sábado, 8 de março de 2014

A INFÂNCIA NA ROÇA


A INFÂNCIA NA ROÇA

Jacob Fortes

Da janela do meu quarto, numa manhã chuvosa, antevéspera do carnaval de 2014, detive-me a inspecionar a paisagem exterior; tudo em concórdia. Quanto vegetal da lavra das minhas mãos! É o instinto sertanejo de arvorar, vem da minha ancestralidade. Em terra que o asfalto desnuda melhor que se bote uma plantinha no chão. Até a buquê-de-noiva, que trouxe ainda cândida do litoral canavieiro, adaptou-se e se exibe garbosamente; a fronde confeitada de copos-de-leite.

Enquanto os meus olhos, enlevados, percorriam o cenário externo, os meus ouvidos se confortavam no som das gotas retardatárias de uma chuva que caia mansa desde a madrugada. Neste comenos o meu olhar empacou, fixo, garimpando o nada. Era a distração mínima de que precisavam os pensamentos para poder voar. Os pensamentos são como os pássaros: nasceram para a liberdade. Eles não têm compromisso, arribam quando querem. Não é à toa que os chamamos de andarilhos. Mas apesar de abstratos eles também sentem saudade: vão, depois voltam.

Feito cachorro perdigueiro que não se deixa enganar eles se foram, farejando os meus passos. Num átimo de segundo chegaram a um rincão distante, a uma época recuada. Chegaram a um descampado de embriagar a vista; sopé de uma serra. Chegaram onde começou a madrugada da minha vida.

No centro desse imenso descampado, tabuleiro no vernaculismo regional, havia uma figueira copada que sombreava uma casinha rudimentar: reboco e chão batido. Ambos eram felizes, ambos queriam ter um ao outro, mas a figueira, com o ar de matrona que sente prazer em amadrinhar, parecia querer protegê-la aos moldes de filha adotiva. Janelas e portas desse mocambo eram devassadas: usanças dos tempos em que braço caboclo tinha a ambição do tamanho da sua sobrevivência. Mas foi lá que a infância se fartou espontânea, com o pão da alegria, sob os rigores do rei sol: onde há soalheira de virtude curativa médico não prescreve! A casa em que moro em Brasília não passa de um aleijão se comparada à choça coberta de palha de carnaúba em que decorreu a minha infância. A aparência marcantemente humilde do casebre em nada chamava à atenção; fazia parte da paisagem social do mundo caboclo. Ali a meninada vivia ocupada em ser feliz. Distraída, sequer percebeu que escola no sertão não existia para ela. Melhor para a infância; pôde se lambuzar! A escola benfazeja sobreveio incidentalmente, quase na idade adulta. A ocasião e as circunstâncias não permitiam o bom gosto, menos ainda o apuramento de maneiras, isso fica para os fidalgos. Ainda bem, pois o que importava mesmo era a liturgia da felicidade. A infância plena não é derivativa do ter, bastava o exercício lúdico: correr, saltar, entreter, vadiar, enfim, dedicar-se ao que era de pouca seriedade. O terreiro piçarroso, amplo e guarnecido de sombra, era convidativo. Terreiro, diga-se, de muitas valências. Tanto servia às galinhas, que o sujavam e ciscavam, quanto às cabras, que ruminavam durante a noite sob a vigilância do Peri, tão caçador quanto guardador. Apesar das enjoativas emanações da sua rabugem, se fazia admirado e respeitado, tamanho o seu desvelo e sua versatilidade. Especial mesmo era o seu faro aguçado com que pressentia a aproximação de qualquer coisa, inclusive daquele que espavoria menino: o lobisomem. Porém a importância maior do terreiro era prestar-se ao papel de sala de visita onde se recebiam tanto os iguais, em nível social e vicissitudes, quanto os passantes ocasionais. Iguais que se resignavam ao fatalismo de necessidades consentidas, mas nisto não havia perturbação humoral de ninguém. Ao contrário, a escassez abonava o bom humor, vincava sentimentos de solidariedade. O mundo era áspero, adverso, mas não ensejava existência rancorosa, ódio; simplesmente um viver humano, sereno, pacífico. Para não esgotar as numeráveis serventias do terreiro basta dizer que os jumentinhos, — resignados serviçais no papel de cavalo de pobre, — faziam-no de espojadouro habitual, talvez pelo cascalho fino, apropriados para massagear os lombos.

A multiplicidade de folguedos musicava a infância, mas é preciso reconhecer o apego dos meninos machos pelas gangorras, pelos pares de andas e os cavalinhos feitos de talo de carnaúba seca. Cavalo de verdade só aqueles que serviam de pedestal às pessoas acima do comum, de destacado repasto. De verdade também existiam os jumentinhos ronceiros. Estes sim, a quem se entregavam cuidados e se tinha demarcado apego, sintetizavam os que viviam na miséria econômica e social, por vezes de braços alugados ao latifúndio. Simbolismo maior de solidariedade comunal eram as redes puídas, esticadas em um único vão da casinhola, onde meninas e meninos dormiam sossegados; ninguém, por isso, se considerava em pecado. Não existia a sexualidade dos tempos modernos: pedagogicamente apregoada nas escolas, farta em tolerância e aceitação plena de costumes ousados.

Não se diga, entretanto, que os meninos do meio rural não trabalhavam. Cedo se exigia deles a realização de tarefas próprias do ambiente sertanejo: agricultura, pastoreio, ocupações da casa, demão de serviços de toda espécie. Assistidos, se limitavam ao papel de coadjutores; trabalho e lazer se confundiam numa indistinção, se equivaliam, se entremeavam. É da essência da criança a disposição para transformar todo labor em divertimento. Trabalhar brincando era circunstância que impedia perceber a chegada do buço masculino. Quando menos se esperava ei-lo, tímido, querendo ser homem feito.

Sem o propósito de dissertar, apenas sumariar, estas foram algumas das reminiscências que pontuei enquanto escutava a queda do pranto, não o meu, mas do céu, no telhado. Reminiscências, aliás, em bom estado de conservação, apesar da minha idade provecta; que exibe dorso escalavrado de experiência. Elas sintetizam a cachoeira de saudade de onde retiro a rega que permite nutrir o alvorecer da minha vida. E se os meus fios de cabelos brancos querem significar os beijos que recebi do jardim da minha infância é certo que, por essa simbologia, minha cabeça há de tornar-se um imenso casulo de algodão aberto.


Com a melhor saudade dedico estes lampejos aos meus irmãos, sobremaneira os confrades de traquinice: Antônio Fortes, Francisco Fortes, Manoel Fortes, Angélica Fortes, Maria José Fortes, Conceição Fortes, Maria das Dores Fortes, Socorro Fortes.    

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