quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Artemisa Odila


Fonseca Neto

Pousou em Teresina por estes dias a bissauguineense Artemisa Odila Candé Monteiro. Veio participar de evento na Ufpi e lançar um livro: “África e Brasil, diálogos possíveis”. 
Quem é Odila? Uma universitária da África ocidental que morou em Teresina mais de quatro anos, estudando na Ufpi, num programa de cooperação internacional entre o governo de seu país – Guiné-Bissau – e o do Brasil. Graduou-se em Ciências Sociais, prosseguindo com estudos pós-graduados na Bahia, cidade de Salvador, onde conclui o doutorado. O livro que lançou é sua Dissertação de Mestrado, na Ufba, examinando com chaves etnográficas e de campos afins, as tessituras dialogais possíveis enformadas na “estetização e mitificação de África nas estratégias identitárias e inserção política do movimento negro”. 
Quando aqui chegou, nas primeiras leituras do cenário descortinado, logo percebeu ela a movimentação de grupos de negros com algum sentido de organização. Estranhou o modo como evocavam a mamma África, em particular o jeito de se vestir, enfeitar, dançar, trançar cabelos, isto é, ritualizar a ancestralidade africana. Odila, nativa e cidadã de lá, não reconheceu, de pronto, aqueles modos, tal o que seria o sentido genuíno do ser afro. E não deu outra: fez disso uma questão de pesquisa e, com as ferramentas do método, imergiu na experiência do Grupo Afrocultural Coisa de Nêgo, para destripá-lo, decifrar sua mítica iluminando as raízes piauienses e brasileiras da africanidade e entender as marcas gravadas na condição vivente da fração da humanidade que a diáspora do escravismo mercantil legou ao tempo presente.
O livro labora-narra a referida estetização do corpo, ou “africanização das aparências”, manifestada na ação do referido grupo e, além dele, verificável também na Bahia e muitos outros lugares. Manifestação que se inscreve como herança de tradições africanas trazidas à época do tráfico transoceânico e que sugerem a existência de uma só África projetada culturalmente para este lado do Atlântico. Odila desvenda a processualidade dessa transposição de culturas e seu caldeamento local em séculos de afro e lusas amerindizações, em geral doídas, explodindo em linguagens de resistência, tanto no cativeiro de ontem, quanto nas abjetas segregações de hoje. E o faz, entre os citados instrumentos/ferramentas, utilizando pertinentes fontes historiográficas e dos mananciais das Ciências Socias.
Entre outras referências, invoca Eric Hobsbawn (p. 131) e sua formulação sobre a “invenção das tradições”, para situar a recepção dos sentidos da ancestralidade no contexto presente: “as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas: outras podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos pelos depósitos bem supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais”. Disso, observa a autora, decorre que essa África evocada no movimento examinado, “não surgiu do vazio, mas sim de uma experiência resultante do movimento escravocrata, que foi enxertada nos fragmentos culturais africanos e incorporada por outros valores e sentidos de outras influências diaspóricas”. Ela não conheceu apenas o Coisa de Nêgo. 
Odila viveu e realizou seus estudos no Piauí na época da ascensão do PT ao governo estadual e não perdeu tempo em examinar a articulação da nova realidade com o movimento negro, em especial os significados da nomeação de mulheres negras para relevantes funções estatais, muito realçada a figura e o protagonismo de Sônia Terra à frente do órgão máximo das políticas públicas para a Cultura. Capta e discute a violência das manifestações racistas contra Terra. 
O livro é dedicado à sua Avó-Mamma Djenabú Baldé, Fula, e vem prefaciado por Dione Morais, da Ufpi, e apresentado por Rosário Gonçalves, da Ufba. Lembra Valcirana Maia. Publicado pela Editora Appris, Curitiba, Coleção Africanidades. 

(Quero parabenizar Artemisa Odila – nome mui belo –, a qual conheci e acompanhei, como diretor do CCHL, a trajetória na Ufpi, integrada a mais de uma dezena de estudantes vindos da África, em vários cursos de graduação. Aliás, deles se fez uma espécie de líder, inclusive nas horas de exasperação da cruel interface racista com brasileiros em Teresina e na própria Ufpi. Marcante sua presença no Núcleo de Pesquisas Ifaradá. Não é pouco uma guineense ter vindo estudar e aqui checar as rebrotações do mundo feitas das Áfricas aspergidas. Vitória dela e nossa). 

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