COTAS
RACIAIS
Jacob
Fortes
Pautadas
por discordâncias, de um lado, e assentimento, de outro, as cotas
raciais estão permanentemente em voga. Conceitualmente, as cotas são
vagas que se reservam em instituições públicas ou privadas,
(vestibulares ou concursos) e têm o propósito de amortizar dívida
histórica do Brasil para com os negros.
Efetivamente,
a dívida é fato incontroverso; não foi resgatada por inteiro.
Afinal, durante séculos o Brasil fez do escravismo a sua principal
bandeira. Bandeira tão amada pelo polo senhorial quanto odiada pelos
pregoeiros da liberdade. Manter na detenção mão de obra escrava
era negócio dos mais promissores para a sociedade escravista que
reinou no período colonial. Por meio do pujante comércio de
escravos os senhores da Casa Grande aprovisionavam a Senzala de mão
de obra necessária ao cultivo de terras pródigas; onde brotavam
gigantescas e luxuriantes plantações, mormente cana de açúcar.
Essa a principal razão por que o Brasil foi o último país do mundo
a conceder alvará de soltura à mão de obra escrava; só o fez por
causa das fortes pressões da Inglaterra. A classe senhorial resistiu
o quanto pôde a todas as ideias e tentativas libertárias, sobretudo
a partir do século XVIII quando sopraram fortes as primeiras
emanações ideológicas que negavam legitimidade ao regime cativo.
Essas emanações, de boa semente, demarcaram o lento processo de
demolição do regime escravocrata. Esse passado escravista faz
pesar sobre o Brasil enorme dívida social; os negros são detentores
de haveres de grande monta. Isso é tão razoável quando induvidoso.
Entretanto, as cotas parecem miúdas demais para servirem de moeda de
pagamento de avultada dívida. De tão miúdas fazem lembrar
racionamento. Racionamento, por essência, tem caráter paliativo,
não peremptório. Não é justo que a dívida seja quitada aos
moldes dos haveres lançados, em pingas, nos cadernos de merceeiros.
Mas
a ideia de saudar, a conta-gotas, dívidas para com a raça negra
parece bastante antiga. Exemplificativamente, vejamos: a primeira
generosidade dos fautores da escravidão para dissimular as marcas
físicas e psicológicas do açoite, surgiu em 1871, (obviamente
depois de pressões internacionais), quando se tornaram libertos
todos os filhos de escravas nascidos a partir da promulgação da Lei
do Ventre Livre. Posteriormente, em 1885, sobreveio a Lei dos
Sexagenários, que assegurou liberdade aos escravos com mais de 60
anos. Claro. Esgotados no eito escravista já haviam perdido a
serventia. Sequentemente, em 1888, surge a Lei Áurea que tornou
extinta a escravidão no Brasil. Embora a manumissão tenha-se
verificado no papel, o negro permaneceu sojigado pela dependência
econômica, circunstância que reduziu a aparatosa lei Áurea em
simples norma de adorno. Ainda para suavizar as expiações
horrendas, criou-se, mais tarde, uma manobra eufêmica por meio da
qual a odiosa segregação passou a chamar-se preconceito de cor ou
preconceito de raça.
Agora,
na esteira dos lenitivos, surgem as cotas, simulacros de manchões,
que acodem a poucos. Todavia, “o racismo não é uma entidade
personificada por uma só pessoa ou grupo de pessoas”. O Brasil
inteiro é multirracial. Sendo assim, benefícios que forem ofertados
ao povo deveriam ocorrer de modo isonômico, não desigualmente como
evidenciado pelas cotas. Estas, diga-se, assumem o caráter de favor
a grupos, circunstância que conspira contra a igualdade de
oportunidades. A igualdade de oportunidade é da essência do regime
democrático, é princípio constitucional basilar. Nisto merece
louvores o princípio fayoliano: “o interesse particular
subordina-se ao geral”.
Supondo
que as exceções se expandam a outros setores, futebol, por exemplo,
situações estapafúrdias haveriam de surgir. No futebol, onde a
distância para se bater um pênalti é de nove metros, se o batedor
tiver pele negra essa distancia haveria de ser reduzida. Imagine o
imbróglio, imagine o cipoal de leis, decretos, resoluções etc.,
para disciplinar essas insólitas exceções. Favorecer ou
desfavorecer por causa da cor da pele são circunstâncias à míngua
de amparo porque a Magna Carta assegura igualdade a todos, sem
distinção de nenhuma natureza. As cotas, que pressupõe tutela,
além de denegar os méritos inerentes à raça negra ainda faz crer
que os negros precisam de pares de andas o que não é verdade. Essa
proteção impertinente exprime desonra a uma raça cuja ascendência
está recheada de heróis. Sob o arrimo da coragem e do talento esses
heróis, insurretos, se notabilizaram pelas suas bravuras em favor da
liberdade da sua gente: João Mulungu, José Cabrinha, Dragão do
Mar, Gangazuma, Zumbi dos Palmares, Adão, Nuno, Ambrósio, Manuel
Jurema e vintenas de outros.
Para
resgatar a dívida que o país tem com os seguimentos marginalizados,
compostos na sua esmagadora maioria, por negros e mestiços, nada
mais apropriado, mais completo, mais altivo, mais dignificante, do
que os governos oferecerem escolas públicas, completas, regulares e
de qualificação profissional. Somente a qualificação permitirá a
todos competir em pé de igualdade. Se os negros não estão
suficientemente preparados para concorrer a vagas nos vestibulares ou
nos concursos públicos, é porque os governos não lhes oferecem
ensino que lhes assegurem cabedal necessário ao enfrentamento das
adversidades. Qualificar é libertar, é fornecer recursos para a
superação. A falta de escola pública de qualidade prejudica não
apenas os negros, mas os brasileiros pobres de um modo geral. Ainda
que o anseio universal seja a igualdade não se pode desconhecer que
a desigualdade permeia toda a Criação. Portanto, é irrelevante
arguir desigualdade, mas igualdade de oportunidades é algo que se
impõe como indispensável a todos.
É
preciso inumar em cova profunda o critério de se estabelecer
desigualdade pela cor da pele. Isso fica para colonizadores, hábeis
preadores de índios, cujas ações, do alto das suas donatarias, se
pautavam, mais das vezes, por mandonismo truculento. As cotas são um
modo disfarçado de realçar um racismo que ficou num passado
distante. Elas se prestam, senão para viciar, para constranger.
Acordem-se
os sonolentos, pois “já raiou a liberdade no horizonte do Brasil”.
O regime democrático nacional, mesmo que pálido de decálogo
cívico, infelizmente, não comporta prerrogativas fundadas na cor da
pele. Urge que sejam avaliadas todas as clarividências para que,
removidas as divergências e as insensibilidades, prevaleça a
obviedade: a raça negra merece o principal: escolas públicas de boa
qualidade e não o secundário: cotas. Para a valorosa raça negra as
cotas, favores de ocasião, exprimem algo que não lhe assenta à
dignidade; não honra o seu real merecimento. Elas depõem contra
quem recebe e, mais ainda, contra os governos, pois atestam a
incapacidade do poder público de ofertar ensino de qualidade. A raça
negra prefere a moeda suada, não a achada.
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