sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

DIÁRIO INCONTÍNUO


3 de fevereiro

VARIAÇÕES INTERTEXTUAIS SOBRE A MORTE

Elmar Carvalho

Fui à administração financeira da URBAPI, responsável pelas taxas de manutenção do cemitério da Ressurreição, localizado no alto de uma colina, e razoavelmente arborizado. Paguei, com desconto, todas as parcelas vincendas do corrente ano. Comprei o jazigo de que sou titular faz mais de catorze anos. Não o adquiri por não ter medo da morte. Ao contrário, talvez tenha sido uma maneira de exorcizá-la ou adiá-la por alguns anos a mais. Também não foi um ato de arrogância. Foi mais de humildade, ante a consciência da finitude da vida terrena.

Embora essa aquisição não possa ser considerada um ato de coragem, rezo e peço ao Senhor para não temer a morte quando a minha hora chegar. Ouço falar que algumas pessoas oram a Nossa da Boa Morte para ter um bom termo de seus dias. Tenho ouvido contar que alguns de nossos semelhantes sabem o dia e a hora em que vão morrer, e anunciam isso com tranquilidade. E têm uma morte serena, sem terror e sem sofrimento. É como se encarassem a morte com naturalidade, posto que ela é mesmo natural, parte integrante da aventura e milagre que chamamos vida. Chamo de milagre o existir, porque talvez fosse mais fácil e menos trabalhoso o não vir à existência, o simples inexistir, que existe, uma vez que conseguimos pensá-lo, imaginá-lo como algo, ainda que esse algo seja o nada.

É claro que eu gostaria de ter uma boa morte, uma morte tranquila, sem medo e sem sofrimento, como uma vela que se fosse lentamente finando, e se extinguisse com o último resquício da parafina. Mas, como diz minha mãe, sobretudo quando se refere a arrogantes e enfatuados, nós não sabemos sequer como iremos morrer. O final de cada um é um completo mistério, por vezes surpreendente; às vezes a velha ceifadora surge através de um desastre automobilístico ou por meio de uma tragédia passional, ou através de uma catástrofe da natureza, como uma enchente, um raio, um desmoronamento de encostas de morro ou um tsunami. Alguns, talvez privilegiados, passam do sono à morte, do pequeno sono ao sono maior.

O poeta Manuel Bandeira que, tísico, levou a vida a conviver com a morte, esperando-a chegar a qualquer momento, não a celebrou, posto que não era suicida, nem nunca fez a apologia de tal ato desesperado, mas a cantou algumas vezes. No poema Consoada imaginou a hipótese de sorrir para “a indesejada das gentes”, e de que o seu dia teria sido bom, quando a grande noite descesse sobre ele, “com cada coisa em seu lugar”. Ante o inelutável, creio ser esse o desejo de todos nós. Contudo, como disse Bandeira e como diz minha mãe, em suas palavras singelas, jamais saberemos se a morte chegará “dura ou caroável”.

O mesmo Bandeira fala em alguém morrer tão profundamente que não deixasse sequer o seu nome na memória de outrem. Fernando Pessoa, no poema Tabacaria, diz que certo comerciante deixaria a tabuleta de sua loja e que ele deixaria seus versos, mas que, após algum tempo, desapareceriam os versos e a tabuleta, e depois de mais algum tempo desapareceria até o planeta onde esses fatos ocorreram. Junqueira Freire, que ingressou na Ordem dos Beneditinos, provavelmente sem vocação para o claustro e para o celibato, tratando a morte de forma carinhosa, chamando-a de amiga, afirma que ela seria o fim de dois fantasmas de sua existência – sua alma vã e seu corpo enfermo.

Muitos deixam as suas disposições de última vontade, algumas cheias de pormenores, inclusive dispondo até sobre o ritual fúnebre e sobre a arquitetura de seu mausoléu. Alguns fazem recomendações de humildade franciscana sobre a maneira de seu sepultamento. Contudo, dizem que recomendações sobre o próprio funeral são sempre indício de vaidade, mesmo quando aparentam modéstia. O sacerdote e grande poeta cearense Antônio Tomás, autor de alguns sonetos antológicos, disse que gostaria de ser sepultado de tal modo que ninguém pudesse identificar o local onde seria enterrado, que não deveria conter datas, sinais, nomes ou palavras. Como assinalou o escritor Assis Brasil, se o sacerdote e aedo desejasse mesmo cair em completo esquecimento deveria ter queimado todos os seus poemas, que ainda hoje são admirados e declamados. Outros chegam ao ponto de escrever até as frases que gostariam de ter estampadas em sua lápide. O grande romântico Álvares de Azevedo deixou estes versos literalmente lapidares, conforme a contextualização do poema: “Foi poeta, sonhou e amou na vida...”

Para não alongar demasiado este despretensioso registro, consigno apenas que eu próprio já escrevi vários textos, em prosa e em versos, em que feri o assunto morte. Em dois deles, tratei da morte trágica de uma cadela e de um cão, e em outro narrei a bela morte de um homem bom e digno, que se chamou Joaquim Lustosa Nogueira. Soube ele o dia e o horário de seu falecimento, e morreu placidamente, com a face composta, sem um ricto sequer, sob o olhar de sua filha, com a qual conversava.

Por fim, derramarei agora a última pá de cal e de terra sobre esta nota, depondo sobre ela a “pedra de tumba, compacta, lisa, desprezada” dos cinco versos finais de um soneto de Jorge de Lima, componente da Invenção de Orfeu: “Nem tristeza talvez nem alegria, / não mais perpassam sobre sua face / parada, indiferente mesmo à morte / que ela encerrou em treva, e esquecimento, / e o próprio esquecimento abandonou”.

7 comentários:

  1. Elmar, a morte é um assunto tabu para mim,morro de medo de morrer, talvez porque a vida, salvo alguns percalços, foi e é muito boa para mim, de modo que de nada entendo de mortee nem quero entender. Jonas FOntenele

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  2. Creio que eu muitas vezes falo sobre a "indesejada das gentes" para exorcizá-la ou adiá-la por uns bons tempos, como eu disse em meu texto. Não impreco contra ela, mas também não a exalto. Considero seja ela o portal para a continuação da vida, em outra dimensão, talvez, mas não desejo escancarar agora a cortina dessa revelação do enigma, que acredito existir.

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  3. o dr. heli nunes, que fizera 92 anos no dia 22 de setembro de 2010, levado por mim e por dona genu moraes ao dr. ricardo lobo, que queria saber do seu estado de saúde, pois anunciavam casamento, ele com 92 anos e ela com 82 anos, teve sua saúde boa, dentro do limite de idade, comprovada pelo referido médico, muito conceituado em sua área. passamos uma quatro horas de conversa, porquanto o dr. ricardo lobo tinha deixado a tarde livre para atender tão somente o dr. heli nunes. saindo de lá, fomos para o casarão de dona genu moraes. dr. heli nunes, muito sereno, disse que no dia 27 de setembro daquele ano desencarnaria. fora avisado pelo mundo espiritual. ele, que fundara o centro espírita do piauí e era um dos mais antigos do espiritismo piauiense. fui deixá-lo em casa, como sempre fazia. retornei ao casarão, pois recebera telefonema de dona genu com essa determinação. queria saber que história era aquela. se a saúde dele estava boa, comprovada pelo dr. ricardo lobo. eu disse, dona genu moraes, o dr. heli nunes é assim como os homens lá de cima. se ele recebeu tal comunicado, devemos nos preparar para o seu desencarne. não deu outra. no dia 27, dr. heli nunes, conforme dissera, desencarnou. entrevistados, no velório, que se deu na pax união, miguel rosa, falamos isso para os jornalistas. o registro está nos jornais e nos portais. e nos arquivos das tvs e das rádios.
    de tal sorte que, como dizia mário faustino: não morri de mala sorte / morri de amor pela morte...

    eu, por mim, rezo todos os dias para que, sendo assim a sua vontade, o senhor me leve e me coloque entre os seus.

    com fé, esperança e amor,

    do amigo e admirador, kenard kruel.

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  4. Elmar Carvlaho:

    Se o assunto não é para mim, pelo menos, belo, a composição da crônca o é e merece ser meditada solenemente, humildemente, humanamente. Não se brinca cxom as Parcas. E você, falando do últmo assunto, o f ez pelo repseito que ele sempre merecerpa de nós morais. Respeitar ´pe o que você fez, o que se deve fazer o que somos mortais. Não adinata brular o acontecimento natural e necessário. A passaagem de um estágio a outro para mim ainda um desconhecido. Não quero aprofundar o tema do "último suspiro" nem quero muito menos fugir por medo, por covardia. Meu pai me dizia nas minhas longas conversas com ele que "a morte é uma coisa natural", que se deve aceitar como se aceita a vida.Quando penso nela penso sempre naquelas figuras queridas ja se foram e que de certa maneira servem para reforçar a ideia de que nossa vez tamém virá aiada que , para mi,, sempre inoportuna. Um grande filósofo americano, Will Durant, uma vez sendo perguntado seqeuria viver para sempre, respondeu: "Não, a morte é uma necessidade para os humanos, é memso o melhor caminho. Voc^e já imagnoou se nun ca tivessemos que morrer, inquiriu ele do interlocutor. Todos nós ficariamso cansados e enfastiados de fazer a mesma coisa nas atividades que nos interessam."
    Uma coissa, porém, é certa: Morremos , quanto às nossas aspirações e desejos, e planos, e sonhos, deforma incompleta. A vida ca na Teerra é incompleta. Seria preciso mais uma vida para que déssemos conta do que t´pinhamos em mente realizar, ou ate mesmo mudar, concluir. Diria isso mais do pontode vista da realização intelectual. A vida é mesmo breve. O tempo ´de que dispomos, mesmo que tivermos que viver longos naos, ainda é muito curto. É isso que me dói existencialmente, amigo.

    Um forte abraço do
    Cunha e Silva Filho

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  5. foi uma grande alegria ter sido escolhido pra fazer a última prece na hora do seu sepultamento.Dr Heli, meu querido irmão, amigo e protetor.

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    1. Eu vi uma matéria no blog do Kenard Kruel, na qual consta que o Dr. Heli teria encontrado uma criança, salvo engano em Floriano, que seria a reencarnação de seu filho, o poeta Torquato Neto. Foi ele um homem bom, que deixou obras de caridade na terra.

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  6. Ele adotou duas crianças em Picos, hoje elas estão com 15 anos, uma delas, ele teve notícia, que seria a reencarnação do filho falecido.

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