quarta-feira, 14 de novembro de 2012

AS VÍSCERAS DA VIDA



14 de novembro   Diário Incontínuo

AS VÍSCERAS DA VIDA

Elmar Carvalho


Quando sofri o acidente, menos de dois meses atrás, em consequência do qual a seguradora e a oficina autorizada consideraram que o meu carro sofrera perda total, pensei em escrever sobre um acidente que não sofri, quase por um milagre. O fato aconteceu em 1983 ou 1984. Nessa época, eu ainda não tinha carro. Possuía uma motocicleta, que dirigia com cuidado pelas ruas de Teresina, que ainda não eram infestadas de veículos, como no violento trânsito de hoje.

Eu aguardava o ônibus procedente de Parnaíba, da extinta empresa Marimbá, que traria a Fátima, nas proximidades da Ladeira do Uruguai. Para passar o tempo, fui passear de moto pelas imediações. Quando eu fazia o percurso, na avenida João XXIII, no sentido periferia – centro, na faixa da esquerda, perto do canteiro central, vi, ao longe, os faróis acesos de um carro. Devia ser um pouco mais de onze horas da noite. Continuei meu trajeto em baixa velocidade, quando senti o impulso de olhar novamente para trás.

Foi, então, que vi um automóvel se aproximando perigosamente da traseira de minha motocicleta, em altíssima velocidade. Não vacilei uma fração de segundo sequer, e girei o guidão com força para a direita, em direção à faixa central. Como um bólido, quase raspando a moto e tirando fina no meio-fio do passeio, passou um automóvel grande, algo semelhante a um possante Maverick. A velocidade que ele desenvolvia era tão alta chega levantou poeira do canteiro central, que não era pavimentado.

Só então tive tempo de ter medo, quando já não mais existia o perigo. A adrenalina me energizou o corpo, provocando-me arrepios. Senti que um quase milagre acontecera, livrando-me de uma morte estúpida e gratuita, ainda em minha mocidade, quando eu ainda fazia o curso de Direito e sequer ainda era casado. Tenho certeza de que se eu tivesse titubeado, por fração de segundo que fosse, em tomar a decisão de dar uma guinada na moto para a direita, teria sido colhido em cheio por aquele carro maluco, voando fatal e espetacularmente para a morte. Se eu tivesse demorado um átimo para olhar para trás, já não iria olhar para mais nada, pois certamente iria morrer.

Não sei o que me levou a ter a intuição de olhar para trás, no momento exato em que ainda poderia fazer uma manobra motociclística defensiva. Teria sido mera coincidência, mero reflexo sensorial? Não sei. Sei que considerei tudo um milagre. Ainda hoje penso sobre o significado de eu ter morrido aos 27 ou 28 anos de idade. Amadureci muito espiritualmente dessa faixa etária para cá.

Muitas experiências e ensinamentos amealhei de lá a esta parte. Penso que, como ser espiritual contido num invólucro corporal ou físico, evoluí nesses anos todos. Mesmo em termos de curriculum vitae, muitas conquistas obtive de lá para cá, como publicação de livros, criações literárias, ingressos em instituições culturais, mudanças profissionais, casamento, filhos etc. Teria morrido em plena mocidade, como os poetas românticos. Sequer teria tido a oportunidade de cunhar uns versos ou uma frase de efeito, como Álvares de Azevedo, que ao morrer teria murmurado: “Que fatalidade, meu pai!” De qualquer modo, verso e anverso de uma mesma e única moeda, a vida e a morte são duas fatalidades a que não podemos fugir.

Tempos depois, num romance policial, li um trecho cuja metáfora nunca esqueci. Uma personagem caminhava por uma rua, quando um objeto caiu do alto de um edifício no exato lugar em que ela mal acabara de passar. A personagem ficou impressionada, e disse ter tido a sensação de que alguém destampara a caixa da vida, para lhe mostrar as suas frágeis e delicadas engrenagens em pleno movimento sincronizado, mas de mútua dependência.

No meu caso, tive a nítida certeza da fragilidade da vida, e também observei como funcionavam as engrenagens vulneráveis de suas vísceras, que me foram entremostradas em um átimo de segundo. Senti quão frágeis são os fios da vida, tecidos pelas Parcas, e que Átropos cortava. Tão frágeis, que sequer havia necessidade da tesoura que ela manejava sem complacência e sem remorso; apenas no cumprimento de um dever que os fados ou os deuses lhe impuseram, e que ela talvez não houvera desejado.

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