14 de novembro Diário Incontínuo
AS VÍSCERAS DA VIDA
Elmar Carvalho
Quando sofri o acidente, menos de dois meses atrás, em
consequência do qual a seguradora e a oficina autorizada
consideraram que o meu carro sofrera perda total, pensei em escrever
sobre um acidente que não sofri, quase por um milagre. O fato
aconteceu em 1983 ou 1984. Nessa época, eu ainda não tinha carro.
Possuía uma motocicleta, que dirigia com cuidado pelas ruas de
Teresina, que ainda não eram infestadas de veículos, como no
violento trânsito de hoje.
Eu aguardava o ônibus procedente de Parnaíba, da
extinta empresa Marimbá, que traria a Fátima, nas proximidades da
Ladeira do Uruguai. Para passar o tempo, fui passear de moto pelas
imediações. Quando eu fazia o percurso, na avenida João XXIII, no
sentido periferia – centro, na faixa da esquerda, perto do canteiro
central, vi, ao longe, os faróis acesos de um carro. Devia ser um
pouco mais de onze horas da noite. Continuei meu trajeto em baixa
velocidade, quando senti o impulso de olhar novamente para trás.
Foi, então, que vi um automóvel se aproximando
perigosamente da traseira de minha motocicleta, em altíssima
velocidade. Não vacilei uma fração de segundo sequer, e girei o
guidão com força para a direita, em direção à faixa central.
Como um bólido, quase raspando a moto e tirando fina no meio-fio do
passeio, passou um automóvel grande, algo semelhante a um possante
Maverick. A velocidade que ele desenvolvia era tão alta chega
levantou poeira do canteiro central, que não era pavimentado.
Só então tive tempo de ter medo, quando já não mais
existia o perigo. A adrenalina me energizou o corpo, provocando-me
arrepios. Senti que um quase milagre acontecera, livrando-me de uma
morte estúpida e gratuita, ainda em minha mocidade, quando eu ainda
fazia o curso de Direito e sequer ainda era casado. Tenho certeza de
que se eu tivesse titubeado, por fração de segundo que fosse, em
tomar a decisão de dar uma guinada na moto para a direita, teria
sido colhido em cheio por aquele carro maluco, voando fatal e
espetacularmente para a morte. Se eu tivesse demorado um átimo para
olhar para trás, já não iria olhar para mais nada, pois certamente
iria morrer.
Não sei o que me levou a ter a intuição de olhar para
trás, no momento exato em que ainda poderia fazer uma manobra
motociclística defensiva. Teria sido mera coincidência, mero
reflexo sensorial? Não sei. Sei que considerei tudo um milagre.
Ainda hoje penso sobre o significado de eu ter morrido aos 27 ou 28
anos de idade. Amadureci muito espiritualmente dessa faixa etária
para cá.
Muitas experiências e ensinamentos amealhei de lá a
esta parte. Penso que, como ser espiritual contido num invólucro
corporal ou físico, evoluí nesses anos todos. Mesmo em termos de
curriculum vitae, muitas conquistas obtive de lá para cá, como
publicação de livros, criações literárias, ingressos em
instituições culturais, mudanças profissionais, casamento, filhos
etc. Teria morrido em plena mocidade, como os poetas românticos.
Sequer teria tido a oportunidade de cunhar uns versos ou uma frase de
efeito, como Álvares de Azevedo, que ao morrer teria murmurado: “Que
fatalidade, meu pai!” De qualquer modo, verso e anverso de uma
mesma e única moeda, a vida e a morte são duas fatalidades a que
não podemos fugir.
Tempos depois, num romance policial, li um trecho cuja
metáfora nunca esqueci. Uma personagem caminhava por uma rua,
quando um objeto caiu do alto de um edifício no exato lugar em que
ela mal acabara de passar. A personagem ficou impressionada, e disse
ter tido a sensação de que alguém destampara a caixa da vida, para
lhe mostrar as suas frágeis e delicadas engrenagens em pleno
movimento sincronizado, mas de mútua dependência.
No meu caso, tive a nítida certeza da fragilidade da
vida, e também observei como funcionavam as engrenagens vulneráveis
de suas vísceras, que me foram entremostradas em um átimo de
segundo. Senti quão frágeis são os fios da vida, tecidos pelas
Parcas, e que Átropos cortava. Tão frágeis, que sequer havia
necessidade da tesoura que ela manejava sem complacência e sem
remorso; apenas no cumprimento de um dever que os fados ou os deuses
lhe impuseram, e que ela talvez não houvera desejado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário