segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Engabelaram São Raimundo Nonato da Piçarra



José Maria Vasconcelos

Anualmente, passadinha nos festejos de São Raimundo. O evento me traz recordações da infância. Finalzinho da década 1950. Eu não perdia uma noite de animação: barracas de palha, guloseimas ou servindo de coroinha ao vigário Frei Eliézer, além de botar disco de cera de 72 rotações na radiola do alto falante. Não existia o templo atual. À direita, só tosca capelinha coberta de telha, onde mal cabiam umas cem pessoas.

Teresina de 150 mil habitantes corria para os festejos de São Raimundo. Piçarra, muita piçarra, lama, poeira. Cabarés famosos de belas mulheres, deleites de marmanjos ricos. A única ponte(de madeira, onde hoje se ergue a Ponte Wall Ferraz) sobre o Rio Poti, foi arrastada por enchente, obrigando a construção de outra, a Juscelino Kubitschek, no final da Avenida Frei Serafim. Avenida Miguel Rosa, estreita, esburacada, poeirenta, terminava na Piçarra, na entrada da Avenida S. Raimundo.

Para os padrões urbanísticos atuais, a Piçarra não passava de favela. Pior, o mínimo de energia elétrica, nenhum calçamento, abastecimento de água através de chafariz público ou cacimbões. Água encanada só no centro da cidade, sem tratamento e amarelada. Tifo e verminoses matavam crianças e adultos, no Brasil, em assustadoras proporções da miserável Bangladesh.

Na capelinha, eu me sentava no pedestal do altar, durante a missa, ouvia o capuchinho Frei Eliézer, longas barbas aloiradas, olhos verdes, anunciar o projeto de construção do novo templo e um prédio para serviços sociais. Amigo de meus pais, Martinho e Dedé, Frei Eliézer frequentava minha casa, levava-me na garupa de sua moto, incentivando-me ao culto religioso, o que me despertou, mais tarde, vocação pro seminário.
Temperatura agradável à noite, devido à farta floresta na baixada do Poti e arredores, eu regressava para casa, na Rua Odilon Araújo, tilintando de frio. Meus pais nos educavam(seis filhos) com modestos ganhos da bodega, mais tarde Farmácia São José. Gozavam de enorme popularidade, pelas milagrosas receitas e generosidade com os pobres da paróquia.

Frei Eliézer juntava multidão de fieis em procissão, nas tardes de domingo, descíamos a Rua Sta. Luzia, a pé, até o rio Poti e regressávamos com sacos de areia nas costas para a construção do templo. O frade enchia o capuz da batina com o produto. Durante a semana, metia-se entre pedreiros, amassava barro, subia andaimes, pegava duro na colher, descia estafado, batina imunda, molhada de suor. À noite, exibia filmes com entrada paga, para custear a obra. Nas cenas de beijos na boca, ele tapava o zoom ótico. Eu e a garotada assoviávamos protestando.

Frei Eliézer recebeu ordens superiores para missão definitiva no Pará. A notícia debilitou-o, acamou-se durante dias. Visitei-o no Convento de São Benedito, chorei. Foi-se meu amigo, deixando a construção do templo no ponto de cobertura. Frei Heliodoro, superior do convento de São Benedito, continuou a tarefa. O templo foi inaugurado, início dos anos 60. A placa comemorativa de metal, chumbada na parede de entrada da igreja, dizia que a construção se devia aos esforços de Frei Heliodoro, engabelando Frei Eliézer, que nem convite recebera para o foguetório. Nem pude assistir à cerimônia, já internado, aos doze anos, no seminário. Li a placa, casualmente, em 1995, e me aporrinhei com a tapeação.

Em 1967, a paróquia de São Raimundo Nonato passou para a administração de outra ordem religiosa, os franciscanos, que continuam até hoje. Sabe o que fizeram? Outra engabelação à história da paróquia e do verdadeiro fundador: retiraram o lacre da inauguração do templo, crime de engabelação à história da Piça. Quer mais? Os atuais franciscanos celebraram, neste ano de 2012, "45 anos da fundação do templo de São Raimundo Nonato", outra engabelação, mais pesada que sacos de areia extraídos do Poti. Enganem São Raimundo Nonato e a História. Menos a mim.

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