Fonseca Neto
A
invasão tida por triunfal deste lado do Atlântico por negociantes e
feitores portugueses por volta de 1500 é o ato inaugural do mais
horrendo massacre que um povo impôs a outro. A história da
experiência humana narrável, e narrada, não conhece nada de
tamanha extensão.
O
que agora se chama de Brasil é um dos lugares em que esse desastre
se afigurou mais avassalador, com suas feridas abertas sangrando
vidas até hoje. E assim é porque não se alterou o sentido da
devastação, da “limpeza” do terreno, em proveito do
empresariamento mercantil e da realização de negócios capazes da
extração lucrativa máxima. Remanesce esta região como espécie de
neocolônia, cujas linhagens de dependência, reinventadas, parecem
insuperáveis, até porque tecem um enredo semelhante a uma
“colonização voluntária” (se existe). Com efeito, o Brasil é
um campo aberto às mais diversas perversões relacionadas às
práticas de saque, este, a matriz e o móvel de muitas outras formas
de violência.
Tome-se
como referência alguns fatos comuns no cenário brasileiro, os
quais, por alguma razão, foram motivo de lembrança e
deslembrança nos últimos dias. Noticiou-se: “Índios invadem
Congresso”; não se noticiou: índios protestam em luta no
Congresso contra proposta de roubarem-lhes, de vez, seu direito à
terra e à vida.
Noticiou-se:
“Meninos de rua são mortos em Goiânia”; não se noticiou:
crianças abandonadas à rua são eliminadas e a população e
governantes em geral acham tudo muito natural; eram os mortos
afroindiodescendentes. Noticiou-se, com ênfase indignada:
“Universitário é morto por menor em latrocínio e o Brasil chora”
(um eurodescendente, com certeza); noticinha de canto de
página: três adolescentes são executados em SP na frente da PM e
ela nem se move; de tudo, o subtexto – “ah! era gente metida com
droga, assim pardos, melhor morrerem ou irem pras cadeias logo aos
dez anos de idade”.
Noticiou-se
(repórteres tomados de dor, cenhos lacrimosos): “O Brasil em
profundo luto precisa chorar mais ainda pelo ataque em Boston, nos
EUAN...”.
Indígenas
protestando no Brasil é sinal da mais legítima resistência contra
a tirania de caráter colonizador. Aliás, sua rebelião é o timbre
límpido de sua humanidade. E porque resistiram à escravidão, foram
eliminados, fisica e etnicamente. Mas é necessário lembrar,
sobretudo: porque resistiram é que vivem.
Já
o que faz a população de São Paulo (90%) querer a retirada de
circulação de crianças “delinquentes” a partir dos dez anos de
idade é sinal de doença social-mental gravíssima. Deformação
cujas explicações há que se buscar nas taras e ódio instilados na
sobredita colonização, feita a ferro e fogo: corpos sãos
dilacerados por cães e europestes; corpos das áfricas e áfricos
acorrentados e chicoteados. Ferrados e feridos, uns e outros, se não
“bem comportados” no papel de lavradores das terras e minas dos
senhores da arte do Mercado. Afinal, a riqueza extraída e acumulada
na era “colonial-mercantilista” – a força desse saque
monumental –, foi feita à base da escravidão, esta aviltação
extrema da condição humana. E o próprio corpo afro a espoliar, a
mercadoria principal garantidora dos mais vultosos lucros.
Não
há violência nenhuma de hoje que não tenha explicação quando se
lança luzes sobre as raízes do Brasil. A corrupção, tortura, fome
e a elisão de culturas ancestrais, por exemplo. Cabe perguntar: a
cultura da paz teria alguma chance num contexto-país cuja
formação/deformação tem na prática da violência, em todos os
sentidos e formas, o meio principal de sua realização?
A
violência dos que se fazem poderosos nos processos sociais em curso
compromete a sociedade inteiramente. E os que continuam a ter seu
destino violentado são os de sempre. O que sobreviveu da humanidade
que habitou este chão antes da agressão mercantil-colonial de 1500,
por exemplo, continua a ser alvo de eliminação, exemplificada na
atual ofensiva dos “ruralistas” no Congresso.
“Ruralistas”?
Projetam tomar as últimas terras indígenas; cruéis feitores,
chegados à guerra, inimigos eternos da paz em qualquer lugar onde
haja terra e vidas roubadas.
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