Lord Byron |
Belinha, Elmara, Anita e Elmar |
MEL,
UMA CACHORRINHA
Elmar
Carvalho
Quando
fui morar, no início de abril de 2007, no condomínio Pingo d’Água,
em Regeneração, cidade onde passei, em minha adolescência, alguns
dias de férias, em companhia de meu amigo Otaviano, que nela morara
alguns anos, juntamente com seu pai, João Capucho do Vale, com sua
mãe, dona Consolação, e com seu irmão Augusto César, grande
craque do futebol piauiense, logo me chamou a atenção a cadelinha
Mel, cujo nome doce não se deve ao seu sabor, mas a sua graciosa
cor. Sempre a via quentando sol, graciosamente deitada sobre um
tapete, na porta do apartamento em que morava, na companhia de seus
donos, o senhor Rodrigo e dona Antônia, dedicada professora de
geografia e história, disciplinas de que sempre gostei, ao lado de
literatura.
Minha
aproximação com essa cachorrinha foi um tanto difícil, pois ela
era muito ciosa de seu “pedaço”, de seu território. E eu tinha
de invadi-lo, quando ia ao trabalho, ou quando voltava, em meus dois
expedientes diários. Ela latia vigorosamente, quando eu passava.
Felizmente, eram latidos apenas de advertência, uma vez que ela
nunca tentou morder-me. Empenhei-me, então, em conquistar a sua
amizade, procurando fazer-lhe alguns “agrados”, estalando os
dedos e lhe dirigindo algumas palavras afetuosas. Aos poucos, ela
deixou de latir e já me permitia ficar em sua proximidade, mas nunca
cheguei ao ponto de lhe tocar e acariciar, como gostaria.
Gradativamente, tornou-se amiga de minha pequena cadela Belinha, que
é arredia, um tanto desconfiada, mas muito dócil e tímida.
Gostava
de ver Mel, passeando e fazendo evoluções e piruetas no largo
corredor de acesso ao condomínio. De longe ela me mirava, focando
sua atenção ao levantar suas pequenas e pontiagudas orelhas, como
se estivesse em guarda ou na defensiva, ante algum eventual e
invisível perigo. Sua dona, a bem de sua saúde e também para lhe
assegurar a descendência, providenciou o seu cruzamento com um de
seus descendentes, talvez na intenção de obter algumas fidedignas
cópias. Dessa providência advieram quatro filhotes, um dos quais
nascido morto.
Dona
Toinha providenciou-lhes uma espécie de ninho, em um cesto, no qual
Mel dormia com os seus três rebentos. Era esmerada em seus cuidados
de mãe, diligente em seus deveres maternos, inclusive quanto ao
asseio e alimentação. Contaram-me que segurava, um a um, os
filhotes em sua boca, para descê-los do cesto, a improvisada alcova
ou ninho. Quando um dos filhotes punha as patinhas sobre a borda do
cesto, insinuando querer entrar nele, Mel o segurava, suavemente,
pelo pescoço e o punha no aconchegante reduto.
Entrei
de férias e não mais tive notícias dessa família canina. No final
delas, vim a Regeneração, numa viagem maçônica, oportunidade em
que encontrei a dona da Mel, pois o seu marido é irmão maçônico.
Perguntei pela cadelinha e suas crias, tendo ela me dito que estavam
bem, com os filhotes ficando tão espertos quanto a mãe.
Retornei
de minhas férias e logo ao chegar tive uma forte comoção, um
verdadeiro choque emocional, ao saber que Mel havia morrido. Senti
uma profunda tristeza e um grande vazio em meu coração. Dona Toinha
contou-me como foi o desfecho da vida de Mel. Gostaria de ter o
talento de Platão, ao contar a sublime e bela morte de Sócrates,
para narrar como foi a morte dessa encantadora e valente cachorrinha.
Dona Toinha saíra para visitar uma vizinha, do outro lado da rua.
Uma pessoa, inadvertidamente, ao sair, não fechou o portão. Mel,
sempre ativa e inquieta, e talvez saudosa de sua dona, atravessou a
rua para encontrá-la.
Depois
de fazer a “festa” de praxe, abanando o rabinho em cumprimento,
começou a brincar na rua, correndo e volteando de um lado para
outro, buliçosa que era. Latiu para uns cachorros grandes, e os pôs
em fuga. Claro que a fuga devia ser simulada, uma brincadeira dos
cães, para aumentar-lhe a auto-estima. Certamente Mel, em sua
bravura sem arrogância, achava que os pusera para correr de verdade.
Em suas evoluções na rua, verdadeiras coreografias caninas,
expunha-se aos perigos do trânsito, em virtude da imprudência e
brutalidade dos apressados pilotos e motoristas dos estressantes dias
atuais.
De
repente, num átimo, que não se mede e não se espera, uma
motocicleta, em alucinante disparada, passa por cima da pequenina
Mel. A mimosa cadelinha, inteiriçada de dor cruciante, contudo
aparentemente perfeita, sem um ferimento sequer, talvez pensando nos
filhotes, talvez no desespero de uma dor insuportável, ainda se
ergueu, e caminhou em direção a sua casa, tentando atravessar a
rua. Mas caiu em seguida. Ergueu-se novamente, em heróico esforço,
em busca dos filhos. Tornou a cair, transida de dor, para outra vez
se levantar. Tombou, ainda outra vez. E ainda outra vez se levantou,
sabe Deus a que custo e a quanto sofrimento.
Porém
não resistiu, e, logo nos primeiros passos, voltou a cair para não
mais se levantar. Sua dona a ergueu, traspassadas, ambas, de intensa
dor; a cadelinha, creio, com dores físicas e sentimentais, pensando
nos filhotes, que deixaria para sempre, e a sua dona possuída por
forte comoção e tristeza. Levou-a, com muito cuidado e carinho,
para o apartamento, em que Mel ainda resistiu por alguns minutos,
para depois exalar o seu último suspiro, cercada pelos seus
rebentos.
Dois
filhotes se encontram, hoje, com parentes da professora Toinha.
Cresceram em graciosidade e em esperteza. Todo dia, no Pingo d’
Água, vejo Juquinha, negro como noite sem luar, negro como asa de
graúna, para fazer poética intertextualização. Embora negro, como
luzidio e ambulante carvão, é uma cópia autêntica de sua mãe. Ao
vê-lo, sinto uma grande saudade da Mel, bela e brava cadelinha, que
tanto admirei, e que tanto me encantou em sua beleza sem vaidade, em
sua bravura sem insolência, como disse o bardo Lord Byron, no
epitáfio de seu cão.
Não conheci Mel, mas conheço a sua dona, D. Toinha e, como colega de trabalho, posso afirmar que é deveras uma grande mulher. Entretanto, a protagonista da narrativa não é a dona Antônia e tampouco o seu Rodrigo e sim a sua cadela. Confesso que algo me chamou a atenção. Caro vate, fizeste aqui o contrário do que a maioria costuma fazer. O bruto foi "humanizado" e o humano foi "embrutecido". Só me resta perguntar: Quem tem sido irracional?
ResponderExcluirNo aparente paradoxo que você propôs, o irracional é o chamado animal racional.
ResponderExcluirIlustre poeta, olhando para a sua foto de perfil e para a foto de Lord Byron, tive a impressão de que vocês estão fitando a mesma coisa. Depois disso, estive a observar algumas de suas fotos e vi que não é de seu costume olhar pra câmera no momento da foto. Algum motivo especial?
ResponderExcluirCaro Nelson,
ResponderExcluirTalvez eu esteja a fingir que não estou fazendo pose, ao não olhar para a câmera. Ou talvez eu queira fitar o além, ou o além do infinito...