segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Afrânio Coutinho e as mudanças na crítica literária, na história literária e no ensino de literatura no Brasil


Cunha e Silva Filho

 Ao concluir a leitura de Correntes cruzadas (Rio de Janeiro:  Editora A Noite, 1953,  383 p.), fico a  pensar  em como a  ação dinâmica de um intelectual determinado tem  como  consequência  mudanças efetivas, se não imediatas,  mudanças  a  médio e longo  prazo.
Obra  polêmica,  às vezes  com  traços   de paixão  exagerada  pelo desfecho  de suas  aspirações e planos, não deixa   de  constituir um panorama, como  era do  feitio do crítico Afrânio Coutinho(1911-2000), do que o maior estudioso do Barroco entre nós   pôde escrever sobre o que  presenciara na vida  literária  brasileira,  sobretudo no domínio da crítica literária,  da historiografia  literária e no  ensino de literatura brasileira e de Literatura em geral.
Personalidade  polêmica, por vezes contraditória, mas sempre  corajosa,  meteu o  dedo na ferida  do que  via no Brasil  como  grandes mazelas e atrasos culturais que vigoravam  nos anos  1948 e 1953, que são os  intervalos de tempo  compreendidos  na  reunião  de  alguns  textos  recolhidos  de sua  coluna  dominical  "Correntes cruzadas" no Diário  de Notícias do Rio de Janeiro. Esclarece Coutinho, na sua  longa  introdução ao volume,  que   neste havia  incluído  outros textos  saídos  em diferentes  épocas e publicações.   Percebe-se nitidamente,  no textos  compilados e selecionados sem rigor    cronológico, que  o  estudioso  conhecido como  o introdutor do new criticism  no  país, ao ter saído  da Bahia,  estava decidido a abrir  caminhos   na vida  literária   carioca, sobretudo após a sua  permanência  nos Estados Unidos de 1942 a1947, período em que lá trabalhou como  redator-secretário do Reader’s Digest (Seleções) e, como  estava nos seus planos   de intelectual, aproveitou   para realizar  cursos  na Universidade de Colúmbia  e em outras instituições  universitárias americanas.Essa temporada nos Estados Unidos  foi-lhe  utilíssima  à formação   literária nas áreas da crítica, na teoria literária, na historiografia literária, na literatura comparada e bem assim  na atualização   das áreas do ensino de letras,  história e filosofia, tendo sido  naquele período  aluno de Jacques Maritain (do qual  traduziu duas obras) e de eminentes  professores universitários,  grandes scholars  tais como  René Wellek,  Austin Warrren,  Roman Iakobson entre outros   grandes estudiosos  de renome universal   da literatura   e da linguística.   
Foi com  essa  formação  sólida  e  renovada que, de volta ao  país,   deu continuidade aos seus  planos  e ambições  intelectuais. O então jovem   intelectual  baiano  não  sossegou  nas suas pretensões  de  galgar  posições  de  relevo  na história  da crítica literária  brasileira  e na  transformação radical   de novos hábitos  de estudos  da sua área, tendo como  meta tanto o ensino  médio quanto sobretudo  o  universitário, onde  firmou  seu  nome   e conseguiu  respeitabilidade  de seus  pares. Mas, tudo   conquistado a duras  penas,  arrostando   os obstáculos do meio  literário e cultural  do Rio de Janeiro,  já com as suas lideranças e grupos dominantes,  ou, conforme  Coutinho  gostava de  assinalar,  com as  suas ”igrejinhas, “, suas “futricas”,  seus parti-pris,  suas lideranças  no jornal,  no ensino, na produção editorial, na vida literária em geral.
Afeito ao  desenvolvimento   alcançado nos meios  culturais  americanos,  Coutinho estava  pronto  para  aqui desbravar  horizontes novos  nos campos da crítica literária através da divulgação e doutrinação  do new cirtricism, ou como ele, preferia  rotular,  “nova crítica”, que,  de resto,  não era   só estritamente  a corrente  de procedência anglo-americana, mas   na verdade  seria um movimento  de ruptura  de métodos  e approaches que,  em diversas partes do mundo   desenvolvido,   estava  se consolidando  em novos   princípios teóricos  lastreados  pelas  descobertas  dos estudos   da literatura  com fundamentos científicos   que  fariam a passagem   da corrente crítica   impressionista para  a crítica formalista,  ou  estilística, ou  poética,  valorizado  a obra  nos seus  componentes     estéticos, intrínsecos,  i.e., dando  valor  capital à autonomia   do aspecto literário, da análise  e interpretação da obra literária,  alterações  estas que vieram  colocar   o historicismo,  o determinismo,   de orientação  taineana, ou anatoleana, ou  saintbeuveana,  em segundo plano.  O que se desejava, com  a nova  visão  teórica da Literatura   era   distinguir na obra   as características   formais e   específicas  da  linguagem,  sua literariedade,    seus artifícios   e estratégias  de composição, sua retórica,     que a tornassem um produto  da técnica, um artefato,   e do talento   individual, de preparo  e estudos sérios, sua ausência de amadorismo e de aventureirismo  intelectual  no lidar com  as questões  de Literatura,  sem laivos  subjetivistas de fundo romântico,   sem mais a  ideia de “gênio criador”  tão  forte no século  19. 
Em segundo plano,   ficariam   os  elementos extrínsecos,   como a biografia do autor,  a sua  situação social, a sua época,  o seu  espaço de atuação. Quer dizer,  os estudos literários  deslocaram   o eixo de interesse  do autor  para a obra em si.  Esta é que  importava  para   o entendimento  do que   fosse  a obra  literária,  nos seus  diversos gêneros.  São esta  questões  de que  se ocupa Coutinho   em grande parte  de seus artigos  em Correntes cruzadas.
Evidente  que  um  crítico  ainda  desconhecido nos meios  intelectuais do Rio de Janeiro e surgindo com   um instrumental   de renovação   do establishment  literário  que encontrava  diante dele,  não  viu  facilidade  de nele  penetrar com as suas novidades  trazidas  dos centros americanos  de  Letras.
Encontraria  resistências,  desconfianças  nos hábitos  já enraizados  de  cultura  predominantemente francesa, que tinha no seu bojo  a prática dominante do impressionismo crítico com seus reflexos no ensino médio e superior, no jornal através da crítica de rodapé com  seus  nomes  estabelecidos, alguns dos quais desfrutando  de  real  reconhecimento como foi  o exemplo do  notável crítico   Álvaro Lins  acompanhando, nos rodapés do Correio da Manhã,   a segunda fase da produção  do Modernismo, tanto na  ficção, quanto na poesia e no teatro. Ao lado de Álvaro Lins,   se achavam outros   ilustres   críticos como Agripino Grieco,   Tristão de Athayde, Sérgio Buarque de Holanda, Temístccles  Linhares,  Olívio de Montenegro,  Wilson Martins e,  mais tarde,   Antonio Candido, entre outros. Cada um desses seguia  sua própria   orientação crítica,  ora de   cunho  impressionista  e humanístico,  ora  expressionista (Trsitão de Athayde),  ora  de abordagem   sociológica, mas  já  se  servindo  de princípios   renovadores  teóricos  visando a componentes   estéticos  no julgamento   do fenômeno literário.  Seria,  um pouco mais adiante,  o caso de Antonio Candido e outros. Ou seja,  havia  críticos e críticos.
Entretanto,  Coutinho vinha para  realizar   rupturas  radicais,  tanto  no domínio da crítica,    da teoria  literária,  da historiografia  literária quanto da pedagogia  da literatura,  que  deveriam    oxigenar-se   dos seus  sólidos  conhecimentos  assimilados nos Estados Unidos e implantados  no ensino médio (Colégio Pedro II) e na universidade. Primeiro, em 1950,  no Instituto  La Fayette da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na qual viu triunfante o seu  projeto de criação  da disciplina  Teoria Literária, depois,  a  cátedra de literatura brasileira  da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Correntes cruzadas, sua coluna mantida no Diário de Notícias,  segundo  já assinalei,   se torna, assim,  o seu  espaço de combate   sem trégua  contra   a crítica impressionista, não poupando  nem seus maiores e mais    acatados  cultores,  tendo à frente  o crítico Álvaro Lins com o qual   encetou  uma polêmica  declarada  com seus artigos  naquela  coluna.
Afrânio Coutinho, no volume que estou comentando,  tem páginas  em que  se pode ver  bem a quem se destinavam  os seus ataques,  que,  por terem  o sinete  da polêmica  desabrida,  extrapolam  em suas invectivas muitas vezes  de forma injusta 
O livro, porém,   dedica  a maior parte de seus   artigos  a difundir  suas ideias  teóricas sobre crítica, teoria literária,   valorização  dos estudos de  literatura comparada, parte do volume que  na  verdade  engrandece   o todo  dos  seus textos e onde  se nota   a sua grande  contribuição  para  a divulgação  de todas as questões fundamentais   atinentes  aos estudos literários.
A melhor  parte dessa obra de Coutinho é essa contribuição  que dá aos estudos literários   no país, estudos  em bases renovadas que, até hoje,  dão frutos mesmo  se considerando  todos os  avanços  por que  passaram  os  estudos  de Literatura entre nós, com   novas correntes do pensamento crítico, colocando as nossas universidade   em nível   de igualdade, por assim dizer,   quanto  a   orientações   teóricas  e sua produção  na crítica,  no  ensaio,  nas novas disciplinas  que  deram seus  primeiros   sinais   de vitalidade   na época  de  Coutinho, como a ciência da literatura,  a teoria  literária,  a literatura comparada, a Poética,  os  estudos   de literaturas modernas e  antigas. O fermento dado  por Coutinho   teve frutos, , amadureceu  e  cresceu .
Em Correntes cruzadas,   há passagens  notáveis em que o critico sai  do estritamente  literário e  envereda  pela crítica  de natureza social, e política,   quando   descreve,  com  grande sensibilidade,   a vida capitalista  americana, com seus  erros e acerto. .A obra traz artigos, comentários,  fragmentos  de citações de grandes  autores,  sobretudo   ingleses e americanos, o que demonstra   a sua   constante  preocupação  por   se mostrar  atualizado,  ao corrente  do que se produzia então  nos Estados Unidos, na Europa. Os fragmentos de textos  são  lições indiretas   de  sua  finalidade  precípua,   pondo  o nosso país  a par  do que  de melhor  se  produzia  nos países   adiantados do mundo,  nos dominios  da Literatura e do pensamento  crítico  universal.
Por vezes,  se nota alguma   redundância  na focalização   de temas  e ideias no campo  da crítica  e da história literária Mas, este defeito  é ofuscado  pelas  páginas   originais e sensíveis  que dedica  à Literatura, como aquelas páginas  que,  com descortino e argúcia,   fala  da importância da descentralização  da vida  literária  e cultural   brasileira, ou daquele  artigo em que  mostra  todo o seu   respeito  e admiração  pela literatura    produzida na Bahia,  ressaltando suas qualidades  e sua  força  lírica, seus  intelectuais, sua produção   de peso, suas grandes figuras de nível  nacional.
Em Correntes cruzadas,  o leitor  está sempre tomando  lições de Literatura,   ampliando  seus repertório e vendo  o quanto um crítico sério   consegue   imbuir-se  de invejável   capacidade  de leitura de autores, temas e obras sem fronteiras  de nacionalidades.
Não poderia   afirmar que Coutinho, em seus  artigos desta obra,  tenha  acertado sempre nos seus  juízos e julgamentos,   como  no excessivo   plano superior em que  coloca  Sílvio  Romero e, em menor  posição,  José Veríssimo, sobretudo tendo em vista  que  o último foi  sempre  tido  como  o crítico  que maior  relevância  deu  ao elemento   estético na  análise de obras, ao passo que  o primeiro,  inegavelmente um  primoroso  historiador literário e de grande capacidade  produtiva,  trabalhou a literatura    mais em bases  sociológicas do que  estéticas.
Contudo,  o ponto alto   de Correntes Cruzadas é a  sua  constante  afirmação   de que  a leitura   dos  princípios  aristotélicos  que  estão  consubstanciados  na Poética de Aristóteles é o maior contributo  do filósofo  grego  para  rastrear as raízes  primordiais   do  elemento  estético-literário nos estudos  da crítica literária  e da   teoria literária  de todos os tempos   como  foram  também determinantes   ao desenvolvimento da crítica  literária moderna  a obra Biographia Literaria (1717)  de Coleridge,  a  Mimesis de Auebach, os ensaios de T.S.Elliot.
Definindo-se como crítico,  Coutinho   rebatia  os que lhe negavam   essa condição,  pois para  ele, a crítica literária não somente  se apresentava  nos rodapés  da imprensa, ou mesmo na militância  de julgamentos  de obras, mas no  papel que  o teórico, o professor  universitário exercem na cátedra,  nos livros, nos congressos,  e  em  revistas.  Damesma sorte,  o historiador  literário  exerce o  ato crítico no seu próprio  papel  de   estudar  as obras,   os gêneros literários  e de lhes dar  interpretação  fundada em critérios   de avaliação  e valorização  das obras, dos períodos literários,   dos  temas  gerais  ou específicos de crítica e teoria literária, de apresentação  de grandes  panoramas enfocando  obras,  gêneros e autores.
Um último  aspecto  focalizado  no seu livro  diz respeito  à orientação   do ensino  de literatura  brasileira,  de sua pedagogia,  de seus critérios  modernos  e  de cunho  científico,  mobilizando    todos  os instrumentos  de trabalho de exegese como  a valorização  da bibliografia, a abordagem crítica  nos  trabalhos   de monografias e teses,  nas suas diferenças  e finalidade sem os exageros   de erudição e desnecessárias   minúcias  de notas de pé de página, em detrimento,  pois,   do desenvolvimento  e originalidade  do estudo   que se faz.
Correntes Cruzadas ainda  apresenta  uma  valiosa   bibliografia de obras  de vulto  nos campos da  crítica literária,  da teoria literária, da história literária,  de literatura comparada, obras   gerais,  antologias de textos críticos,  revistas, história da crítica, antologias e coleções de textos críticos cobrindo  literaturas das principais línguas modernas, do passado até a  produção   da década  de 50 do século  20..
Para o pesquisador  interessado nas questões  polêmicas  que  Coutinho  se  viu envolvido intensamente, o volume   acrescenta,  em forma de apêndice, “Doze perguntas a Afrânio Coutinho" a propósito  de sua Tese  Aspectos da literatura barroca e  do  concurso  para a cátedra  de Literatura do Colégio Pedro II. As perguntas fazem parte  de uma sequência   de depoimentos  que professores  deram ao Tribuna  das Letras (22-12 de dezembro de 1951), tendo sido  primeiro entrevistados  o crítico Álvaro  Lins e o filólogo Celso Cunha. As resposta  de Coutinho valem como  síntese enriquecedora    de suas preocupações de analista literário  e docente.
Finalmente,  o volume   insere  cinco páginas  extraída, em forma de entrevista,  do Jornal de Letras (fevereiro de  1951) concernentes  à repercussão que teve um artigo de Coutinho  acerca  da vida literária  brasileira publicado na seção   “Correntes Cruzadas,”    segundo  já referi, do  Suplemento  literário do Diário de Notícias do Rio de Janeiro.O artigo de Coutinho   causou “celeuma” e reações “veementes” da parte de  muitos escritores.
Coutinho  reafirmou  a sua posição  sustentada no artigo sobre  os males  de nossa vida literária  naquela  época, sobre  comportamentos éticos  de escritores e sobre  a situação da crítica e da teoria  literária para as quais   reivindicava  novos  formas  de abordagem  do fenômeno  literário, ou seja, substituir  o impressionismo  crítico e a orientação  teórica  em bases  estéticas, objetivas, científicas, visando a dar  ênfase  aos aspectos intrínsecos  da obra literária,  na valorização  desta  como  fundamento  para  a análise  e julgamento  crítico, na defesa  da autonomia  do fenômeno   estético, no tratamento  da linguagem literária,  na autotelicidade de base aristotélica do texto, refugando,  assim,   a continuidade  do  impressionismo  de viés   romântico,  que valorizava a personalidade do crítico e  o primado  do autor.
O depoimento  de Coutinho, embora  muitas vezes   contundente,  se afirma como um  comovente   gesto de  amor  aos estudos  literários,  de   exercer  a crítica, a teoria literária, a história literária como   um “destino,”  uma  forma  voluntária de opção e de  crença  nos valores   estéticos  que  a  Literatura   propicia  àqueles  que  por ela  se decidiram   a dedicar  sua vida  profissional  por vocação  e sem   nenhum  arrependimento ou possibilidade  por não a  ter  substituído  por  atividades mais  rendosas,  econômica  e socialmente. Para facilitar  o pesquisador,  o volume finaliza com um  índice onomástico. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário