sábado, 4 de fevereiro de 2012

EU ERA RICO E NÃO SABIA

Membros do jornal Inovação, no bar Recanto da Saudade, de propriedade do saudoso dom Augusto da Munguba
Os saudosos Augusto e Dourado, tendo ao fundo o Recanto da Saudade

Jonas Filho Fontenele de Carvalho

Eu era rico quando menino: eu e a molecada. Tínhamos um banco central próprio, com dinheiro representado por embalagens de cigarros. Cada marca, um valor específico. Quanto mais raro, circulava com mais valor. Particularmente, possuía muito “dinheiro”, era o rico, entre os amigos e primos. Comprava pombos, peteca (bila), castanha recheada de sabão (pra jogar apostado), triângulo (também pra jogar apostado), papagaio (pipa) e até mesmo, um caminhão feito de lata de óleo pajeú. A “jogatina” era grande entre a molecada, apostava-se de tudo, e com aquele “dinheiro”, se faziam apostas, realizavam compras.
Problema para os outros, era saber como eu conseguia “tanto” “dinheiro”, pra ser o Bil Gattes entre a molecada. Mas isso era segredo, que eu guardava a sete chaves. Nem mesmo os primos mais chegados tinham essa informação. O certo é que, enquanto eles tinham acesso somente a carteiras de cigarro dos parentes que fumavam (e sempre cigarros de marcas conhecidas), patinavam na “pobreza” enquanto eu além de ter muito, mas muito dinheiro de marca conhecida, também era possuidor de marcas que sequer existiam em Parnaíba. Era realmente um rico, comprando tudo aquilo que o “dinheiro” alcançava, mantendo sempre o segredo de como adquiria as marcas estrangeiras. Como eu possuía, em abundância, “dinheiro” nacional!
O segredo, conto agora, com exclusividade, para os leitores de Repaginando. Certo dia, fazendo o que todo menino adora fazer, ou seja, as peraltices, conheci, por acaso, a Munguba, local onde havia muitos bares e as chamadas “mulheres da vida”. Lógico que havia passado o auge dos bares e noitadas festivas. Apesar disso, não entendia o que era aquele movimento todo, mas fiquei maravilhado com a fartura de carteiras de cigarros pelo chão. Uma fortuna! No primeiro dia, cheguei por volta das sete da manhã e ainda alcancei algumas casas lotadas, com muitos homens e mulheres embriagados, porém, o que encheu meus olhos de alegria foi ver aquela quantidade imensa de “dinheiro”, à disposição dos ventos. Aquilo era um verdadeiro maná. Catei tudo o que foi possível, transformando em seguida em “contos”, me tornando “rico”, da noite pro dia, representando, para mim, um prêmio de Loteria, sozinho! Mina exclusiva, quando a reserva acabava, era só voltar, em idas que se tornaram constantes, afinal, quem não gosta de ter tanto dinheiro? Por conta da garimpagem, conheci dois donos de bares: Augusto e Orlando, que passaram a guardar, para mim, as embalagens mais raras. Era uma festa!
Um dia, circulando por entre os bares, presenciei cena fortíssima pra minha idade. Estava eu no bar do Orlando fazendo a minha arrecadação, quando entrou uma mulher e comprou uma “meiota” de querosene. Apressada, retirou-se do jeito que entrou. Ainda no bar, ouvi os gritos, corre-corre, uma grande confusão: a mulher havia encharcado o corpo, pondo fim a própria vida. A morte, apresentara-se ao moleque que não entendia o que se passava. Enfim, as idas à Munguba proporcionaram muitas outras visões, mas a morte brutal marcou a minha existência.
Acabou minha infância e, junto com ela, a “riqueza” foi embora, restando as lembranças. Apoiado pela necessidade de lutar pela vida, zarpei para a cidade de São Paulo, deixando amigos, parentes, minhas origens. Na capital paulista, ao visitar um conterrâneo, deparei-me com exemplar do Jornal “Inovação”, que mostrava uma juventude preocupada com os rumos da política e da economia da cidade. A nova linguagem jornalística mexeu com minha cabeça, imediatamente cativando minha atenção, razão pela qual enviei uma carta ao Reginaldo Costa, solicitando assinatura do combativo jornal. Consegui mais que isso: passei a ser um colaborador, e, de quebra, ganhei a amizade não apenas dele, Reginaldo Costa, como também do Elmar Carvalho, e da Vera Coutinho, entre outros integrantes da equipe, em relacionamentos de amizade que perduram.
Pelo conteúdo de contestação, o jornal era discriminado pela elite local. Participar do Movimento era ser visto com restrições, além do rótulo de “comunista”, sem contar as agressões físicas e várias ameaças.
Numa dessas visitas a Parnaíba fomos conversar – eu e o Reginaldo, no bar do Augusto, selando o primeiro encontro. Implantado nas imediações de vala a céu aberto, o mau cheiro incomodava, mas o bar tinha algumas compensações, entre elas, o acervo em discos de vinil. Mas a maior mesmo era Augusto, proprietário do estabelecimento. Bonachão, em tudo encontrava motivo para sorrir. Por várias vezes, abriu o bar exclusivamente para nos receber. Quando encontrávamos as portas fechadas, íamos a sua casa e ele nos conduzia de volta ao boteco, onde permanecíamos em bate papo agradável, embora o gasto fosse irrisório.
O tempo foi passando e a freqüência do bar foi aumentando. Ouso dizer que muitos parnaibanos e mesmo turistas descobriram ou redescobriram o bar através dos integrantes de “Inovação”. De certo, virou atração, um “point”, de gente que para lá se dirigia no intuito de se divertir - jornalistas, poetas, escritores, empresários, gente do povo que passava os domingos, comendo caranguejo, bebendo cerveja.
Com a ampliação da rede de freqüentadores, Augusto melhorou as condições físicas do bar, mandou escrever poemas nas paredes, pendurou depoimentos dos freqüentadores, um de minha autoria. Surpreendido com o sucesso, para denominar o bar tascou na parede: “RECANTO DA SAUDADE”. E não deu outra. O espaço ficou pequeno pra tantos fregueses. E ninguém se metesse a besta de adentrar no recinto nu da cintura pra cima! Por conta disso, perdeu alguns clientes. Apesar da enorme quantidade em discos, manipulava o acervo com a maior facilidade, localizando as musicas solicitadas em questão de segundos, poupando o cliente ancioso do stress inevitável pela busca. Circulava por entre mesas, invariavelmente, carregando flanela no ombro, para limpar os discos toda vez que retirava da capa, devidamente protegida por plástico.
No sentido de colaborar com a divulgação do espaço, promovi, por conta própria, o show de um cantor sósia de Agnaldo Timóteo, que reside em Brasília. O bar ficou repleto. Naquele dia, Augusto faturou uma nota preta! A meu modo, retribui o “dinheiro” que ele me dera quando eu era criança.
Abalados com a morte repentina do Augusto, ficamos imaginando em como preservar aquele patrimônio e o acervo musical, quando tomei conhecimento de que havia um movimento em prol do tombamento histórico. Pra variar, nada foi feito. O que aconteceu, mesmo, foi a demolição do prédio, enterrando com ele alegrias, tristezas, tudo que construímos nas conversas de fim de tarde ou virando o dia, guardando no cofre da lembrança os nos momentos vividos no seu bar, que ele teimou em chamar “Recanto da Saudade”.

Charge: Gervásio Castro


BAR DO AUGUSTO

Elmar Carvalho

No bar do Augusto
o passado era sempre presente,
e o futuro a Deus pertence.
No Recanto da Saudade

de outra dimensão do espaço-tempo
o Dourado continua a vestir a fantasia
de a sua própria pessoa ser ou não ser
heterodoxos heterônimos pessoanos.

Onde, agora, o Augusto?
Onde, agora, a vitrola, a música e o bar?
Como nos versos sublimes de Bandeira,

ficaram de pé, suspensos no ar. . .
Encantados no destempo de um tempo
sem passado, sem futuro, sem presente.

4 comentários:

  1. Elmar, procurei nas minhas coisas e infelizmente não achei, uma foto tirada num tempo em que praticamente só nós íamos ao bar do Augusto, é uma foto tirada pelo Augusto onde estávamos eu, você e Reginaldo sentado num banco de madeira que tinha em frente ao bar. Um dia vou achá-la, pois dela não me desfiz, apenas está perdida em agum canto, talvez num recanto de saudade. Obrigado pela publicação, nosso velho e imortal Augusto merece a homenagem. Jonas Fontenele

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  2. Quando você encontrar a foto, mande-a, para ilustrar esta ou alguma outra futura publicação. Tirante os velhos porcos d'água d'antanho e os moradores da (vala) da Quarenta nós fomos os pioneiros em frequentar o Recanto da Saudade, que hoje, como você disse, só existe no recanto de nossa saudade.

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    1. Elmar eu fiquei simplesmente maravilhado com a charge,essa do Augusto com o nosso Dourado, em cima de uma pilha de discos, e ele Augusto com o disco na mão, simplesmente maravilhoso, gostaria de fazer um quadro, como faço? Jonas Fontenele

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  3. Realmente, o autor da charge é genial, e é parnaibano. Além do mais, é flamenguista. Através de e-mail, darei mais detalhes para você.

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