sábado, 6 de julho de 2013

Infância afogada


Infância afogada

Edmar Oliveira

Deu no Diário Oficial do Piauí: o IBAMA concedeu licença para a construção da barragem de Castelhano no Rio Parnaíba. Já tem construtora licitada e prazo de três anos e poucos meses para a obra. Recebi a notícia impactado. Significa que grande parte de minha Palmeirais, da vizinha Amarante e até de Parnarama, no Maranhão, serão inundadas pelo lago da barragem.

Castelhano é um povoado onde fica a casa de meu tio-avô Valmir Soares, que nasceu naquele lugar e ali passou toda sua existência. O lugar mais longe que já foi foi a Teresina e só ia no centro de Palmeirais quando ainda tinha visão. Já cego, beirando aos cem anos, deseja ser enterrado naquele pedaço de chão onde habitou. Pensei cá comigo: ele tem muito pouco tempo para morrer e realizar o desejo. Se insistir em ficar vivo será retirado com sua família e mais 555 outras, segundo o Diário Oficial, para a construção da barragem que deve ser erguida na sua porta onde param os viajantes da estrada.

Destino também trágico tem o povoado de Riacho dos Negros, que será completamente inundado e desaparecerá no lago. O nome do riacho foi firmado na existência de um quilombo que habita aquelas terras por séculos sem fim e será tangido que nem boi para lá se sabe onde!

A notícia não informa que parte de Amarante será atingida, mas temo pelo afogamento de nosso poeta maior, Da Costa e Silva, que premonitoriamente cantou:
(...) As águas crescem de repente / Avolumadas pela enchente.

Caudaloso, / Rumoroso, / Sem repouso, / Rolando as águas / Se arrasta o rio, rolando o peito / Nas areias e seixos do seu leito, / Talvez num desabafo insatisfeito / De incontidas paixões e recônditas mágoas...

Rugindo o rio repentinamente / Avulta, inchando, na expansão da enchente.

E ei-lo a correr, as margens distendendo / De quando em quando, / No seu contínuo e célere percurso, / Num conflito tremendo, / O solo a solapar, como querendo / Desviar o próprio curso, / Transbordando, / Inundando, / Avassalando...

(...) E o acento emocional, grandíloquo, eloquente / Da alma do rio vem ecoar na alma da gente, / Tumultuariamente, impetuosamente, / No horríssono rumor das águas pela enchente...”[1]

Lendo o poeta sinto o trágico das águas represadas em que serão afogadas minhas lembranças e memórias de uma terna infância. É incômodo pensar que em pouco tempo, se até lá me permitir viver os Deuses, as minhas lembranças e afetos estarão no fundo de um lago em que se transformará meu rio, minha vida, meus guardados. E a minha cidade só existirá na memória...

A minha terra é um céu, se há um céu sobre a terra: / É um céu sobre outro céu tão límpido e tão brando, / Que eterno sonho azul parece estar sonhando / Sobre o vale natal, que o seio da luz descerra...”[2]

[1]Fragmentos do poema “Enchente” do livro “Zodíaco” (Oficina Tipográfica Apolo, Rio de Janeiro, 1917)
[2] Da Costa e Silva, poema Amarante, no mesmo Zodíaco, seção Minha Terra. 

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