domingo, 11 de março de 2012

Direito, Ensino e Justiça (*)


Ivanovick Pinheiro
Defensor Público e professor

O que a sociedade, os familiares e os amigos esperam dos alunos que concluem o curso nesse momento? E o que os próprios alunos devem propor como objetivo a ser alcançado?

Alguns responderão reconhecimento intelectual, outros, sucesso profissional e financeiro. Alguns dirão: desejo apenas a segurança e a estabilidade de um bom cargo público. São respostas prontas. Aparentemente todas adequadas para equacionar a questão proposta. Todas elas, entretanto, deixam de levar em conta a perspectiva essencial daqueles que se laçam em qualquer atividade profissional e, em especial, no universo jurídico.

A resposta a esse questionamento essencial não interessa apenas aos concludentes ou aos profissionais que labutam na área do direito. Interessa a todos. Diz respeito a todos os presentes nesse auditório porque repercute na vida de todos.

Numa perspectiva global, uma primeira resposta à pergunta lançada poderia ser formulada nos seguintes termos: todos desejam que os futuros profissionais (agora concludentes) ajudem a enfrentar e solucionar adequadamente os maiores desafios da sociedade contemporânea.

Mas muitos dirão que tal resposta é incompleta. Isso é parcialmente verdadeiro, porque não explica qual o maior desafio enfrentado pela sociedade contemporânea. Em outras palavras, não adianta falar para os formandos aqui presentes que esperamos deles a solução do maior desafio atual sem explicitar qual é esse desafio.

Adianto qual é o maior desafio: Os formandos/profissionais devem compreender a Justiça menos como uma questão da epistemologia jurídica e mais como algo que passa a conduzir a própria compreensão do agir. Explico: espistemologia é a disciplina voltada a análise das condições de possibilidade e validade do conhecimento científico (Willis Santiago). Assim, não interessa a nenhum membro da sociedade brasileira e mundial que todos vocês conheçam a justiça sob o aspecto dogmático, filosófico ou sociológico, sem que materializem a repercussão dessa compreensão no agir de vocês.

O ser humano e todos os formandos aqui presentes – diante dos conflitos da sociedade contemporânea, notadamente aquela moldada pós guerra fria e que testemunhou o 11/09 (em Nova Iorque) – deve resgatar as lições de Platão e Aristóteles, narradas por Karl Jaspers, acerca do impulso originário da Filosofia:

a) assombro/admiração diante do Cosmos;
b) dúvida com os resultados obtidos com as tentativas de apaziguar sua inquietação;
c) comoção diante da sua debilidade/impotência impostas por sua situação vital de mortal.

Em outras palavras, vocês devem se assombrar com o Universo, duvidar sempre dos resultados obtidos na tentativa de apaziguar o assombro e reconhecer a debilidade intrínseca do ser humano, diante da sua mortalidade.

Nesse ponto algum de vocês pode se questionar: mas qual é a relação entre o problema da justiça, minhas perspectivas de futuro e as lições de Platão?

Respondo me utilizando das palavras do professor Willis Santiago quando se questionou acerca do que esperar do ser humano numa época de predomínio do pensamento técnico-científico. Disse o professor que a ciência não soluciona adequadamente todas as questões atuais, pois ela não oferece a resposta de como o ser humano deve enfrentar a problemática relativa aos valores e, especificamente, a Justiça.

Além dessa questão, existem problemas criados pelo próprio homem no desenvolvimento das ciências (p.e.: produção de armas de extermínio, possibilidade de manipulação do material genético não utilizado/descartável; o desenvolvimento sustentável, dentre tantas outras que não encontram resposta na abordagem puramente científica. Além disso, lembro a questão dos limites do conhecimento científico, bem como da reflexão acerca de um possível modelo de futuro adequado.

Então vocês se questionam: E como devo agir para avaliar as situações com justiça?

Respondo: esperamos de vocês que reflitam como Platão e que tenham em mente a necessidade de uma compreensão mais axiológica e menos dogmática das situações que os cercam. A Justiça não será encontrada em manuais de direito para concursos, nas aulas de cursinhos preparatórios, nos manuais para a OAB, nem nas obras de ilustres professores.

Mas alguns aqui poderiam me advertir: professor, não existe um modelo de Justiça. Como saberei se o que a sociedade espera de mim eu estarei realmente desempenhando. O que significa – concretamente – agir com Justiça?

O pensamento pós-moderno, fundamentado nos estudos da teoria da Justiça de John Rawls, na teoria da argumentação de Alexy e na teoria do agir comunicativo de Habermas repercute no tratamento de dois temas que podem ser colocados como centro desta questão e se apresentam como uma resposta sobre a proposição acima: os direitos humanos (e o direito internacional dos direitos humanos) e a Democracia.

Os direitos humanos são o requisito para que as pessoas possam construir sua vida em liberdade, igualdade e dignidade. Eles são compostos por direitos civis, políticos, econômicos, sociais e coletivos e foram primeiramente consolidados nas legislações nacionais (até a II Guerra Mundial), antes de se tornarem matéria do direito internacional.

O genocídio dos nazistas contra os judeus na Europa e sua brutal repressão aos opositores políticos foi a catástrofe no século passado. Desde os horrores da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional traçou, em 1945, a meta de “preservar as gerações vindouras dos flagelos da guerra”, que deveria ser alcançada por meio de um sistema de segurança coletiva, através da ONU.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi o ponto de partida para a construção do sistema de direitos humanos das Nações Unidas e é o ponto de referência para todos os outros tratados internacionais. Logo no preâmbulo destaca que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

Mais adiante, a Declaração prescreve que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade é a mais alta aspiração do homem comum. Além disso, proclama a convicção nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, como indispensáveis para alcançar o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla.

Hoje – além da Declaração Universal dos Direitos Humanos – existe uma codificação global dos direitos humanos em sua totalidade e em relação a determinados grupos e situações. A tarefa de todos aqueles que se lançam no universo do Direito é trabalhar diariamente para que as disposições da Declaração Universal dos Direitos Humanos sejam alcançadas, consagrando-se um padrão universal de direitos humanos.

Cito apenas um dentre muitos exemplos de comportamento que esperamos de vocês: compreendam as situações que se lhes apresentam sob uma ótica solidarista e despatrimonializante, reconhecendo “maior hierarquia axiológica à pessoa humana – na sua dimensão do “ser” – em detrimento da dimensão patrimonial do “ter”.” Trabalhem em favor do personalismo – superando o individualismo e a patrimonialidade como fim de si mesma. As situações patrimoniais devem ser funcionalizadas em favor das situações existenciais, notadamente no âmbito das relações voltadas à tutela de bens essenciais à pessoa humana, como a habitação, o trabalho, o projeto familiar, entre outros. A construção do pensamento jurídico de todos vocês deve ser baseado em valores e princípios democráticos, igualitários, solidaristas e humanistas. (Guilherme Calmon Nogueira da Gama)

Diante do quadro aqui moldado, retiro uma primeira conclusão: vocês atuarão com justiça quando defenderem os direitos humanos e consagrarem no agir diário o modelo de Estado Democrático de Direito, com todos os consectários daí advindos. Mas não finalizo minhas palavras aqui.

Sigo adiante apenas para ressaltar que em grande medida a concretização desses direitos humanos e a consagração da Democracia (e do modelo Estado Democrático de Direito) envolvem questões centrais da Filosofia, da Sociologia e da Metodologia Jurídica contemporânea.

Tanto é assim que os estudiosos se lançaram sobre o tema e formularam importantes conclusões (Boaventura Santos):

a) Existe uma discrepância entre o direito vigente e o socialmente eficaz. O modelo jurídico normativista anterior a II Guerra Mundial é incapaz de tratar adequadamente as novas questões.
b) Houve uma mudança do paradigma normativista para o sociológico no pós-guerra, impulsionada por razões teóricas (Desenvolvimento da Sociologia das Organizações; Desenvolvimento da Ciência Política; Desenvolvimento da antropologia do direito ) e sociais (Lutas Sociais protagonizadas por novos grupos e a Crise na Administração da Justiça (capitaneada pelo aumento dos conflitos)).

Assim, diante do quadro atual, todos aqueles que atuam no Direito devem se ocupar de três temas fundamentais: a) o Acesso a Justiça; b) a Administração da Justiça e c) a Litigiosidade Social e os (novos) mecanismos de resolução de conflitos presentes na sociedade.

Os formandos aqui presentes devem compreender essa realidade que os cerca e contribuir para a solução dessas questões fundamentais, que podem ser resumidas nas seguintes palavras:

A ciência é (parcialmente) incapaz de tratar da questão da Justiça, dos limites da ciência e das conseqüências do desenvolvimento científico. O equacionamento dessas questões reclama a atuação do Direito (e do profissional do Direito). As principais variáveis dessa equação são a proteção dos direitos humanos e a construção do Estado Democrático de Direito.

Assim, para vocês agirem com justiça devem compreender a problemática que envolve temas como o acesso a justiça, a administração da justiça e das novas formas de solução dos conflitos, bem como compreender a Justiça menos como uma questão da epistemologia jurídica e mais como algo que passa a conduzir a própria compreensão do agir.

Esse agir humanista e democrático exige de vocês que avaliem as situações que se lhes apresentam sob uma ótica solidarista e despatrimonializante, reconhecendo maior hierarquia axiológica à pessoa humana. O personalismo deve superar o individualismo e a patrimonialidade como fim de si mesma.

A construção do pensamento jurídico de todos vocês deve ser baseado em valores e princípios democráticos, igualitários, solidaristas e humanistas.

Obrigado pela Homenagem. O tempo em que estivemos juntos em sala de aula foi recompensador. Trabalhei para que essa compreensão de respeito a dignidade estivesse presente em todos os momentos. A fraternidade foi recorrente em nossos encontros e hoje não foi diferente.

(*) Discurso pronunciado por Ivanovick Pinheiro, na qualidade de paraninfo de turma de formandos em Direito da Faculdade NOVAFAPI.

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