segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Golpistas de 64


Os autores sendo entrevistados por Miriam Leitão


Fonseca Neto


Um ato muito raro: um livro de memória e história do Brasil feito por militares a contrapelo das hierarquias tão decantadas até hoje como pedra angular das Forças Armadas. Ainda mais singular é que o livro é uma denúncia fundamentada a respeito da ditadura militar e udenista há pouco tempo superada no Brasil.
1964: DNA da conspiração” é um livro-documento, desassombrado. A história de dois brasileiros saídos do Piauí e do Ceará para se encontrarem na arma de Artilharia do Exército brasileiro, e nela, juntos, até 64, viverem um episódio dos mais sombrios da história social e política do Brasil: o golpe de 1964 e a implantação de uma ditadura que, sob quase todos os aspectos, infelicitaria o país por anos e décadas –até hoje, diga-se.
O presente livro está organizado em dez capítulos e adereçado de introduções e anexos que o completam e o exame mais refletido deles fica mesmo para seu leitorado, que já não é pequeno e muito maior será. Mas acredito que esse trabalho, pleno de indicações límpidas sobre o horror ditatorial, ainda que não seja lido por milhões, cumpre uma tarefa essencial: fixar, pela visão de dois protagonistas conscientes, o testemunho do que viram e lhos feriu no curso da vida militar do tempo.
O livro é escrito em raso de objetividade e é de uma clareza solar, no que ordena as ideias dos autores, depoentes, e nas recortações documentais e de outros autores que recepcionam para encorpar e tornar ainda mais sólidos os próprios registros.
Nesse sentido, convido a todos a irem direto aos capítulos em que eles dizem das suas vidas desde a infância –a de Jônatas desde Floriano, o Seminário etc. Depois sugiro que não deixem de passar pela estação capitular em que vem o rol (ou “tabela”) dos conspiradores e ditadores – com indicações precisas sobre o protagonismo de cada um. Aviso que ficarão os leitores de cabelo arrepiado com tanta trajetória horrorosa de gente sobre quem ainda hoje se ouve falar como herói da democracia, da moral, da ética, e que não passa de reles tiranete de patriotas. Um desses, Milton da Silva (general), de quem muitas vezes ouvi falar em suas visitas ao Piauí, fanfarronado pela imprensa e pelos áulicos locais, está à p. 233: “indicativo – executor oficial da política de extermínio de prisioneiros políticos tanto no Governo Médici como no início do Governo Geisel” (citam revista semanal 12/11/2003, exatos 9 anos atrás).

Quero realçar, por fim, de maneira muito direta, a coragem desses dois homens, o coronel Jônathas de Barros Nunes e o tenente-coronel Gastão Rúbio de Sá Weine. Coragem de fixarem seu testemunho em registro memorial o qual, repita-se, bastante proveito ensejará aos historiógrafos. Seu exemplo é assaz necessário porque a temática relativa ao papel militar na politica brasileira é campo de disputas viscerais e de muita manipulação. Aliás, talvez não haja no Brasil temática mais repleta de empulhação ideológica quanto aquilo que se tem como o cânone da historiografia brasileira no padrão militaresco. A consciência nacional e o querer bem à democracia e aos valores humanos resultam muito mais fortalecidos com a contribuição plasmada por eles.
Os autores são dois professores – coronéis e cientistas doutores. Nunes, titular da Ufpi. Doutor Jônathas, o conheci, e o Piauí de minha geração, quando apareceu como candidato a deputado federal. Sussurravam e até mais que isso, diziam que de tão inteligente ficara “doido”. Foi eleito e o único daqui que votou pelas “Diretas-Já” em 1984. E então o chamaram de “louco e meio”. Foi como o piauizim o viu naquele momento.
A rigor, o Piauí sério, vontadoso de largar em passos largos de futuro luminar, esse Piauí, o admira. Travei contato com ele anos depois no Consun, da Ufpi, e também Maria Helena servindo, já, nessa valorosa instituição.
Oportuno livro. Que algum jovem se interesse por esses relatos. Fico a pensar: tivessem ideia do que foi a ditadura direitista maturada desde 54 e imposta em 64, muitos veriam a cena de hoje com outros olhos.

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