A INFÂNCIA NA ROÇA
Jacob Fortes
Da janela do meu quarto, numa manhã chuvosa,
antevéspera do carnaval de 2014, detive-me a inspecionar a paisagem
exterior; tudo em concórdia. Quanto vegetal da lavra das minhas
mãos! É o instinto sertanejo de arvorar, vem da minha
ancestralidade. Em terra que o asfalto desnuda melhor que se bote uma
plantinha no chão. Até a buquê-de-noiva, que trouxe ainda cândida
do litoral canavieiro, adaptou-se e se exibe garbosamente; a fronde
confeitada de copos-de-leite.
Enquanto os meus olhos, enlevados, percorriam o cenário
externo, os meus ouvidos se confortavam no som das gotas
retardatárias de uma chuva que caia mansa desde a madrugada. Neste
comenos o meu olhar empacou, fixo, garimpando o nada. Era a distração
mínima de que precisavam os pensamentos para poder voar. Os
pensamentos são como os pássaros: nasceram para a liberdade. Eles
não têm compromisso, arribam quando querem. Não é à toa que os
chamamos de andarilhos. Mas apesar de abstratos eles também sentem
saudade: vão, depois voltam.
Feito cachorro perdigueiro que não se deixa enganar
eles se foram, farejando os meus passos. Num átimo de segundo
chegaram a um rincão distante, a uma época recuada. Chegaram a um
descampado de embriagar a vista; sopé de uma serra. Chegaram onde
começou a madrugada da minha vida.
No centro desse imenso descampado, tabuleiro no
vernaculismo regional, havia uma figueira copada que sombreava uma
casinha rudimentar: reboco e chão batido. Ambos eram felizes, ambos
queriam ter um ao outro, mas a figueira, com o ar de matrona que
sente prazer em amadrinhar, parecia querer protegê-la aos moldes de
filha adotiva. Janelas e portas desse mocambo eram devassadas:
usanças dos tempos em que braço caboclo tinha a ambição do
tamanho da sua sobrevivência. Mas foi lá que a infância se fartou
espontânea, com o pão da alegria, sob os rigores do rei sol: onde
há soalheira de virtude curativa médico não prescreve! A casa em
que moro em Brasília não passa de um aleijão se comparada à choça
coberta de palha de carnaúba em que decorreu a minha infância. A
aparência marcantemente humilde do casebre em nada chamava à
atenção; fazia parte da paisagem social do mundo caboclo. Ali a
meninada vivia ocupada em ser feliz. Distraída, sequer percebeu que
escola no sertão não existia para ela. Melhor para a infância;
pôde se lambuzar! A escola benfazeja sobreveio incidentalmente,
quase na idade adulta. A ocasião e as circunstâncias não permitiam
o bom gosto, menos ainda o apuramento de maneiras, isso fica para os
fidalgos. Ainda bem, pois o que importava mesmo era a liturgia da
felicidade. A infância plena não é derivativa do ter, bastava o
exercício lúdico: correr, saltar, entreter, vadiar, enfim,
dedicar-se ao que era de pouca seriedade. O terreiro piçarroso,
amplo e guarnecido de sombra, era convidativo. Terreiro, diga-se, de
muitas valências. Tanto servia às galinhas, que o sujavam e
ciscavam, quanto às cabras, que ruminavam durante a noite sob a
vigilância do Peri, tão caçador quanto guardador. Apesar das
enjoativas emanações da sua rabugem, se fazia admirado e
respeitado, tamanho o seu desvelo e sua versatilidade. Especial mesmo
era o seu faro aguçado com que pressentia a aproximação de
qualquer coisa, inclusive daquele que espavoria menino: o lobisomem.
Porém a importância maior do terreiro era prestar-se ao papel de
sala de visita onde se recebiam tanto os iguais, em nível social e
vicissitudes, quanto os passantes ocasionais. Iguais que se
resignavam ao fatalismo de necessidades consentidas, mas nisto não
havia perturbação humoral de ninguém. Ao contrário, a escassez
abonava o bom humor, vincava sentimentos de solidariedade. O mundo
era áspero, adverso, mas não ensejava existência rancorosa, ódio;
simplesmente um viver humano, sereno, pacífico. Para não esgotar as
numeráveis serventias do terreiro basta dizer que os jumentinhos, —
resignados serviçais no papel de cavalo de
pobre, — faziam-no de espojadouro habitual, talvez pelo
cascalho fino, apropriados para massagear os lombos.
A multiplicidade de folguedos musicava a infância, mas
é preciso reconhecer o apego dos meninos machos pelas gangorras,
pelos pares de andas e os cavalinhos feitos de talo de carnaúba
seca. Cavalo de verdade só aqueles que serviam de pedestal às
pessoas acima do comum, de destacado repasto. De verdade também
existiam os jumentinhos ronceiros. Estes sim, a quem se entregavam
cuidados e se tinha demarcado apego, sintetizavam os que viviam na
miséria econômica e social, por vezes de braços alugados ao
latifúndio. Simbolismo maior de
solidariedade comunal eram as redes puídas, esticadas em um único
vão da casinhola, onde meninas e meninos dormiam sossegados;
ninguém, por isso, se considerava em pecado. Não existia a
sexualidade dos tempos modernos: pedagogicamente apregoada nas
escolas, farta em tolerância e aceitação plena de costumes
ousados.
Não se diga, entretanto, que os meninos do meio rural
não trabalhavam. Cedo se exigia deles a realização de tarefas
próprias do ambiente sertanejo: agricultura, pastoreio, ocupações
da casa, demão de serviços de toda espécie. Assistidos, se
limitavam ao papel de coadjutores; trabalho e lazer se confundiam
numa indistinção, se equivaliam, se entremeavam. É da essência da
criança a disposição para transformar todo labor em divertimento.
Trabalhar brincando era circunstância que impedia perceber a chegada
do buço masculino. Quando menos se esperava ei-lo, tímido, querendo
ser homem feito.
Sem o propósito de dissertar, apenas sumariar, estas
foram algumas das reminiscências que pontuei enquanto escutava a
queda do pranto, não o meu, mas do céu, no telhado. Reminiscências,
aliás, em bom estado de conservação, apesar da minha idade
provecta; que exibe dorso escalavrado de experiência. Elas
sintetizam a cachoeira de saudade de onde retiro a rega que permite
nutrir o alvorecer da minha vida. E se os meus fios de cabelos
brancos querem significar os beijos que recebi do jardim da minha
infância é certo que, por essa simbologia, minha cabeça há de
tornar-se um imenso casulo de algodão aberto.
Com a melhor saudade dedico estes lampejos aos meus
irmãos, sobremaneira os confrades de traquinice: Antônio Fortes,
Francisco Fortes, Manoel Fortes, Angélica Fortes, Maria José
Fortes, Conceição Fortes, Maria das Dores Fortes, Socorro Fortes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário