sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Reflexões aos formandos em Direito/2012 (*)




Ivanovick Pinheiro


A dupla homenagem recebida fortalece o meu desejo de continuar participando do processo de ensino e aprendizagem. Estivemos juntos em momentos muito enriquecedores sob diversos aspectos. Sempre me empenhei em tornar estes momentos construtivos e mais uma vez quero contribuir para formar um sentimento constante de reflexão e crítica no pensamento de cada um de vocês que formam a turma Ivanovick Feitosa Dias Pinheiro.

E para isso, quero relembrar que recentemente – neste mesmo auditório – tive a oportunidade de debater acerca do problema central da sociedade contemporânea e qual o papel do profissional do Direito no adequado equacionamento do problema.

Estudiosos da metodologia e filosofia jurídica apontam que esse problema essencial é a consagração da Justiça.

Descrevi as limitações da ciência em solucionar o problema da justiça e de como a sua consagração deve sempre ser o norte na atuação daqueles que atuam não apenas na seara jurídica, mas de uma maneira geral na sociedade atual.

Mas não vou repetir as minhas palavras daquele dia. Resgatei o tema tratado naquele discurso para refletir com vocês sobre a existência de barreiras mais ou menos complexas para o atingimento da justiça.

E uma em especial tem se mostrado digna de atenção no contexto atual da sociedade brasileira: a corrupção e as constantes violações ao princípio da moralidade.

O descumprimento dos deveres básicos de probidade e de moralidade são barreiras para a consagração da própria justiça.

O profissional – notadamente aquele formado no contexto atual da sociedade brasileira – não pode se furtar do dever de contribuir para a moralização das instituições e o combate a corrupção. Com vocês não é diferente.

Uma pesquisa descompromissada na história recente da república brasileira mostra um grande número de casos envolvendo desvio de comportamento de agentes estatais que institucionalmente deveriam proteger os interesses da coletividade.

Esquemas de corrupção nas diversas instâncias de Poder, tais como as Casas Legislativas, os Tribunais de Contas, ou mesmo envolvendo advogados, Membros da Administração Pública direta e indireta, membros do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Alguns apontam que o motivo de tamanha agressão aos valores consagrados na Constituição Federal advém do próprio direito. Em outras palavras, a complexidade do sistema normativo acaba permitindo aos ímprobos a utilização do próprio regime jurídico para impedir uma eventual responsabilização.

O tempo também se apresenta como um aliado dos corruptos. O Min. Fux questiona da exposição de motivos do novo Código de Processo Civil: Como vencer o volume de ações e recursos gerado por uma litigiosidade desenfreada, máxime num país cujo ideário da nação abre as portas do judiciário para a cidadania ao dispor-se a analisar toda lesão ou ameaça a direito?

Entretanto, antes de abordar diretamente a questão da moralidade, revela-se digno de destaque as conseqüências de uma compreensão principiológica do direito e de que maneira essa compreensão pode influenciar na vida de vocês.

E o faço porque entendo que não é apenas por cumprir a lei que vocês contribuirão para construir um ambiente segundo o princípio da moralidade.

PRIMEIRA PARTE

O Direito não pode se constituir numa barreira para o descumprimento dos deveres de probidade e de satisfação dos interesses da coletividade.

Um sistema jurídico que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito.

De nada adianta construir um ordenamento coerente e harmônico interna corporis, com uma estética perfeita, se a aplicação desse modelo não é funcional. O distanciamento entre o discurso normativo e a aplicação da norma – notadamente por aqueles que atuam na seara jurídica – facilita a atuação do agente ímprobo.

O modelo dogmático de compreensão do direito já não satisfaz os desejos da coletividade.

Em algumas oportunidades estivemos juntos discutindo as influências do neoconstitucionalismo e do pós-positivismo na compreensão atual do direito.

Não seria oportuno relembrar todas essas influências. Mas certamente é oportuno destacar que a construção de um sistema jurídico sustentável e harmônico reclama a presença de princípios fundamentais.

Os dogmas não se legitimam apenas por estarem presentes nos Códigos. Não se desconhece, por exemplo, que o genocídio dos nazistas contra os judeus na Europa e sua brutal repressão aos opositores políticos – a catástrofe do século passado – foi justificada legalmente. Mas inúmeros outros exemplos poderiam ser citados: a escravidão e a segregação racial são emblemáticos para a compreensão do que se pretende deduzir aqui. Existiam leis permitindo o trabalho escravo.

Assim, inúmeras violações à dignidade da pessoa humana possuíam inclusive previsão normativa.

Até a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos eram assunto interno dos Estados soberanos. Não havia um marco internacional mínimo de proteção. Os Estados abusavam de sua atribuição legislativa, impondo uma posição de supremacia tal que impedia a consagração da liberdade e da igualdade.

Os direitos dos indivíduos eram internacionalmente relevantes somente quando um país desejava proteger seu cidadão em outro país ou quando queria enviar um diplomata a outro país.

No século XIX, desenvolveram-se muitas disposições para a proteção do indivíduo, iniciadas com o Código Lieber norte-americano, de 1863, que se referia à proteção de pessoas que não participaram da guerra, civis e feridos, ou prisioneiros de guerra.

Os esforços da Inglaterra para a abolição do tráfico de escravos e da escravidão, motivados principalmente por questões econômicas, merecem destaque.

Sob as égides da Liga das Nações, a Convenção sobre a Escravatura, um dos primeiros tratados de direitos humanos universais, foi aprovada em 1926, e a escravidão, sem exceção, proibida.

Após a Primeira Guerra Mundial, outra grande área de regulação foi a proteção internacional das minorias. Como o surgimento de novos Estados a partir do colapso dos Impérios multiétnicos Austro-Húngaro, Otomano e Russo, a proteção às minorias foi usada para permitir a coexistência dessa mistura colorida de povos.

Assim, em geral, até a Segunda Guerra Mundial não havia uma proteção sistemática dos direitos humanos.

A Carta das Nações Unidas, em seu preâmbulo, dispôs que os Estados-Membros comprometem-se com os direitos humanos. Com isso, o fundamento para o desenvolvimento dos direitos humanos foi dado, sem, contudo, uma concreta definição a ser cumprida ou direitos humanos designados.

Certamente, é a partir de uma dimensão principiológica que o sistema jurídico pode se converter num instrumento de consagração dos direitos humanos.

Diante desse contexto, uma primeira conclusão pode ser obtida:

A Lei elaborada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo, não se legitima apenas pela sua obediência ao processo legislativo descrito na Constituição. A história recente da humanidade demonstra que alguns direitos fundamentais devem figurar como legitimadores da atuação legislativa estatal.

Em palavras bem simples: Não é porque está na Lei que uma regra é legitima. São os princípios – consagrados na Constituição e nos tratados internacionais – que se impõe no ordenamento estatal e que obrigam todos aqueles que atuam como agentes públicos.

Portanto, a construção de um Estado Democrático não decorre tão somente da aplicação da Lei, vista está sob o aspecto restritivo. São os princípios que devem figurar como vetores para atuação de vocês no dia-a-dia de suas atribuições.

SEGUNDA PARTE

Diante dessa primeira conclusão, impõe-se a compreensão do que são esses princípios fundamentais e como eles podem na prática influenciar na atuação dos bacharéis em direito.

Na lição do professor Celso Antonio Bandeira de Mello, inúmeras vezes repetida pelos estudiosos do direito, o princípio deve figurar como mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhes a tônica que lhe dá sentido harmônico.

São muitos os princípios que figuram como alicerces do Estado Democrático de direito no Brasil. E são eles – nas palavras do professor Newton de Lucca – que informam e enformam o sistema jurídico. Informam comunicando o núcleo essencial de um sistema, dando-lhe significado. Enformam porque dão forma.

Um sistema político somente se legitima democraticamente se estiver assentado nos postulados da liberdade e da igualdade de todos e voltado a assegurar que o governo seja fruto de deliberação tomada pelo conjunto dos membros. Impõe-se através do respeito e da aplicação da Constituição, bem como na idéia de que o Poder Público se legitima pela consagração dos direitos fundamentais.

Todos os formandos hoje presentes não desconhecem que a atuação do Poder Público no exercício de suas funções é marcada pela presença de dois supraprincípios: a) a supremacia do interesse público sobre o privado e; b) a indisponibilidade do interesse público.

Os dois supraprincípios marcam o constante conflito que acontece no exercício da função administrativa: a consagração da supremacia da coletividade e o respeito aos direitos dos administrados.

A supremacia e a indisponibilidade do interesse público revelam-se através de inúmeros outros princípios: a legalidade, a isonomia, a moralidade, a publicidade, a responsabilidade e a eficiência. Além desses, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

Todos eles compõem a essência da ordem jurídica e nos dizeres de Celso Antonio compõem o espírito das leis, servindo de critério para compreensão e inteligência delas

Mas como indiquei no início, o momento atual do Estado brasileiro, potencia econômica mundial, que conseguiu como poucos Estados enfrentar as duas crises mundiais, reclama uma atenção especial ao PRINCÍPIO DA MORALIDADE.
O art. 37 caput da CRFB prevê explicitamente o princípio da moralidade como de observância obrigatória para a Administração Pública.

Além dele, a Constituição autoriza no art. 5º, LXXIII, que qualquer cidadão pode propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovado má-fé, isento de custas processuais e do ônus da sucumbência.

Inúmeros estudiosos defendem que não é producente separar em compartimentos o direito e a moral. Melhor é integrá-los. Na verdade, o administrador deve atentar que em tema de direitos e garantias individuais a interpretação deve ser a mais ampla. Conferindo maior efetividade.

A moralidade administrativa possui conteúdo específico, que não coincide, necessariamente, com a moral comum da sociedade. Insere-se no conteúdo da moral exigida de vocês formandos: a ética, a probidade, a lealdade, o decoro, a boa-fé e a honestidade.

Egon Bockmann ensina que o Estado Democrático de Direito cria um laço incindível entre democracia e moralidade. A sociedade – ao participar do processo democrático – ‘insere’ conteúdo moral nas decisões administrativas.

A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem sido pródiga na aplicação do princípio da moralidade em suas decisões.

O princípio da moralidade encontra previsão não apenas na Constituição Federal. A Lei que rege o processo administrativo no âmbito federal afirma que a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da moralidade. A mesma lei exige uma atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.

Por seu turno, a norma que regulamenta o combate à Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92) expressa que os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.


A atuação de cada um de vocês, nas diversas atividades que poderão desempenhar deve ser pautada pela incidência de parâmetros morais.

A moralidade atua para ampliar o controle das atividades, por isso Marçal Justen Filho defende que a moralidade é princípio ‘em branco’, pois o seu conteúdo não se exaure em comandos concretos. Mas isso não quer significar que ele seja inaplicável.

Assim, não apenas a Administração como também os particulares devem obediência a moralidade nas suas relações. Isso é reforçado quando o particular exerce a função pública através de delegações, concessões, autorizações e permissões.

E quais são as conseqüências do descumprimento do princípio da moralidade?

Quaisquer atos produzidos em dissonância com a ordem jurídica e de impossível convalidação, devem ser declarados inválidos. E aqueles que agem em dissonância com o princípio da moralidade devem ser responsabilizados.

Não esquecer, entretanto, que a ordem jurídica é uma só, e a questão da invalidação dos atos devem ser vista com os olhos focados também no princípio da segurança jurídica e no princípio da confiança.

Nesse quadro, uma segunda conclusão:

A moralidade administrativa possui conteúdo específico, que não coincide, necessariamente, com a moral comum da sociedade. A moral administrativa exige ética, probidade, lealdade, decoro, boa-fé e honestidade.

A legalidade estrita não implica em obediência à moralidade. Todos os que estão aqui presentes exigem dos formandos uma atuação segundo o princípio da moralidade.

Não interessa aos pais, familiares, amigos e professores de vocês que alcancem o sucesso profissional, se não forem capazes de compreender essa lição fundamental: Não existe regime democrático, igualdade e consagração da dignidade sem a obediência dos agentes estatais ao princípio da moralidade.

TERCEIRA PARTE

São deveres morais básicos a imparcialidade e a boa-fé. O princípio da boa-fé baseia-se na confiança no comportamento alheio, que possui dois componentes: ética e segurança jurídica.

Fala-se em boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva. A subjetiva é a boa-fé crença. É o desconhecimento da ilicitude. Investiga-se a vontade e intenção do indivíduo.

A boa-fé objetiva – aquela que interessa ao agente público, ao advogado, ao delegado, ao procurador, ao promotor, ao magistrado e a todos vocês que estão colando grau nessa noite – manifesta-se externamente por meio do comportamento do agente.

Cobraremos de vocês, concludentes hoje aqui presentes, quando no desempenho de suas funções a obediência à boa-fé objetiva. Seus atos serão avaliados segundo o parâmetro da boa-fé.

São conseqüências da aplicação da boa-fé: a interdição do abuso de direito, impedindo o excesso no exercício de prerrogativas legítimas; a negativa ao exercício inútil de direitos, de modo a não obter nenhum resultado proveitoso; o dever de sinceridade (não mentir e não omitir); o dever de colaboração e o dever de informação (não omitir dados).

Além da boa-fé, exigiremos a obediência ao princípio da imparcialidade. Ele também é uma vertente da moralidade.

O dever profissional de vocês é aproximar o modelo normativo da aplicação concreta do direito.

A interpretação jurídica não pode servir de instrumento para distanciar o sistema legal do sistema social.

A teoria dos sistemas de Luhman é capaz de demonstrar a validade da afirmação de que apesar de normativamente fechado o sistema legal é cognitivamente aberto.

Conforme Marcelo Pereira de Mello “a idéia de que o sistema legal constitui um sistema fechado não deve obscurecer o fato de que todo sistema mantém conexões com seu ambiente. (MELLO, Marcelo Pereira de. A perspectiva sistêmica na sociologia do direito: Luhmann e Teubner. Tempo Social – Revista de Sociologia. USP. São Paulo, v. 18, n.1, p. 351-373, junho.2006, p. 353.)

Luhmann já destacou o particular relacionamento entre o sistema legal e o ambiente societário. O sistema jurídico é “cognitivamente aberto” na medida em que é estimulado pelas informações do ambiente e em contínua adaptação às exigências do ambiente.

Ora, se a conclusão de Luhmann estiver correta pode-se inferir que todos aqueles que compõem esse “ambiente societário” são capazes de influenciar no sistema legal.

Em poucas palavras: o direito se alimenta do ambiente no qual está inserido. Como vocês estão inseridos nesse ambiente, devem influenciar positivamente a construção de um modelo que não se descuida da moralidade, impedindo que a corrupção seja um obstáculo à construção da justiça.

Marcelo Neves destaca no seu “A constitucionalização simbólica” a discrepância entre a função hipertroficante simbólica e a insuficiente concretização jurídica dos diplomas constitucionais. Neves destaca que algumas vezes a Constituição não passa de uma confirmação dos valores sociais, de uma legislação-álibi, ou mesmo de um instrumento para adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios.

O texto constitucional não é suficientemente concretizado normativo-juridicamente de forma generalizada. Algumas vezes existe uma preponderância do sistema político sobre o jurídico.

Certamente será exigido de todos vocês concludentes do curso de direito: contribuam para o equilíbrio dos sistemas político e jurídico.

CONCLUSÃO

A construção do pensamento jurídico de todos vocês deve ser baseado em valores e princípios democráticos, igualitários, solidaristas e humanistas.

O sistema jurídico se molda a partir da legislação e da atuação dos atores jurídicos.

Não existe justiça num Estado soberano marcado pela corrupção.

A moralidade é princípio que exige aplicação. Sua previsão normativa não transforma o ímprobo em honesto. O dever profissional de vocês é aproximar o modelo normativo da aplicação concreta do direito.

Obrigado pela Homenagem.

O tempo em que estivemos juntos em sala de aula foi recompensador. Trabalhei para que essa compreensão de respeito a dignidade estivesse presente em todos os momentos. A fraternidade foi recorrente em nossos encontros e hoje não foi diferente. Boa Noite.

(*) Discurso proferido pelo professor e defensor público Ivanovick Pinheiro, na qualidade de paraninfo dos formandos da turma que leva o seu nome - Curso de Direito - 2012 - NOVAFAPI.

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