaibanos, natos ou não. Ali estavam, nas quase duas dezenas de placas metálicas verdes, afixadas em pedestais, que imitavam uma espécie de tribuna, poemas dos vates consagrados pelas antologias, pelos críticos e pela história da literatura parnaibana. No painel central (uma grande coluna retangular) estavam expostos, em grandes letras em relevo, os imortais versos de Alcenor Candeira Filho e Luíza Amélia de Queiroz. Numa placa metálica azul foram colocados, da forma mais exaustiva possível, os nomes de quase todos os poetas parnaibanos, tantos os nascidos no município, como os que ali se radicaram ou se vincularam radicalmente à literatura local.

Quando o jardim estava sendo planejado e construído, despertou muita espectativa e curiosidade entre os poetas, inclusive quanto à inclusão ou exclusão de nomes. O local da obra foi visitado por vários literatos, inclusive de Teresina. Eu mesmo, em companhia de outros poetas, visitei o local e achei que fosse uma grande homenagem aos bardos, mormente numa época de tanto hedonismo, em que a música e os audiovisuais imperam de forma avassaladora; numa época em que a poesia se queda como “a mais discreta das artes”, no dizer de Eugénio Montale. A sua inauguração foi comemorada com uma série de eventos culturais, inclusive teatralização de poemas, dança, música e palestras. Tive a elevada honra de ser convidado para proferir uma palestra sobre literatura parnaibana, tendo na oportunidade lançado meu opúsculo Aspectos da Literatura Parnaibana, em que faço referência aos principais aedos da cidade, dentro de uma síntese histórica de sua literatura.

Estive recentemente em Caxias, Maranhão, e vi nessa cidade, numa praça central, o poeta Gonçalves Dias, a recitar versos em seu pedestal. Vi também a Praça do Pantheon, na qual foram colocados os bustos dos seus principais poetas e escritores. Ali estavam, esculpidos, os poetas Gonçalves Dias, justamente considerado um dos maiores poetas do Brasil, que tinha orgulho de carregar em suas veias o cadinho de três raças – a índia, a negra e a branca; Coelho Neto, poeta e escritor, considerado um parnasiano da prosa, um dos mais lidos escritores em seu auge; Vespasiano Ramos, um lírico de alto coturno, cujos versos do soneto Samaritana regurgitavam na boca dos sedentos boêmios de outrora; e o poeta e industrial Francisco Dias Carneiro, sobre o qual me reportei da seguinte forma: “Vi apenas um poema desse último vate e capitão de indústria, mas considero que ele cantou belamente os rumores e as ramagens do Itapecuru, em versos sonoros, melodiosos, refertos de imagens e sentimentos”. Essa viagem foi registrada neste mesmo Diário Incontínuo, sob o título de “O Pantheon de Caxias”, cujo texto foi lançado aos mares internéticos.

Pois bem, falei na Praça do Pantheon porque ela me fizera lembrar o Jardim dos Poetas. Contudo, ao adentrar este último logradouro senti o seu estado de abandono. Lixo e ervas daninhas infestavam o local. Foi em vão que procurei a placa do meu poema, que homenageava a Luse. Ela e quase todas as demais haviam sido retiradas dos pedestais em que foram postas. As letras do painel central, a que me referi, haviam caído. Só restavam duas ou três placas, mas deterioradas e ilegíveis. Não posso omitir que fiquei triste. Todavia, não quero, aqui, criticar ninguém; desejo apenas apresentar uma sugestão, para um problema que está posto. Inicialmente, faço uma pergunta, já que alguém disse que o local não seria adequado: será se as suas peças em concreto, mormente os pedestais e as componentes dos caramanchões, não poderiam ser levadas para outro local, que fosse considerado mais apropriado?

Creio que a Secretaria de Cultura poderia discutir a restauração do Jardim dos Poetas, seja no local em que se encontra, seja em outro que fosse considerado mais atraente, com a Academia Parnaibana de Letras, com o Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba, com a Fundação Cultural Assis Brasil e com a “sociedade dos poetas” vivos. Obviamente, outros equipamentos, peças e poemas poderiam ser acrescidos ao projeto original. Placas maiores, mais vistosas e modernas, talvez até com ilustrações de pintores locais, poderiam dar um novo brilho a essa antologia poética “impressa” em concreto. Acredito que prejuízo maior é o logradouro/monumento permanecer do jeito que está, pois, sem os poemas expostos em suas placas, o Jardim dos Poetas terá perdido todo o seu sentido e finalidade.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO


27 de julho

PAULO CÉSAR E O LIRISMO DA VIDA

Elmar Carvalho

Quando fui à banca do Louro, em Parnaíba, para adquirir a revista Repaginando e os jornais culturais O Bembém e O Piagüí, encontrei o amigo Paulo César Lima (Curicaca). Sem delongas, disse-lhe que estava a me apropriar do livro Memórias e Memórias Inacabadas, de Humberto de Campos, publicado pelo Instituto Geia, em bela e caprichada edição, e que só o devolveria quando ele expressamente me solicitasse isso. O livro lhe fora presenteado pelo desembargador Lourival Serejo, que também é escritor e professor da Escola Superior da Magistratura do Maranhão, além de ser membro da Academia Maranhense de Letras e de outras congêneres municipais.

Tempos atrás, eu havia conversado com Paulo César sobre poetas maranhenses, em cuja capital ele havia se formado em engenharia. Disse-lhe que havia gostado de alguns poemas esparsos de Bandeira Tribúzi, que havia lido em antologias, e que desejava comprar um livro desse vate, mas que não o encontrava à venda no Piauí. PC disse que tentaria adquiri-lo para mim. Com efeito, pouco tempo depois esse bom e prestimoso amigo, através do des. Lourival Serejo, conseguiu-me um exemplar de poemas desse grande bardo maranhense. Através desse livro, fiquei sabendo que o senador José Sarney tinha grande apreço e amizade pelo poeta, e lhe fizera uma bela e comovida apologia por ocasião de sua morte precoce, que se encontra enfeixada na obra. Tribúzi, além do grande poeta que era, foi um cidadão exemplar e um alto funcionário da administração pública maranhense, talvez um dos precursores do planejamento estadual.

Conheço Paulo César desde os idos finais dos anos 1970. Em diversas ocasiões entretive boas conversas com ele, inclusive sobre literatura e poesia, e sempre lhe admirei a alegria contagiante, o senso de humor e a inteligência fina, em que sempre ele tinha algum episódio humorístico para contar. De família humilde, sem autoproclamados brasões de pretensas e pretensiosas nobiliarquias, formou-se em engenharia; por concurso público, é auditor fiscal do Ministério do Trabalho, cargo igualmente exercido por seu irmão Francisco José, o Zié, este formado em Direito. Seu outro irmão, o Augusto César, é médico no Rio de Janeiro. Devido a seu espírito alegre, brincalhão, é um dos mais animados foliões do carnaval parnaibano, do qual é uma das lideranças e incentivadores. A propósito dessa sua vertente momesca, colho na internet a informação de que “Francisco José Lima - o Zié manterá a tradição e vai desfilar na escola Unidos da Ponte, além dos irmãos Paulo Curicaca e o renomado médico Augusto César Lima - que vem especialmente do Rio de Janeiro para a festa momesca na Marquês [avenida] de Chagas Rodrigues”. Sei que a notícia se realizou, pois eu vi o PC, de apito na boca, a comandar o desfile de sua agremiação carnavalesca.

Faz algum tempo, fiquei de ir comer uma galinha caipira no sítio Serragem, do Paulo César. Por uma série de tropeços e contratempos, seja por minha parte, seja pela do PC, esse encontro gastronômico e de lazer ainda não aconteceu. Por isso mesmo, o Paulo comunicou-me, por e-mail, que a galinha já estava gorda demais, e poderia morrer por causa da obesidade. Não fiquei preocupado, porquanto tenho certeza que o seu plantel de galináceos é numeroso, e não há de faltar “penosas” para a programada e sempre adiada degustação. Como o sítio fica na margem direita do Pirangi, a sua sede sofreu uma grave ameaça, quando do arrombamento da barragem de Algodões, em Cocal. Contudo, apesar de lambida pela catastrófica “pororoca”, a casa permanece de pé, incólume, a nos esperar para o sacrifício do galináceo, que agora deverá ser um capão erado, porém de tenra e suculenta carne.

Quando eu disse que só devolveria o livro Memórias, um dos melhores livros no gênero, que tive o prazer de ler várias vezes, sempre com interesse e satisfação, e sempre com proveito espiritual pelas lições e experiências de vida, que ele transmite, mormente o esforço laboral e capacidade de superação de seu autor, Humberto de Campos, que emergindo da pobreza tornou-se um dos escritores mais aplaudidos em seu tempo, além de haver sido congressista e membro da Academia Brasileira de Letras, exceto se isso me fosse exigido explicitamente, o Paulo César, com o seu jeito expansivo, alegre e bonachão, não titubeou ao responder-me:
- O livro é seu, eu o consegui para você!
Como uma mísera e magra compensação, ofertei-lhe, ali mesmo, na Praça da Graça, um exemplar de meu livro Rosa dos Ventos Gerais, que por sorte trazia em meu carro. Rosa simples, rosa singela, rosa talvez sem perfume literário, mas na qual o amigo Paulo César talvez possa encontrar alguma beleza perdida, algum perfume fugidio e errante nos vários versos que ali estão estampados.

terça-feira, 26 de julho de 2011

EGOCENTRISMO

ELMAR CARVALHO



     espirrei
na réstia de luz
da janela do meu quarto
e fiz surgir um
              arco-íris
              arco-do-triunfo
sob o qual
napoleonicamente passei
sobre o qual caminhei
em busca do
                   velocino de ouro
coroado com o
                      l’ouro
de minha própria
    alquimia

segunda-feira, 25 de julho de 2011

REPAGINANDO Nº 02 À VENDA EM PARNAÍBA E TERESINA



O segundo número da revista Repaginando, de circulação mensal, já se encontra à venda; em Parnaíba, na banca do Louro, na Praça da Graça, e em Teresina, na banca do Tomaz. As matérias de capa são uma reportagem sobre o interminável porto de Luís Correia, uma crônica sobre Mário Carvalho, uma entrevista com Stefano Florissi, professor pernambucano, sobre economia e cultura, e um poema de Dom Pedro Casaldáliga. Vários outros textos de cunho literário e social enriquecem a revista, que contém muitas fotos e ilustrações produzidas por Flamarion Mesquita. A principal matéria analisa toda a história e vicissitudes, que têm entravado a construção do porto marítimo piauiense, ao longo de várias décadas. Entre outros, foram colaboradores: Juarez Oliveira Filho, Bernardo Silva, João Maria Madeira Basto, Jonas Fontenele, Mário Pires Santana e o editor, Reginaldo Costa.

domingo, 24 de julho de 2011

Visibilidade e invisibilidade em novos e confusos tempos literários


CUNHA E SILVA FILHO

O que é ter visibilidade restringindo-se este termo ao domínio da literatura? Faço esta indagação de sorte que não se confundam várias formas de visibilidade, já que a condição de visibilidade pode se instalar até no submundo da criminalidade, ou das chamadas celebridades do mundo contemporâneo.
O espectro da visibilidade – reconheço - está mais circunscrito às mídias, a formações de grupos acadêmicos e, quando digo acadêmico”, me reporto aos recintos das universidades, geralmente públicas, Lá é onde germinam as sementes que, positiva ou negativamente, se reverterão em sujeitos visíveis que, inter pares, ganharam notoriedade por algum tempo, porquanto notoriedade, fama, consagração são temporalmente conceitos limitados. São situações de projeção pessoal dependentes de momentos culturais históricos e perfeitamente demarcados. São diferentes dos consensos universais apenas restritos a algumas figuras de primeira grandeza na história da cultura e, neste caso, independentes dos humores temporais regionalizados.
O mecanismo dos grupos restritos é que propiciará os eleitos ou incensados. Só que essa eleição grupal sem voto, felizmente, também tem limites e seus valores são relativos. Funciona mais ou menos tal mecanismo sócio-cultural como nos grandes clubes de futebol ou de outros esportes mais em voga.
Se deslocarmos a visibilidade do campo estrito da literatura para outros domínios do conhecimento, notadamente o científico, o tecnológico, aquela visibilidade na literatura se apaga como vela acesa aos poucos se derretendo.
A história literária ocidental – fiquemos no nosso país – ao longo do seu percurso – tem provado suficientemente que a visibilidade tão prezada pelo elitismo intelectual brasileiro contemporâneo não é mais do que uma vã ilusão. Os tempos mudam, os homens morrem, as teorias (muitas) também envelhecem (?) como peças de museu e não mais exerceriam quase nenhuma influência ou utilidade face ao surgimento de correntes estéticas do pensamento crítico de nossos dias. Isso gera crise e impasses que levam intelectuais a, por assim dizer, falarem em morte da crítica literária, morte da poesia, morte do romance e assemelhados. A situação da literatura, em suas múltiplas formas e gêneros, fica tão frágil na atual conjuntura que nem seus próprios cultores parecem diferenciar o que estão escrevendo, se crítica , se resenha, se ensaio. Não paira dúvida de que o contexto literário está diante de impasses para os quais devemos divisar caminhos com objetividade e espírito desarmado.
O mundo contemporâneo se molda pelo tempo presente – sacrossanta era de uma certa ilusão de que o hic et nunc dita conceitos, normas, tendências nos vários segmentos da sociedade afluente e utilitarista, sociedade dos excessos, dos objetos e seres descartáveis. Ao dispensar todas as honrarias ao primado do presente, os fenômenos culturais, em todas as suas configurações de gêneros e estilos, tenderão, em pouco tempo, a provocar mais dissensos e crises do que encontrar uma via de equilíbrio entre a tradição e a contemporaneidade,sendo que esta, de resto, é sempre um termo de abrangência fugidia. O apressado homem do presente semelha um deus de barro mais pretensioso do que aquilo que lhe corresponde ao talento e saber, com seu olhar supostamente altaneiro no que concerne a valores e competências adquiridas em anos de estudos, pesquisas, atualizações de saberes e talento indiscutível.
Cada sujeito da visibilidade possui sua duração mais ou menos com data, marcada. Poucas são as exceções. O tempo do surgimento do sujeito visível se mede dentro da contemporaneidade. Por isso, comumente se reveste de um caráter cronológico. Quando deslocado para o passado, em razão de reavaliações e pesquisas feitas no presente, a visibilidade do sujeito, póstuma como é, tende a atribuir-lhe o devido merecimento. É o caso, por exemplo, do poeta Sousândrade (1832-1902), recuperado aos tempos atuais graças aos esforços dos irmãos Campos. Fernando Pessoa (1888-1935) não teve também visibilidade em vida. Ainda hoje sua obra poética se vai acrescendo de novos inéditos e o valor de sua poesia vai readquirindo novos sentidos de visibilidade e grandeza para os pósteros.

A questão da visibilidade está intimamente também conexionada com o fator negativo do olvido por parte da posteridade. Os movimentos literários confirmam validade e olvido, ou seja, visibilidade e invisibilidade. A chamada tradição literária nunca foi assim tão bem recebida pela posteridade, quer dizer, pelas gerações dos diversos estilos de escrita que a história literária ocidental já conheceu e se convencionou chamar de periodização literária, estilos que sempre se diferenciavam pelo movimento pendular entre razão e emoção, i.e., objetividade e subjetividade, para lembrar as duas tendências da alma humana que remontam aos conceitos de Friederich Nietzche (1844-1900) discutidos na obra Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo (1872).
As vanguardas europeias aparecidas no final do século 19 e continuando até a década do século passado, como manifestações artísticas que adentraram igualmente outras artes, como a pintura, a escultura, promoveram uma radical ruptura das formas de artes literárias, bem como de outras artes, segundo referi acima, pondo por terra maneiras de expressão artística já superadas e que não mais poderiam ressignificar a realidade dos tempos modernos modificados pelas alterações da vida dos indivíduos nos centros industrialização, pelos desastres sociais e econômicos trazidos pela Primeira Guerra Mundial de 1914, pela queda da monarquia russa com a revolução bolchevique de 1917.
As vanguardas, no campo da poesia principalmente, e para o que interesse a esta discussão, foram responsáveis pelas profundas mudanças de índole experimental, substituindo o que se poderia chamar lato sensu de ordem clássica para a “desorganização” estética moderna de visões de vida e de formas de linguagem.
Após o Modernismo de 1922, a literatura entre nós conheceu movimentos de renovação tão amplamente estudados em nossas principais histórias literárias que não seria o caso aqui de historiá-los novamente. Entretanto, cumpre fazer algumas considerações com respeito ao sentido de subversão que eles tiveram para o atual quadro de valores, especialmente tendo em vista que seus autores, nas diversas vanguardas brasileiras, se assim as posso denominar, adquiriram visibilidade graças às alterações formais diante da tradição literária, embora muitos deles hoje retomam uma dicção poética que muito tem a ver com antigos ou menos antigos procedimentos na utilização do discurso poético – espécie de amálgama obtida por incansáveis buscas de exploração do poético em fontes tradicionais da lírica brasileira ou europeia.
A moderna lírica brasileira, em tempos de pós-modernidade, de imediatismo, de alta tecnologia, de bizarrias eletrônicas, da era virtual, da internet, da cibernética, da robótica, do homem-máquina, do vazio individualista – figura um momento de encruzilhada de uma contemporaneidade feita de diluídas fronteiras e de características múltiplas.
Lírica de tempos pós-modernos, de poéticas sem ismos, nas quais o lirismo se sente senhor de suas próprias escolhas, tendências, temas, ritmos e técnicas, porém tendo em vista, na maior parte de sua produção, não perder certos liames da tradição, retrabalhando-a e reajustando-a aos tempos correntes e aos modos pessoais de instrumentalizar a substância – ideologia, recursos formais e técnicas - pela fatura de versos que exprimam os anseios estéticos e temáticos do homem de agora.
Em síntese, a questão do sujeito da visibilidade se oferece, assim, como um desafio mais do âmbito da formação de grupos hegemônicos, compostos do tripé – imprensa literária, editoras de grande porte e de grupos da intelligentsia brasileira recrutados em geral nos umbrais das universidades. Dessa convergência, a que não faltam doses de protecionismo e reserva de mercado, poderão ou não surgir os novos midiáticos da cultura brasileira. Quem, por acaso, estiver fora dos parâmetros mercadológico-elitista-midiáticos desses grupos que se repartem em filiais pelo país afora, estará, pelo menos, para o tempo presente com pretensão de eternidade, relegado à condição de sujeito da invisibilidade.
Superar este óbice me parece tarefa quase instransponível porque, embutidos no emparedamento do sujeito da invisibilidade, existem componentes de natureza idiossincrática, de isolamento, de timidez, de ética individual e de certo enfado existencial que se colocam entre o artista e a arte literária.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO


22 de julho

HERMES E AFRODITE

Elmar Carvalho

Outro dia, um conhecido meu me contou que um seu parente, tido e havido como rapaz, inclusive porque era namorador e gostava de jogar futebol, estava se transformando numa moça, com o corpo se enchendo de curvas e botando seios, cujos bicos pareciam querer espetar a camisa ou blusa. Acrescentou que esse (ex) rapaz já não se interessava mais por moças, mas, sim, por outros rapazes. Contudo, não me soube explicar se o caso seria de hermafroditismo ou se o jovem tomara hormônio, para conseguir o arredondamento feminil das formas. Contei-lhe, então, dois casos, que aqui vão resumidamente.

Um conhecido meu, que tinha grande intimidade com o pai, narrou-me o que seu velho lhe contara. Na cidade em que ele morava, existia uma prostituta muito bonita, mas que parecia encerrar algum mistério, pois raramente os homens a procuravam por mais de uma vez, e nunca se ouviu algum deles comentar qualquer coisa sobre sua intimidade. Ante tamanha beleza, o pai desse meu conhecido resolveu marcar um encontro com a moça, no local em que ela recebia os seus clientes. Na hora marcada, adentrou a alcova. A mulher era de fato muito bela, tanto de rosto, como de corpo. Ela foi se desnudando aos poucos, ficando apenas de calcinha, sempre na penumbra, sem que nenhum defeito lhe fosse percebido.

Todavia, quando o pai do meu colega conseguiu fazer com que ela retirasse essa peça, pode perceber que ela tinha o clitóris bem avantajado, quase como se fosse um pequeno pênis. O velho, algo chocado, desistiu do que viera fazer, e bateu em retirada. É de se supor que a mulher tenha se sentido humilhada, ante a rejeição repentina, e que essa proeminência de sua anatomia lhe trouxesse alguns constrangimentos, ainda mais diante do fato de ser uma prostituta. Também é de se imaginar que alguns aceitassem essa anomalia, senão ela não poderia exercer a “profissão” que exercia. O fato é que todos silenciavam quanto a isso, seja para evitar comentários, seja para que outros caíssem na mesma “armadilha”.

No início de minha juventude, vi, algumas vezes, uma parenta de um amigo meu, de acentuado buço. Feia de rosto, de corpo desengonçado e sem curvas, vivia metida num vestido de chita, que lhe descia escorrido pelo corpo magro e linheiro. Tinha uns modos esquisitos, arredios e ariscos, e não me recordo de ter ouvido sua voz. Era uma moça completamente feia e sem nenhum atrativo, cuja penugem labial provocava mesmo certa repulsa, embora ela não tivesse nenhuma culpa por ser tão desprovida de dotes físicos. Morava ela na zona rural, com seus pais; poucas vezes a vi, e apenas quando fui a sua casa, em companhia de meu amigo.

Fui embora dessa cidade, que não desejo identificar, e por mais de 20 anos não tive notícia desse ser tão desprovido de graça e encanto, até reencontrar o meu amigo, que também fora morar em outros lugares. Ao recordarmos certas aventuras de nosso tempo de mocidade, perguntei-lhe por sua prima. A sua resposta foi direta e chocante:
- Virou homem, e agora vive traçando tudo quanto é mulher que encontra pela frente!
Decerto, havia certa dose de humor e evidente exagero em suas palavras. O parente passou a vestir-se como homem, com calça e camisa, e não mais com vestido, como antigamente. Passou a nutrir forte atração por mulheres. Meu amigo não sabia detalhes sobre sua anatomia. Mas, pelo visto, nada tinha de Afrodite, senão de Hermes. Fico na suposição de que sua genitália fosse a de um hermafrodita, porém com predominância masculina, inclusive na parte espiritual e psicológica. Talvez um exame médico tivesse resolvido todas as dúvidas. Entretanto, por preconceito e ignorância, os pais a criaram e vestiram como mulher, até que o apelo e a força do sexo fizeram com que esse ser tolhido em sua sexualidade pudesse se libertar, e seguir o seu próprio caminho.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

BAR DO AUGUSTO


Charge: Gervásio Castro

BAR DO AUGUSTO

Elmar Carvalho

No bar do Augusto
o passado era sempre presente,
e o futuro a Deus pertence.
No Recanto da Saudade

de outra dimensão do espaço-tempo
o Dourado continua a vestir a fantasia
de a sua própria pessoa ser ou não ser
heterodoxos heterônimos pessoanos.

Onde, agora, o Augusto?
Onde, agora, a vitrola, a música e o bar?
Como nos versos sublimes de Bandeira,

ficaram de pé, suspensos no ar. . .
Encantados no destempo de um tempo
sem passado, sem futuro, sem presente.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO

Foto meramente ilustrativa


20 de julho

O GOL DO MACUMBEIRO

Elmar Carvalho

Em meados dos anos 80, estive em Amarante, participando de evento lítero cultural. No quintal sombreado por grandes árvores de um casarão, que foi hotel durante alguns anos, quase na esquina da avenida Des. Amaral, perto da escadaria do morro da Saudade, participávamos de alegre libação, entre outras pessoas cujos nomes já não recordo, o Zé Elias Arêa Leão, a Sulica Figueiredo, a Sônia Setúbal e este diarista. O poeta Virgílio Queiroz, que funcionava como uma espécie de anfitrião e cicerone cultural, nos contou curioso episódio cômico, de que ele fora um dos protagonistas. Ao conversar com ele recentemente, puxei esse assunto, para que ele me reavivasse a memória.

Ele e um amigo prepararam um saboroso frito de galinha caipira, que ele fez questão de enfatizar que não fora confiscada do quintal do vizinho. A farofa estava deliciosa, de modo que o cheiro era um verdadeiro perfume sacrificial aos deuses. O Virgílio colocou no matulão um litro de pinga da terra; cana pura, sem “batismos” e desdobramentos espúrios. Talvez um tanto por galhofa de jovem brincalhão ou por espírito de aventura, seguiu para um dos terreiros de macumba existentes na cidade. Ao chegar ao local do culto, o babalorixá se preparava para os trabalhos, com incensos e essências aromáticas de plantas, com que ungia o corpo. O poeta, maliciosamente, colocou uma dose da branquinha no copo e a sorveu de um só gole. Lambeu os beiços, e retirou um pedaço apetitoso do galináceo.

O macumbeiro Tomé não resistiu, e a revirar os olhos pediu um pedaço da ave. O Virgílio disse que havia feito uma promessa de que só comeria do frito quem tomasse antes uma dose da cachaça. O outro respondeu que não poderia beber, pois iria iniciar a sua função religiosa, mas terminou não resistindo, e tomou uma golada, inicialmente pequena. Depois, outra e mais outra, cada vez mais volumosas, sempre acompanhadas de um pedaço do frito, que o poeta lhe dava. Finalmente, prestes a iniciar a dança e as cantigas, virou um copo da calibrina; ficou bastante “calibrado”, e foi executar sua tarefa.

Em determinado momento, a cantiga se transformava numa espécie de responso, em que o Tomé respondia os “pontos” que uma pessoa cantava. Assim como Pôncio Pilatos entrou meio atravessado no “credo”, o Virgílio Queiroz achou de introduzir futebol na cantoria ritualística, de tal arte que, esdruxulamente, perguntou:
- Quem foi, quem foi que fez o gol?
Ante o inesperado da pergunta, o pai-de-santo arregalou os olhos e fitou o vazio, como em busca de inspiração. Depois, caindo em si e se julgando no dever de responder a tão inusitada indagação, cantou, a rodopiar pelo salão, a driblar e atropelar rimas e ritmos, sob efeito etílico:
- Ou foi Pelé, ou foi Pelé, ou foi Pelé... – e não atinando com o nome de nenhum outro jogador, com a mente anuviada pelo álcool, saiu-se com este improviso algo desatinado: … ou foi Pelé, ou foi Pelé ou foi quem foi.
Durante alguns anos, a irmã do Tomé ficou “intrigada” com o Virgílio Queiroz, pois ela levava muito a sério as cerimônias da umbanda, e atribuía ao poeta a culpa de haver premeditado a embriaguez do irmão e chefe umbandista. Mas hoje já não resta sequela desse episódio, que faz parte do anedotário da terra dacostiana.

terça-feira, 19 de julho de 2011

ODE A FERNANDO PESSOA



ODE A FERNANDO PESSOA


ALCENOR CANDEIRA FILHO

Pessoa, genial pessoa
que me ensinou a mim
e a milhões de outras pessoas
que o início é o fim
do começo do meio
do mar sem fim.

Pessoa plural
porquanto um além doutros
que me ensinou a mim
e a muitos outros
que a lição sem igual é igual
à essência do superficial.

Pessoa de confusa coerência
poeta de louca lucidez
de um não convicto
sempre atentamente
alheio a tudo
ator/mentadamente
igual a todos
e sinceramente
fingidor
a ponto de fingir que é dor
a dor do alcoólico
tabagista
solitário
esquizóide
fóbico
compulsivo
depressivo
mediúnico...

imortal morto de Portugal
e do mundo todo total
que entre o tudo e o nada
por não ser pensador
pensou sem pensar
e que entre o nada e o tudo
por não ser sonhador
sonhou sem sonhar.

poeta de bastantes importantes lições
você contudo Pessoa
com ser mestre
não me ensinou a mim
nem a outras pessoas
em suas largas preces
se rezar é sonhar
ou pensar
ou se as duas coisas juntas
ou se nem uma coisa nem outra


- mas tão somente
ORAR, ou seja:
balbuciar



silenciosa
e simplesmente
alguma coisa
que só o céu
pode escutar.

2011



Belíssima ode dirigida, com o coração (pelo louvor) e com a razão( pelo conhecimento lúcido) a um poeta que, ao lado de Camões, embora as diferenças de tempo e de estilos, não se esgota em ganhar admiradores, pesquisadores, analistas, críticos e leitores comuns mas amantes da poesia no mais alto sentido que o termo possa alcançar. Não é necessário conhecer toda uma obra de um poeta como Pessoa para que de sua produção, sempre crescente em novos inéditos, se possa dele falar com orgulho e  grandeza.
Alcenor, ao que me parece, lhe faz comovida homenagem de poeta para poeta sem servilismos acachapantes mas com a dignidade de dar ao leitor o alcance estético e humano que a poesia do bardo luso atingiu na alma de outro poeta, um poeta do Piauí. de Parnaíba.
Conhecendo um pouco de pessoa, nem é preciso sublinhar o diálogo ou o monólogo( não sei) que Alcenor neste poema manteve com relação a aspectos gerais e cruciais da poética pessoana. A ode é aqui um resumo, nos interstícios intertextuais, indispensáveis nesta composição poética para dizer o mínimo do máximo e com justiça do dever intelectual de um leitor-poeta a um poeta de dimensão universal.
Cunha e Silva Filho 

Poeta Elmar. Que você e Alcenor Candeira Filho têm marcado a fogo a poesia piauiense, que é a mesma brasileira, é um fato inconteste! Que a caneta corre frouxa nos seus dedos, não deixa dúvida! Mas que a poesia ODE A FERNANDO PESSOA, em homenagem ao aplaudido  poeta português: Fernando Pessoa, é uma pérola à Parte, isso não se pode desacreditar. E olha! vocês já escreveram coisas belíssimas, em termos de literatura!  Nesse poema, o poeta parnaibano Penetrou com uma sensibilidade íncrível no veio poeta de Fernando Pessoa. E na dança das palavras, deitou e rolou naquilo que vocês mais gostam de fazer: poetar. Obrigado por nos brindar, publicando, tão lindos versos, tão bem traçada poesia . Wilton Porto  

segunda-feira, 18 de julho de 2011

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


SIMULACRO DE UMA VIDA (*)

Elmar Carvalho

Vários homens tomavam cerveja no cabaré Munguba City, localizado na margem direita do Igaraçu, ouvindo Waldick Soriano e Roberto Muller, entre outros cantores de igual gênero musical, através de uma radiola, que tocava velhos discos de vinil, quando entrou no recinto uma prostituta conhecida como Bandinha. A alcunha se devia ao fato de ela, quando adolescente, haver sofrido um acidente com um fogareiro de álcool, no qual teve queimada a metade de sua genitália, que ficou sem pelo na banda afetada. A mulher sorriu aos cumprimentos de alguns boêmios, e se dirigiu ao balcão desse misto de bar e pequena mercearia, onde comprou uma garrafa de querosene.

Pouco depois correu o boato de que uma rapariga do baixo meretrício da Munguba havia derramado uma garrafa de querosene sobre seu corpo e vestes, e se ateado fogo. Os comentários diziam que ela se tocara fogo em seu quartinho, onde recebia os homens, para o sexo remunerado. Depois, abrira a porta da alcova, em desespero, e saíra a correr, incendiada, pelo longo corredor do casarão, apelidado de QG, a pedir socorro em gritos lancinantes. Houve mesmo quem dissesse haver presenciado a corrida desesperada da tocha humana.

Quando Lúcia, era esse o nome de Bandinha, voltou a ter consciência de si foi como se houvesse saído de um terrível e trágico pesadelo. Havia momentos em que duvidava sobre se o pesadelo não fora real, e ela não tivesse mesmo ateado fogo em si mesma. Seguiu sua vida normalmente, a receber os homens, a sentir os tédios dolorosos das tardes vazias, melancólicas, em que as lembranças amargas lhe pungiam a alma, jogando-a em profunda depressão. Doíam-lhe os traumas e as recordações, sobretudo do dia em que seu pai, na Ilha das Canárias, quando ela ainda era mocinha, a expulsou de casa, dizendo que ela era um “dedo cortado”. Seu namorado, prometendo que iria casar-se com ela, a desvirginara e engravidara, e, após, fora embora para sempre, abandonando-a como um brinquedo quebrado. Diante da falta de perspectivas em Ilha das Canárias, lugarejo preconceituoso, foi ser mulher da vida em Parnaíba.

Envelheceu. Seus cabelos começaram a ficar brancos e ralos. A pele se lhe enrugou precocemente. Os dentes foram sendo arrancados um a um, até precisar de uma dentadura postiça, que lhe maltratava a gengiva. Já não era procurada pelos homens, como se fosse uma botina rota, rasgada e frouxa, jogada a um canto, até ser mandada para o monturo, de vez. Já não era procurada para o coito pago, mas vez ou outra algum bêbado a procurava, para lhe enganar com o “seixo” ou calote, após saciado. Sequer se rebelava contra esses logros, que lhe serviam ao menos para lhe afastar da rotina de indesejada. Não mais sentia desejos ou afeto.

Passou a ser empregada do prostíbulo, a varrer e lavar o casarão, a limpar as sujeiras das latrinas, a recolher o lixo e dejetos das alcovas das putas novas. Por vezes lhe vinha a vontade de se matar, de por um ponto final nessa tristeza, nesse tédio, nessa decadência. Mas quando lhe vinha esse desejo suicida, a lembrança do pesadelo lhe voltava com cruel intensidade, e Bandinha parecia sentir as dores do fogo a lhe queimar as magras carnes; parecia sentir o cheiro chamuscado de si mesma.

Era humilhada pelas raparigas novas e pelos bêbados, que debochavam de seu corpo torto, de sua boca murcha, de seus membros finos, esquálidos, de seus cabelos ralos e brancos. Depois, em rápida sucessão, já não servia nem para limpar as sujeiras das prostitutas. Passou a mendigar pelas ruas da cidade, principalmente pelas ruas da Munguba e da Vala da Quarenta. Passados alguns anos, sequer aguentava a vida de pedinte, e foi implorar pousada no Abrigo São José. Teve sorte; foi aceita. Teve mais sorte ainda, pois logo depois morreu de um infarto fulminante, enquanto dormia. Não sentiu dores e nem incomodou ninguém.

Quando Lúcia voltou a si, estava sozinha, num lugar que não se parecia com nada que já tivesse visto até então. Não saberia descrevê-lo. Como se surgidos do nada, apareceram uns homens e umas mulheres que se aproximaram dela. Soube, por esses seres, que não tivera um pesadelo, mas efetivamente morrera; que a vida que vivera após o suicídio não fora realmente vida, mas apenas o simulacro de uma vida, a vida que deveria viver e não vivera. As pessoas, os prédios, as coisas e a paisagem eram apenas a sombra irreal do que ela teria que viver na terra. Vivera sozinha, numa outra dimensão, tudo fruto das lembranças e projeções oriundas de uma parte misteriosa de sua mente. Intuiu, então, que ninguém tem o poder de suicidar-se.

(*) Não se trata de uma ficção espírita nem científica. Trata-se apenas de um conto. Cristo disse: “Na casa de meu pai há muitas moradas”. A física moderna especula sobre a possibilidade de existirem outras dimensões e universo(s) paralelo(s). Imaginei todas as hipóteses. Deixo que o leitor adapte a minha narrativa ao que mais lhe convier.


SIMULACRO  DE VIDA – DE ELMAR CARVALHO
Meu caro poeta Elmar Carvalho. A vida da prostituta, que muita vezes se envereda por essa "profissão", é uma das que encerram maior dissabor, que entre incompreensão, medo e abandono social, vai triturando lentamente a "profissional", levando-a à sarjeta e eliminando sonhos, certeza de que não é aceita no seio da sociedade com a valia de todo ser humano. O tédio é o brilho maior dessas mulheres. Lembro-me que, no Jornal Inovação, entrevistamos uma jovenzinha prostituta, que dissera estar naquele ramos porque obrigada pela tia. E comentou sobre o que sofria nas mãos dos homens, que a obrigavam fazer sexo de todos os tipos. Belo texto o seu. O seu tino jornalístico, literário e humanista nos traz um conto de fulguração social arrepiante e belo. Digno do Elmar q todos conhecemos e admiramos. O que seriam daqueles que são jogados no mundo podre da sociedade, se não tivessem homens como você. Wilton Porto

sábado, 16 de julho de 2011

ANTOLOGIA DO NETTO

TEXTO E CHARGE: JOÃO DE DEUS NETTO


ABDIAS SILVA

"Qualquer notícia, mesmo a mais importante, cabe em 30 linhas! Mas, ô, Abdias, e se a bomba atômica explodir? Perguntou o iniciante Paulo José Cunha. E ele: "É a mesma coisa, bota tudo em 30 linhas. Vai ter tão pouca gente pra ler, que 30 linhas continua sendo um bom tamanho pra contar a história...".

Abdias Silva nasceu em Campo MaiorPiauí, e conviveu, nas escolas que cursou, com o ex-Senador e ex-Governador de Minas,Francelino Pereira, e com o jornalista Carlos Castelo Branco. Com a ida de Francelino para Minas e de Castelinho para o Rio, Abdias passou a acalentar o sonho de se transferir para o Sul. Teve a ideia, então, de enviar uma carta ao escritor Érico Veríssimo, em Porto Alegre.Tinha apenas 16 anos de idade. O texto da carta encantou o escritor, que enviou telegrama “Via Western”, com poucos dizeres: “Venha, já acenei com o Dr. Breno Caldas um emprego para você no Correio do Povo. Caldas era dono do jornal. E, numa época de transporte pouco favorável, Abdias Silva viajou de navio, um Ita do Norte, fez escala em Salvador, onde deveria encontrar-se com Érico Veríssimo, que estaria de passagem dos Estados Unidos, mas houve um desencontro e ele foi então à residência de Jorge Amado, anunciando à porta que era um jornalista. Amado o recebeu com uma indagação: “Vocêé o Abdias Silva?” Abdias confirmou e quis saber como ele, Amado, sabia seu nome. “O Érico me telegrafou, pedindo-me que o recebesse. Ele – o escritor viajaria ao exterior – adiou a viagem por atraso no visto”.Em Porto Alegre, com a recomendação de Érico Veríssimo, Abdias passou a integrar a redação do Correio do Povo que mais tarde o transferiu para o Rio, para a cobertura do Senado e da Câmara dos Deputados.Poucos anos após a transferência da Capital para Brasília, Abdias também foi transferido para a sucursal do Correio, passando a trabalhar depois no Jornal do Brasil e em o Estado de S. Paulo.Grande amigo de Castelinho, Abdias era o primeiro a ler a Coluna do Castelo, que era, então, o mais importante artigo da imprensa brasileira. Ele a lia no original, na redação da Sucursal do JB. Às vezes, quando Castelo viajava, Abdias escrevia a coluna.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Quero voltar no tempo


CUNHA E SILVA FILHO

Pouco me importa se me infantilizo, que é melhor do que virar “o homem medíocre’ de José Ingenieros (1877-1925). Quero ir pro fundo da memória lá onde há tanto tempo a terra me viu primeiro sob o terno olhar de mamãe. Passagem do não ser ao ser. Do vagido aos primeiros segundos fora de mamãe, dela desejando umbilicalmente apenas os seios fartos de leite – força da vida e da saúde materna. Em verdade vos digo: era o início de tudo, da vida e das transformações céleres, continuas e irreversíveis com marcas corporais do tempo e cicatrizes da alma. Tudo, visto e posto: data, hora, - enigmas. Limite da matéria e passagem para a metafísica. Num e noutro caso, tudo são mistérios, campo do insondável.
O lugar: uma casa simples e velhíssima, com porta e janelas (duas, no máximo) que ainda não consegui precisar, visto que ninguém até hoje me disse onde se fincava como habitação. “Olha, lá adiante, do lado direito da Avenida Amaral. É uma daquelas casas. Já foi reformada, certeza não tenho.” O tempo é fumaça. Só volta se o transformarmos em arte ou História para não confundir com os ambíguos estória e história da ficcionalidade.
Uma vez que não sou historiador, escolho o caminho da arte ou o que imagino que o seja. Opção que nada tem a ver com os dois caminhos de Robert Frost (1874-1963) no poema “The road not taken” (1916).
Dando os primeiros passos da longa estrada, ali estou nos cueiros aos cuidados de minha mãe, uma jovem senhora de cabelos escuros ondulados, pele morena clara e ainda bela naquele sempre lembrado sinalzinho por sobre os lábios.
Amarante ... A calma Amarante do fim da Segunda Guerra Mundial. Era o início de dezembro. Lá estava eu na rede. Imagino que fosse rede, pois berço era raro. Ninguém me disse.
Papai, no Atheneu Ruy Barbosa, não muito distante dali. Umas duas ou três ruas. Estava com quarenta anos. Bem moço, ocupado com a preparação de suas aulas em tantas matérias: português, aritmética, álgebra, história, geografia, desenho rudimentos de física, de química, até noções de francês e inglês. Era o tempo em que imperavam os livros velhuscos de Antonio Trajano (aritmética e álgebra ), Suzanne Burtin Vinholes (francês), Jacob Bensabat (gramática inglesa), Pe.. Júlio Albino Ferreira (An English Method), entre outros.
Segundo me diria mais tarde, quando eu já era adolescente, sua disciplina no Atheneu era rígida. Os alunos o respeitavam. Por isso, muito feliz foi como professor com alunos que passaram pelas suas mãos e, na vida púbica e profissional se deram muito bem. Tornar-se-iam adultos ilustres: governadores,ministros, prefeitos, militares do Exército de alta patente altos funcionários do Banco do Brasil, médicos, engenheiros, dentistas, e uma gama de outras atividades nas quais se saíram vitoriosos. Seus ex-alunos de Amarante foram seu verdadeiro orgulho de professor nato, como ele costumava se definir.
Além da atividade do Atheneu, Ruy Barbosa, desde cedo começara a escrever artigos para jornais de Floriano e de Teresina. Eram artigos que já chamavam a atenção do leitor para o seu talento e competência. Isso tudo só mais tarde vim a saber por ele ou por outros meios de informação.
Eu, criança, ia me desenvolvendo: um ano, dois anos, três anos. Já falava alguma coisa talvez atrapalhadamente. Já andava, já brincava. De poucos incidentse me recordo plenamente. Um foi, quando pequenino, caí no chão de casa e tive um rasgão no queixo. Lembro-me de quem então mais se preocupou comigo: minha avó paterna, Candinha. Foi ela quem cuidou do ferimento.
Lavou-me o queixo sangrando, passou-me sal no local. Não sei bem se era sal, mas a sensação que tenho agora é que tinha o gosto de sal que seguramente se espalhou pela boca escorrendo – quem sabe – do colo dela onde pusera a criança chorando de dores. Resquícios do ferimento ainda tenho até hoje. Quase invisíveis.
Um outro incidente se refere à viagem de ônibus de Amarante para Teresina. Estávamos de mudança para fixarmos residência na capital. Ônibus que não era fechado dos lados. Só havia os assentos sem nenhum conforto. Era o ano de 1948. Esse incidente, porém, me foi contado por mamãe. O casal Cunha e Silva já contava com quatro filhos. Eu, o terceiro. Papai e mamãe cuidavam de segurar três: Sônia, Winston e Evandro, o quarto. Um senhora, companheira de viagem, pediu à minha mamãe que eu fosse para o colo dela, no que mamãe acedeu agradecida. Era menos um peso e cuidados.
Outros fatos ou circunstâncias da viagem não me vêm por enquanto à memória. Deixarei para mais tarde - seguirei o conselho de Álvaro Lins(1912-1970) - a narração desta primeira tentativa de uma aspiração de adulto saudosista ao espólio da memória – coisas da idade que já começam a borbulhar no espírito mas que deste fazem parte no” balanço da vida.”

quinta-feira, 14 de julho de 2011

ENIGMA

ELMAR CARVALHO

entre o som
        o sono
        o sonho
        a sombra e a sobra
eu me decomponho
  em escombros
em farpas e agulhas
      escarpas e fagulhas
                                desfeito enfim
                                em fogos de artifício
                                feito estrelas de mim
esfinge autoantropofágica que
não se decifrou e que a si
mesma se devorou

quarta-feira, 13 de julho de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO



13 de julho

DUAS DECISÕES JUDICIAIS

Elmar Carvalho

Na segunda-feira, após o término do curso sobre as recentes alterações na processualística penal, ministrado pelo professor Juliano de Oliveira Leonel, de avantajado e invejável saber jurídico, no auditório do TJPI, reencontrei o dedicado serventuário Modesto Barbosa, que durante muitos anos trabalhou na longínqua Comarca de Ribeiro Gonçalves, inclusive na época em que dela fui titular. Ele tinha o cargo então denominado de porteiro zelador de auditório, mas na verdade era um faz tudo, e exercia quase todas as funções inerentes aos demais cargos e encargos da Justiça, como partidor, contador, oficial de Justiça, avaliador, etc. Por causa dessa sua dilatada polivalência, por absoluta necessidade do serviço, diga-se, um dia eu lhe disse:
- Barbosa, você é Modesto apenas no sobrenome, mas no trabalho você é um gigante. Você exerce as atribuições de quase todos os cargos, menos a do seu próprio cargo efetivo, que é o de porteiro zelador de auditório!
O Barbosa não foi nada modesto, e respondeu-me singela e candidamente:
- Não, doutor, até isso eu sou. Não sou eu que faço o pregão das partes?...

Enquanto eu conversava com o Modesto Barbosa, chegaram o colega Sebastião Firmino e o professor Juliano. Aproveitei para contar duas passagens minhas desses tempos ribeirenses, de que o multifacetado servidor foi partícipe e testemunha. Um jurisdicionado ajuizou uma ação contra uma parenta sua, que lhe havia destruído uma plantação de bananeiras. Ao que parece algo do espírito de Caim se apossara dessa senhora, ao ver a prosperidade do condômino e parente. Diante das provas, decidi a favor do autor, e condenei a ré a lhe indenizar o prejuízo, acrescido de mais 20% a título de multa pedagógica, punitiva e inibitória. No dispositivo da sentença, eu indicava que deveria ser calculado o quantitativo da produção dos pés de banana, de acordo com sua vida útil ou produtiva, e levado em conta o preço médio da banana no mercado local. A conta deveria ser feita com a ajuda de um técnico da agência local do EMATER.

Designei o Barbosa para elaborar os cálculos. O advogado Hugo Torres, então residente na Comarca, interpôs embargos declaratórios, sob o argumento de que eu não levara em conta os insumos usados e nem o preço da diária dos trabalhadores. Da maneira mais simples, indeferi os embargos, argumentando que, se eu mandara calcular a produção do bananal e se mandara que o total de bananas fosse multiplicado pelo preço desse produto no mercado local, nenhum prejuízo seria causado ao autor, já que os insumos e o pagamento do pessoal se destinavam a essa comercialização e finalidade, ainda mais com o acréscimo de vinte por cento. Não houve recurso, e eu dei como justa a minha decisão, que foi concretizada com o Barbosa na faceta de contador do juízo.

O segundo caso foi uma ação proposta por uma mulher e suas filhas contra o marido e pai delas. As autoras não mais desejavam morar com esse homem, e pediam que ele fosse compelido a deixar a casinha. Fiz todas as tentativas possíveis para uma conciliação, mas todas foram recusadas. Assim, perguntei se uma parte podia comprar a metade da outra; se, em esforço comum, podiam construir uma casinha no quintal do imóvel, ou em outro terreno; se desejavam vender a residência para ratearem o dinheiro do negócio; se podiam adquirir uma outra casa, etc. Mas a essas e outras alternativas, ambas as partes respondiam que não aceitavam. Diante dessa intransigência, senti-me o próprio sábio rei Salomão, e com uma imaginária espada decidi cortar a casa ao meio, da maneira mais funcional e menos danosa possível.

Como o Barbosa era também uma espécie de arquiteto, e sabia desenhar croquis, o encarreguei de “torar” a casa ao meio, dando à mulher e às filhas, por razões óbvias, o direito de escolherem a metade que preferissem. O nosso bravo servidor, já multicitado, executou minha sentença. Como não houve reclamações e nem recursos, também considerei essa decisão como a mais acertada e menos gravosa diante das circunstâncias. O Barbosa, como um Chico Anízio travestido de Pantaleão, confirmou tudo o que eu disse. Os meus dois ouvintes – o colega Sebastião Firmino e o mestre e defensor público Juliano Leonel – não me fizeram nenhum reparo ou ressalva. Dei, então, minha decisão como confirmada por uma turma recursal informal.